sábado, 9 de dezembro de 2017

Há coisas que não me é permitido fazer para me tornar feliz?

A propósito de dever e de felicidade


Ouve-se muitas vezes: "o que interessa é se és feliz com as tuas escolhas."

Nestas circunstâncias pode perguntar-se: ora, é certo que eu quero ser feliz, mas será que por isso me é lícito empregar todos os meios para isso, sejam quais estes forem? Será que, para ser feliz, devo matar? Para ser feliz posso enganar os meus colegas de trabalho para, desse modo, obter uma promoção e singrar na carreira para, assim, ser mais feliz?

Ouvem-se então as mais curiosas declarações do tipo: "um assassino nunca é feliz", ou "quem engana nunca pode ser um bom profissional", ou "quem faz esse tipo de coisas nunca é feliz consigo mesmo".

Podemos, neste caso, chamar a atenção para as estatísticas que mostram que entre os profissionais de topo há tantos psicopatas como nas cadeias, e que os psicopatas tendem a ser os melhores profissionais, embora não tenham qualquer problema em enganar, mentir, etc.

"Ah, mas os psicopatas não são felizes."

E pronto. A coisa pode continuar indefinidamente. As pessoas querem que o mais importante seja a felicidade, mas depois não querem aceitar que seja permitido matar, roubar, etc., para se ser feliz. Então, confrontadas com o dilema, preferem acreditar que quem faz essas coisas não é feliz, esquecendo o essencial da questão: é que quem mata, provavelmente, fá-lo porque acredita que isso contribuirá para a sua felicidade - ou não será que o fez porque procurava ser infeliz? Ora, se fez o que fez em vista à felicidade, então o problema é, precisamente, o de saber se, em vista à felicidade, tudo é permitido, incluindo roubar e matar.
Como se percebe, é absolutamente irrelevante se o sujeito se torna efectivamente feliz ou não. O ponto é apenas saber se me é lícito fazer seja o que for que me pareça ser útil à minha felicidade.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

A questão dos meios de prova e acreditação

A propósito do movimento flat Earth


Descontando a parvoíce do movimento «flat Earth», ou «Terra Plana», acho-lhe piada.

Acho-lhe piada porque em 2014 eu escrevia qualquer coisa assim «A (pretensão de) evidência resulta já de um regime de sentido prévio, como se pode confirmar se se tentar convencer alguém de que a Terra é redonda. Quem duvidar realmente disso, dificilmente irá acreditar nos mapas ou nas imagens. Mesmo que se faça uma viagem de circunvalação, não se tem como apresentar o trajecto de uma vez. As evidências só podem ser mobilizadas no contexto de um regime de sentido.»

A ideia é que «provar» que a Terra é redonda a alguém que, efectivamente, duvide disso é extraordinariamente difícil. É difícil porque, se o sujeito em causa duvida que a Terra é redonda, isso significa (se tal dúvida não resulta apenas de uma questão de ignorância) que o sujeito não valoriza os meios de prova que suportam, precisamente, a tese de que a Terra é redonda. Quer dizer, se o sujeito duvida que a Terra é redonda, então, provavelmente, isso significa que não aceita como meio de prova o testemunho dos manuais, das enciclopédias, da televisão, dos jornais, da fotografias, dos relatos de observações dos astronautas, etc. 
Por vezes pensa-se que bastaria pegar no sujeito e pagar-lhe uma volta ao mundo, mas isso é um equívoco. Não seria possível apresentar a «volta ao mundo». Na verdade, se eu vou num avião que dá a volta ao mundo, ou eu acredito que é isso que está a acontecer, ou não há forma empírica de comprovar que é isso que está a acontecer.
O ponto é, precisamente, esse: a prova só é possível num contexto de credibilidade de determinados meios aceites como constituindo «prova». Eu acredito que a Terra é redonda porque aceito determinados meios como suficientes para validarem essa minha crença. Mas não tenho qualquer forma de verificar, por mim mesmo, que a Terra é redonda. A não ser, é claro, que eu próprio possa ir ao espaço confirmá-lo, o que não é viável para toda a gente.
Na verdade, eu não posso aplicar arbitrariamente o princípio da rejeição do argumento de autoridade. Se eu aceito argumentos de autoridade em alguns casos e não noutros, coloca-se a questão de saber quais são os critérios que validam essa aplicação selectiva. Por sua vez, a escolha desses critérios, o facto de eu usar estes e não aqueles, já denuncia um sistema de validação. Quer dizer, se eu aceito o que dizem os professores, os especialistas, os cientistas sobre coisas que eu não poderia confirmar por mim mesmo, mas não aceito o que dizem os xamãs, os feiticeiro e os padres, isso já revela, desde início, um sistema de validação que, evidentemente, tenderá a conformar-se com a visão dita científica do mundo.

Até certo ponto, de um modo ou de outro, a visão que se tem do mundo, o regime de sentido que se habita, o sistema de acreditação que cada um de nós tem em uso, incorpora sempre um elemento de arbitrariedade.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

A 01-12-2017


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quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Kant e a felicidade



Para Kant, o fim do homem é a moralidade e não a felicidade. A felicidade constitui um fim real para todos os homens, e aquilo que estes por natureza, no início e na maioria das vezes, desejam incondicionalmente, mas não é o fim último da existência humana, ou não é o fim último que os homens devem ter.

sábado, 25 de novembro de 2017

«Amai os vossos inimigos»: uma conversão do coração

A propósito da noção de conversão cristã


«Mas eu [Jesus] vos digo, amai os vossos inimigos»
Mateus, 5: 44: ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν, ἀγαπᾶτε τοὺς ἐχθροὺς ὑμῶν

Note-se que Jesus requer dos seus seguidores que amem os seus inimigos. Mas é como ἀγαπᾶν, não como φιλεῖν, que se pede que se amem os nossos inimigos. Na Septuaginta, agape é a palavra para o amor de Deus pelos homens, e dos homens por Deus. Significa qualquer coisa como "colocar em primeiro nas nossas afecções", implicando, por um lado, o acto da vontade de "colocar em primeiro" algo que, naturalmente, não se ama, e, por outro lado, a "afecção real" e a manifestação em actos dessa afecção (não apenas a intenção). Quer dizer, está em causa, não apenas uma "aspiração", ou um "desejo", por assim dizer, não consumado, ou que se tem vagamente, mas algo que efectivamente orienta a acção, não como uma mera lei que se cumpre, mas também como algo que se torna dominante "afectivamente". Ou seja, implica uma revolução disposicional no sujeito - por oposição à filia, ao amor que vem naturalmente e que atinge o sujeito, arrastando-o, ou pressionando-o a agir de determinada forma, sem que esta afecção tenha sido produzida por intervenção do sujeito sobre si mesmo.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Ockham e Aristóteles em torno da felicidade e da liberdade

A propósito da relação entre liberdade e felicidade


Segundo Aristóteles, só deliberamos sobre as coisas que estão em nosso poder e que não ocorrem necessariamente. Visto que o fim é o objecto do querer, também não deliberamos sobre os fins, mas sobre os meios adequados para alcançar determinado fim. Não deliberamos, por exemplo, sobre se queremos ser felizes, mas sim sobre os meios adequados para alcançar a felicidade.
Como se percebe, esta análise limita extraordinariamente a liberdade humana: se tudo o que fazemos depende do fim que temos, e se o fim que temos é aquele que temos por natureza, parece haver pouco espaço para a liberdade.
De modo a preservar a liberdade - ou uma certa noção de liberdade - Ockham rejeitou a noção de que o humano está naturalmente inclinado a desejar a felicidade. A razão parece evidente: se o objecto está determinado na origem, por natureza, o sujeito está perante ele numa relação de pura passividade; o indivíduo está completamente dominado por uma instância que não depende dele, não tem qualquer controlo sobre o objecto das suas acções, sobre o fim da sua vida. Quer dizer, que o desfecho da vida de cada um está aberto a alternativas parece claro, pois nem todos terminam da mesma maneira a vida, mas que o fim que cada um visa em todas as suas acções esteja determinado por natureza parece ser um golpe demasiado forte na liberdade humana. Assim, parecia a Ockham, ou bem que o homem tanto pode querer a felicidade, quanto pode querer a infelicidade, sem estar determinado a inclinar-se para um dos lados, ou bem que a liberdade não existe.

domingo, 19 de novembro de 2017

Sem-abrigo por opção

A propósito de Natal (2017)

Sem-abrigo por opção:
«Jorge Toledo, de 50 anos, deixou a ilha Terceira, nos Açores, em setembro de 2009. Para trás ficaram a família, com duas filhas, e um emprego estável como eletricista na empresa Eletricidade dos Açores (EDA). Sentiu-se "chateado com a sociedade" e decidiu "vir fazer vida de sem-abrigo"». (fonte: https://www.rtp.pt/noticias/politica/sem-abrigo-de-lisboa-fazem-biscates-atraves-dos-cacifos-solidarios_n769990)


Fenómeno conhecido desde a Antiguidade, teve diversos enquadramentos sociais ao longo dos séculos, mas trata-se sempre da mesma situação: pessoas que decidem livremente deixar para trás toda a riqueza, abandonar a sua função (trabalho, emprego, etc.), a sua família, os seus bens e, em muitos casos, até a sua comunidade, vila, aldeia, cidade ou país, e passar a viver sem casa ou ligações fixas à sociedade, na situação que hoje em dia reconhecemos como de "sem-abrigo", mas que ao longo do tempo recebeu denominações e conotações muito diferentes, nem sempre pejorativas ou marginalizantes.


Buda e Jesus são, provavelmente, os dois casos mais conhecidos, por razões óbvias, mas entre filósofos e religiosos podem encontrar-se bastantes exemplos. Contudo, este fenómeno não se limita, de modo nenhum, aos filósofos e religiosos, mas também entre o comum dos mortais, e até entre os que pertencem às classes mais ricas e poderosas, desde sempre parece ter existido quem decidisse abandonar tudo e viver sem posses ou ligações sociais e familiares típicas.

sábado, 18 de novembro de 2017

O Dia da Filosofia e a ânsia da servidão

A propósito da Utilidade da Filosofia

Este ano, o dia da Filosofia voltou a fazer levantar-se a ânsia de alguns "filósofos" para mostrar ao mundo que a Filosofia é útil. Nesta ânsia de provar que a Filosofia é útil ao mundo, à sociedade, ao país, à educação, ao mercado de trabalho, um sujeito quase dá por si a convencer-se de que a Filosofia é assim como uma espécie de canivete suíço, ao qual só falta mesmo ser capaz de descascar batatas e descaroçar azeitonas.

Arendt, num artigo chamado Pensamento e Considerações Morais, sobre a importância do pensamento - e Arendt pensava que o pensamento era, de facto, muito importante - começa logo por despachar a questão da utilidade do pensamento esclarecendo que o pensamento não serve para nada. Não serve para nada, é absolutamente inútil. E, apesar disso, pode revelar-se absolutamente decisivo.
Ora, a mais crua das verdades é, precisamente, a de que a Filosofia não serve para nada. E, para ser honesto, não sei se consigo levar a sério um filósofo que defenda a utilidade da filosofia. A verdade é que a Filosofia não serve mesmo para nada. E um filósofo que queira provar o contrário deve ter-se enganado na profissão. É melhor que se dedique a coisas mais úteis, sei lá, talvez a cozinhar, a criar empresas, a produzir mais valias, qualquer coisa, desde que deixe a Filosofia antes que a transforme num descascador de batatas.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Provas da "existência"

A propósito do Dia da Filosofia...

«acontece que ao ver, alguém se apercebe de que vê, ou que ao escutar, alguém se apercebe de que escuta, ou ainda que ao caminhar, alguém se apercebe de que caminha e assim de modo semelhante no que respeita a todas as outras actividades - parece então haver algo que nos permite apercebermo-nos de que nos cumprimos em tais possibilidades quando as accionamos. Ou seja, apercebemo-nos de que accionamos a capacidade perceptiva e apercebemo-nos de que accionamos o poder compreensivo. [...] apercebermo-nos do facto de percepcionarmos ou apercebermo-nos do facto de compreendermos é apercebermo-nos do facto de existirmos (porque existir é desde sempre perceber ou compreender)»

Aristóteles, Ética a Nicómaco,1170a25ss


«Efectivamente, somos e sabemos que somos e amamos esse ser e esse conhecer. [...] é coisa absolutamente certa que sou, que conheço e que amo. [...] Pois se me enganar, existo. Realmente, quem não existe de modo nenhum se pode enganar. Por isso, se me engano é porque existo. Portanto, se existo se me engano, como poderei enganar-me sobre se existo, quando é certo que existo quando me engano?»
Santo Agostinho, A Cidade de Deus, XI, XXVI


«eu existo sem dúvida alguma se me persuadi ou se simplesmente pensei algo. [Ainda que] um qualquer [Deus] poderosíssimo e manhosíssimo embusteiro empregue toda a sua indústria a enganar-me sempre. Portanto, não há dúvida de que existo se ele me engana; e ele que me engane quanto quiser, pois nunca conseguirá fazer com que eu nada seja enquanto eu pensar ser algo»
Descartes, As Meditações Metafísicas, 2ª Meditação, 4

A filosofia é uma obsessão compulsiva

A propósito do Dia da Filosofia

Filosofia «significa uma obsessão compulsiva».
António Caeiro, ao minuto 03:35


terça-feira, 14 de novembro de 2017

Arbitrariedade e moral

A propósito da arbitrariedade da moralidade externa

Na natureza, o infanticídio é uma prática comum para garantir a sobrevivência de uma espécie.

De facto, há vários estudos sobre o infanticídio nos animais, incluindo mamíferos, mesmo primatas e até entre chimpanzés - os animais que, do ponto de vista genético, mais próximos estão dos homens.

Na verdade, também entre os humanos o infanticídio parece ter sido uma prática comum em tempos idos - do que parecem ser testemunhos alguns mitos que ainda hoje conhecemos.

Certas tribos ainda hoje existentes praticam o infanticídio segundo critérios validados por longas tradições.

Um estudo mais aprofundado permitir-nos-á confirmar que, entre os humanos, os motivos que poderiam determinar a morte de um infante poderiam ser muito variados, nem sempre associados à mal-formação física, a qualquer deficiência ou fraqueza - características que, no mundo animal, parecem andar associadas ao infanticídio, embora nem sempre. 

Para um povo era normal matar os primeiros dois filhos, para outro era regra matar os bebés que tivessem o azar de lhes nascer primeiro os dentes superiores. Enfim, quaisquer que sejam as características físicas que nos definam, provavelmente encontraremos em nós uma que, num ou noutro povo, numa ou noutra época, nos teria condenado à morte simplesmente por termos nascido com ela.

Mas o infanticídio chegou a assumir dimensões de massacre. Algumas civilizações realizavam rituais religiosos que incluíam o sacrifício de milhares de crianças de uma só vez. Nem sempre as crianças sacrificadas eram entregues a este destino por terem perdido alguma guerra, ou por serem consideradas etnicamente inferiores. Por vezes, as vítimas sacrificadas eram, justamente, consideradas melhores e privilegiadas.

Tudo isto sugere que a moralidade externa é intrinsecamente arbitrária.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Um fim e um propósito para o humano

A propósito do fim do humano

Uma das noções mais antigas é a de que cada coisa tem o seu fim, que para cada coisa há uma função que lhe é adequada, que é o melhor para ela, que é aquilo para o qual serve e sem o qual nada vale. Assim, cada coisa vale o que vale em função do fim. Se deixa de cumprir a sua função perde o seu valor, deixa de ter valor. E o ser humano foi naturalmente compreendido da mesma maneira, o que significa que o humano compreendeu-se a si mesmo desde logo como coisa-utensílio: não como algo arbitrário, que tanto pode servir para isto ou para aquilo, mas sim como algo determinado por um fim para o qual foi desenhado, o qual corresponderia ao seu propósito na vida, fixado na origem, na sua essência. O ponto de vista humano alimenta-se, de algum modo, deste essencialismo primário, básico, fundamental, segundo o qual cada coisa tem o seu uso.
Este ponto de vista, natural nos homens, apresenta-se, naturalmente, como natural. Justamente, deste ponto de vista a natureza não é arbitrária, não forja as coisas arbitrariamente, mas destina cada coisa a um uso especial, de modo que cada coisa só tem uma função apropriada para ela. 
É assim que, naturalmente, os homens são concebidos como seres naturalmente gregários, que por natureza não podem passar uns sem os outros, porque foram feitos para se unirem, como o macho e a fêmea foram feitos para a procriação, e a procriação para a perpetuação. A perpetuação não é vista como arbitrária, como casual, como mero jogo de forças anónimas, mas como o fim da procriação, como o fim do acto sexual, como o fim da união entre humanos, como o fim da família, como o fim dos homens, como o fim dos sexos, como o fim do homem e da mulher. É assim que se pensa que foi com o fim da perpetuação, para a conservação dos homens e das mulheres, que a natureza deu a um o comando e impôs a submissão ao outro. E foi assim que se pensou e pensa ainda que é também do desígnio da natureza que comande quem, pela sua inteligência ou força, foi feito para comandar, e que obedeça quem não possa contribuir para a perpetuidade e prosperidade comum a não ser pelo trabalho do seu corpo. Esta divisão surge assim como partilha natural e saudável das funções entre senhor e escravo, de acordo com os desígnios da natureza e os fins naturais que coube especialmente a cada um. Deste ponto de vista, a condição da mulher difere naturalmente da condição do homem, tal como a condição do escravo difere naturalmente da condição do senhor, e a condição dos animais difere naturalmente da condição dos homens. Por isso, para a sociedade antiga, era preciso, antes de tudo, a casa, e depois a mulher, o escravo e o boi. Por isso, era preciso, para a sociedade medieval, o senhor e o vassalo, a terra e o servo. Por isso, a mulher foi vista desde sempre como vaso. Mas não foi só a mulher, o pobre, o fraco, o animal que sempre tiveram de arcar com a etiqueta da servidão, de utensílio. Foi o próprio homem, porque o que sempre esteve presente nesta mentalidade foi a noção do humano ter um fim, um propósito e, por isso, os homens teriam de servir para alguma coisa, ou não servir para nada.
Este essencialismo de fundo parece estar entranhado no ponto de vista humano, e pergunta pelo sentido da vida é ainda expressão dele. É por isso mesmo que precisamos de viver por alguma coisa, de ter objectivos, de nos medirmos pelas metas que nos impomos ou que nos impõem, de nos valorizarmos pelas medidas que estabelecemos para nós, ou que o mundo, os outros e a vida se encarregam de estabelecer por nós.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

A aporia socrática

A propósito de aporia


«apressar-se para conhecer outras coisas sem se conhecer a si mesmo é risível»
Olimpiodoro

Olimpiodoro sugere que o início da filosofia esteja no conhecer-se a si mesmo, ou melhor, no reconhecimento da aporia em relação a si mesmo. A aporia seria, assim, um estágio. O reconhecimento da própria ignorância trata-se, assim, de um meio que visa um fim, não é um fim em si mesmo. O reconhecimento da ignorância é, para os platónicos, e a começar pelo próprio Platão, uma porta de entrada para o conhecimento, porque é o começo da perseguição, a instalação do sujeito numa situação de "amor" - no sentido particular que o amor sempre tinha para os gregos.

Mas se virmos bem, de Platão em diante, há já sempre algo que não encontramos em Sócrates. Sócrates aponta, precisamente, para a aporia como estabelecimento de algo de novo em relação ao que há antes disso. A ignorância. Convém lembrar que "aporia", em grego, poderia significar caminho de difícil transposição, mas também sem saída. O que está em causa é, precisamente, algo de difícil acesso, mas também algo de onde só muito a custo se poderá sair, e de onde pode não se ter ângulo de visão para qualquer saída.

É discutível que Sócrates considerasse a aporia um estágio, algo como um mero ponto de passagem. Porque é discutível que Sócrates aceitasse que a verdade pode ser aprendida e, por isso, é discutível que aceitasse que pudesse haver, de facto, "conhecimento". Pelo menos, conhecimento no sentido grego do termo: algo que efectivamente se sabe.

Certo é que Sócrates achava que só quem se desse conta da sua própria ignorância poderia, de facto, começar a procurar conhecer - mas daí não se segue que a aporia seja um mero local de passagem: pois, para que o seja, é preciso admitir que é possível conhecer. Não é certo que Sócrates aceitasse que alguma vez se pudesse conhecer alguma coisa.

Pode acontecer que o estado mais próximo do conhecimento em que nos possamos encontrar seja, precisamente, o estado em que estamos em perseguição. E parece ser para qualquer coisa desse tipo que Sócrates aponta - embora, evidentemente, também isso não seja dito por ele, nem o poderia ser, porque para poder afirmar isso teria de presumir saber.

À medida que o homem se desumaniza

A propósito do perigo da Inteligência Artificial


Num tempo em que a Inteligência Artificial se torna, cada vez mais, capaz de replicar os homens, pode acontecer que o maior perigo não seja que a máquina se torne capaz de copiar o humano, mas que o humano se torne uma cópia da máquina.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

A política, o poder e o carácter

A propósito de poder e carácter


Nothing discloses real character like the use of power. It is very easy for the weak to be gentle. [...], but if you wish to know what a man really is, give him power. This is the supreme test.
 Robert G. Ingersoll, The Exchange Table, True Greatness Exemplified in Abraham Lincoln, 1883


Tradução:
«Nada revela o verdadeiro carácter [de uma pessoa] como o uso do poder. É muito fácil para o fraco ser meigo. [...], mas se queres saber o que um homem é realmente, dá-lhe poder. Este é o teste supremo».


Cf., o episódio do anel de Gyges, na República, de Platão.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Sexta-feira treze e os cátaros

A propósito do azar da sexta-feira treze

Como todas as superstições, parece difícil traçar até à origem a crença de que a sexta-feira treze é um dia particularmente azarento. De facto, misturam-se muitos mitos e histórias.

Por um lado, o próprio número 13 já está marcado por uma carga negativa. Na nossa cultura, parece ter pesado especialmente que na última ceia estivessem 13 indivíduos à mesa: os doze, mais Jesus.
Mas isso não explica a carga da sexta-feira.

Por outro lado, Jesus parece ter sido morto numa sexta-feira, o que pode explicar a negatividade associada à sexta-feira.

No entanto, estes aspectos, verdadeiros ou não, parecem não explicar a conotação da sexta-feira treze.

Ora, já faz parte da cultura popular associar a origem desta superstição ao episódio que condenou os Templários ao desaparecimento. De facto, a 13 de Outubro de 1307, sexta-feira, a Ordem dos Templários foi declarada ilegal. Perseguidos, torturados e executados, este acontecimento pode ter marcado a mentalidade das pessoas que viram uma ordem tão poderosa ser incapaz de escapar ao extermínio por meios violentos e cruéis.

Mas, aparentemente, a sexta-feira treze já estava negativamente marcada quando os Templários foram ilegalizados. Aliás, os episódios mais cruéis e marcantes da perseguição aos Templários não sucederam nessa sexta-feira, mas depois disso.

No entanto, foi numa sexta-feira, dia 13, de maio de 1239, que pelo menos 183 cátaros, homens e mulheres, foram queimados, às mãos da Santa Inquisição, na Champanhe. O episódio foi o primeiro de uma série de atrocidades e massacres, dos quais o de Montségur é o mais conhecido. E esse episódio ocorreu numa sexta-feira treze em que 183 cátaros foram queimados. Apesar de este acontecimento ter, de algum modo, caído no esquecimento popular, parece ter deixado uma ideia clara nas mentalidades: que a sexta-feira treze não é dia de boa sorte. Ideia que pode ter sido fortalecida por outros acontecimentos posteriores, como a perseguição dos Templários, tal como por outros acontecimentos e crenças anteriores, tal como o número de pessoas à mesa da última ceia de Jesus.
Assim - ou de outra maneira semelhante - se constroem mitos e superstições.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Pensamento positivo na narrativa da felicidade

A propósito da narrativa da felicidade



Uma narrativa enche hoje cada recanto da mentalidade padrão. Somos viciados na felicidade e na busca da felicidade. Quando não estamos a tentar mostrar ao mundo que o mundo não nos atinge, quando não estamos a tentar mostrar aos outros e a nós mesmos que ainda somos felizes, estamos a ler livros de auto-ajuda de um qualquer guru, seja actor, seja desportista, filósofo de pacotilha ou psicólogo de sofá. Ou então a devorar estudos científicos recentes que partem do princípio que todos aspiramos à felicidade e que todos devem querer ser felizes, ou a fazer uma festa para não fazer o luto, ou a beber para não pensar, ou a pensar para não sofrer. Ou então estamos a tomar antidepressivos, porque se não estivermos sempre felizes com certeza já não estamos vivos, não somos dignos de usar o tempo de vida. Nunca como hoje se acreditou tanto e tão cegamente no poder transformador do "pensamento positivo"... ao contrário de uma outra "evidência", já hoje esquecida, assassinada e cremada na gasolina da adrenalina do "parar é morrer" moderno, que era a certeza de que nada tem tanto poder para manter as coisas como sempre foram, para arrastar e adormecer do que, precisamente, o "pensamento positivo".

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

O estético como estádio natural do homem

A propósito do estádio estético


É muito comum os comentadores de Kierkegaard - sobretudo, os não especializados - descreverem o «estádio estético» como aquele em que «o homem se abandona à busca pelo prazer imediato». Esta descrição não é, de todo, apropriada. É certo que o prazer desempenha um papel importante no estádio estético, mas se fosse o prazer a característica definidora do estádio em causa (transversal a todas as suas desformalizações), então este chamar-se-ia «estádio hedonista», e não «estádio estético». Também não se trata apenas de haver nele a procura imediata da felicidade, caso em que se chamaria «estádio eudemonista».

Ou seja, não se deve confundir o estádio estético enquanto tal como uma, ou algumas das suas modulações, desformalizações possíveis, ou categorias. O prazer e a felicidade imediata são, de facto, duas categorias muito importantes no estádio estético, mas não é por isso que esse estádio se chama estético, nem é isso que o define como tal. O estádio estético é estético, precisamente, por ser «estético», no sentido técnico do termo: porque a exclusão das alternativas tem valência estética; ou, por outras palavras, porque as decisão tomadas pelo sujeito seguem as tensões de perseguição e de fuga imediatamente constituídas no sujeito.
Ou seja: aquilo que caracteriza a vida da maioria de nós, ou, talvez, de todos nós - é isso que define o estádio estético, o qual corresponde, para Kierkegaard, ao estado do «homem natural», àquilo que cada homem pode ser simplesmente em virtude daquilo que já encontra naturalmente constituído em si.

Ora, como a maioria de nós está neste estádio, quando tenta descrever o estádio estético, tem a tendência a defini-lo apenas por uma desformalização possível dele. Porque a maioria de nós dificilmente tem ângulo de visão para as alternativa ao estádio estético, ou seja, para os estádios ético e religioso, no sentido que Kierkegaard lhes atribui.

Por isso é que o estádio estético é o "estádio em que o indivíduo humano se encontra no início e na maioria das vezes": porque é o estádio em que o humano tem de começar a sua vida, e no qual a maioria dos indivíduos humanos se encontra toda a sua vida sem detectar que essa é apenas um modo, entre outros possíveis, de se estar na vida. Para a maioria, o estádio estético é, precisamente, tudo quanto a vida pode ser.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Da raposa, das uvas e do humano

A propósito da precisão de ter uma impressão de si genuína...

É o ser humano que é assim como à raposa da estória...

Ao perceber que as uvas estão muito altas a raposa convence-se de que estão verdes, o que, por sua vez, alivia a tensão, pois a pressão para as alcançar desaparece. Ou seja, desistir das uvas tem um efeito parecido ao que teria chegar às uvas, visto que descomprime a vontade da raposa. É certo que o efeito não é exactamente o mesmo, pois, afinal, não conseguiu gozar do prazer de saborear as uvas. Mas, por outro lado, ao direccionar a sua atenção para fitos mais à-mão, a raposa abriu todo um novo horizonte de possibilidades: é certo que não chegará a saborear as uvas, mas, em compensação, poderá saborear muitos outros frutos rasteiros que imediatamente lhe surgirão pela frente aliciando-a a curvar-se, a curvar-se cada vez mais até que acabará, certamente, a comer batatas e outras iguarias subterrâneas.

Assim é o humano, nas palavras de Kierkegaard: "os homens têm uma maior impressão das vacas do que de si mesmos".

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Estado de Banalidade - em Kierkegaard

A propósito da noção de numérico, segundo Kierkegaard

O "numérico" refere-se ao indivíduo que se deixa reger, e guiar na sua vida, por determinações universais. Por exemplo, pela "comunidade", pelo "Estado", pela "espécie". Quando o indivíduo assume para si o regime "numérico" da existência torna-se uma simples cópia do universal: a identidade da cópia define-se pela sua pertença ao universal. O indivíduo é compreendido e compreende-se a si mesmo a partir de determinações universais: pai, filho, médico, cristão, etc. O ponto é que, de cada vez, o sujeito interpreta-se a partir de um universal, quer seja sempre o mesmo, quer existam vários a configurar o seu ponto de vista. Assim, há um conjunto de regras, preceitos, objectivos, etc., previamente determinados, dentro de um certo horizonte de possibilidades, dentro das quais o sujeito escolhe e actua, como se a cada vez a decisão fosse sua, mas, na verdade, está entregue a projectos que não são dele, que lhe são oferecidos de fora.

O sujeito vê-se a si mesmo ora como pai, ora como filho, ora como marido, ora como aluno, ora como médico, ora como cidadão. De cada vez há um conjunto de competências, um perfil do qual deve ser a repetição segundo um conjunto de actividades, um plano, certas acções, comportamentos, etc. No limite, o sujeito "numérico" é um conjunto de camadas, desempenha sempre um ou outro papel - deve ser sensato, ou racional, ou feliz, etc., etc., etc. -, mas não há qualquer profundidade nelas. Se as camadas forem retiradas nada resta, não há indivíduo, não há subjectividade: apenas uma abstracção, um nada que pode ser tudo, que pode adaptar-se a qualquer coisa, assumir qualquer função, singrar no mundo e, sem espinha dorsal, tornar-se o mais bem-sucedido homem de negócios de uma nação, de um país, de um regime, qualquer que ele seja.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Desespero e infinito

A propósito do desespero finito.


A estrutura formal do desespero inconsciente em Kierkegaard é: que o eu, em desespero pelo infinito, desespera sobre algo finito. Entretanto, a inconsciência do desespero em que se encontra pode ser de tal modo que nem mesmo se dá conta de que desespera no finito. Mas o ponto é: quando o fenómeno atinge certa intensidade, o sujeito dará, com certeza, por ele, contudo, faltam-lhe as categorias adequadas para posicionar correctamente o fenómeno: aponta para o finito e diz-se desesperado, e, sendo certo que está em desespero, o desespero em que se encontra não é aquilo a que chama estar desesperado.
Quando o desespero surge na sua categoria, o sujeito dá-se conta de estar no desespero e dá-se conta de si no desespero, de tal modo que percebe que a sua condição é a do desespero - que já e sempre está no desespero, ainda que só agora tenha percebido isso mesmo. O que surge, então, é uma forma de consciência do eu infinito, mas na forma negativa: como não sendo aquilo que desde sempre está destinado a ser - ainda que não faça a mínima ideia do que isso seja. Pois o que assim se evidencia para o sujeito é o seu estado de não-cumprimento de si enquanto estado originário, como condição.

O desespero da nossa época

A propósito da nossa época

A nossa época existe apenas no desejo, no preenchimento do desejo e no regresso ao momento do desejo. Que época tão empreendedora a nossa, porque nunca se pode parar, porque o que conta é sempre o que vem a seguir. O que importa é que se tenha um ponto para o qual se queira ir. Que se tenha algo para desejar, porque parar é morrer. A nossa época vive disto, da incessante remissão como uma carta indefinidamente reenviada, sempre em trânsito, sempre endereçada a algo de outro. Como uma carta que nunca chega, que não pode chegar, porque se houvesse um momento em que esta época não tivesse mais nada para desejar, em que por um infeliz acaso tivesse adquirido tudo aquilo que deseja, em que estivesse perfeitamente satisfeita, simplesmente morreria. Esfumar-se-ia no vazio que ela mesma é, porque ela não é nada, pois é apenas no desejo, na fruição e no regresso ao momento do desejo.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

O macaco que há em cada um de nós

A propósito de macaqueação

Teixeira de Pascoaes, Defeitos da Alma Pátria:
«Sempre que o homem hesita na sua humanidade, aparece o macaco»

Kierkegaard, Querer ser o primeiro:
«tu sentes a falta de algo que se te adiante, não é verdade que tu sentes falta do «rebanho»?, isto é: tu queres ser animal. […], pois tu não queres arriscar; quando, nomeadamente, apenas se percebe ter outros adiante de si, quanto mais melhor, tanto menos se arrisca, ou mais correctamente: no fim de contas não se arrisca de todo, ou mais correctamente ainda: faz-se precisamente o contrário de arriscar. […] cobardes-chico-espertices dos homens, que preferem a macaqueação e a bestialidade»


A ideia parece ser a mesma: que o espírito simiesco - o espírito de imitação em nós - nos persegue para onde vamos, e que sempre que hesitamos, sempre que não somos capazes de estar à altura do que faria de nós humanos, daquilo que seria exigido para sermos indivíduos, para termos um carácter, para formarmos uma personalidade, o macaco em nós toma a condução dos destinos da nossa vida nas suas mãos.

O macaco em nós parece designar, simultaneamente:
- o espírito "imitativo" ou "simiesco" - a tendência do indivíduo para imitar, para seguir a manada, para integrar a massa, para ser rebanho;
- o animalesco, a preponderância das determinações da espécie na vida do indivíduo - e, por isso, também a tendência para ser número, espécime, simples cópia da espécie.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

A cristandade, em Kierkegaard

A propósito da noção de "cristandade" (como "paganismo" mascarado de cristianismo) em Kierkegaard


É conhecida a tese de que "se Deus não existe, a vida não tem sentido". Por vezes, para rebater esta tese, diz-se que mesmo que houvesse uma vida depois da morte, de perfeita felicidade, não seria legítimo medir a vida no mundo por esse critério. É certo. Mas a tese de que o sentido da vida terrena depende da existência de Deus não depende da tese da vida depois da morte. Isto é evidente quando se sabe que havia seitas judaicas que não acreditavam na vida depois da morte. Aliás, no Novo Testamento, Jesus é questionado, precisamente, pelos Saduceus, os quais tentaram levar Jesus a cair em contradição ao admitir a imortalidade da alma.
É perfeitamente possível não acreditar na imortalidade da alma e, ainda assim, manter a tese de que o sentido da vida depende da existência de Deus, ou que Deus é a fonte do sentido da vida.
Muitas vezes, quando os (filósofos) ateus se referem ao mundo judaico-cristão tomam este apenas pelas suas versões mainstream (seja na versão mainstream popular, seja na versão mainstream teológico-filosófica).
O mundo judaico-cristão também tem correntes que não acreditam na imortalidade da alma. Na verdade, o que está em causa em Deus como fonte do sentido não é o facto de Deus fornecer um prémio, ou uma recompensa. Deus funciona como fonte de sentido por ser Deus, por haver um Deus a dar sentido a uma determinada forma de vida - independentemente de dela decorrer uma recompensa ou não. 

Claro que a mentalidade actual, completamente embrenhada na "utilidade", só consegue conceber o judaico-cristianismo sob o prisma da utilidade que esta vida teria para obter outra vida depois. Para Kierkegaard, esta era a forma da cristandade: um paganismo; fazer-se cristão para obter uma recompensa, como qualquer pagão. Para Kierkegaard, esta forma de paganismo - a cristandade - não chegava, sequer, ao estádio ético, pois neste vigoraria a injunção "faz o bem, ainda que não haja recompensa".

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

A narrativa da felicidade

A propósito da felicidade


Que a concepção da felicidade como finalidade da existência é um paradigma historicamente datado, circunstanciado e, por isso, historicamente condicionado - é difícil de perceber. 

Para o comum dos mortais, a felicidade é «analiticamente» o fim de todas as suas acções e a finalidade da própria vida. Um sujeito não só toma como evidente que a felicidade é o fim de todas as suas acções – e, daqui, por passos de mágica, conclui que também "deve" sê-lo – como também não se apercebe que há uma tese aqui: tudo se passa como se a felicidade fosse «analiticamente» a medida do homem. Portanto, também não se apercebe de que há outras teses possíveis – outras teses de que, na maioria das vezes, não faz a mínima ideia. Pois, que outra coisa se poderia querer senão a felicidade? Na maioria das vezes, esta mesma pergunta permanece surda, mesmo que alguém a formule, porque o sujeito não consegue pensar em nada que se queira que não seja por mor da felicidade. 

É um caso de completa "sistemática elisão das possibilidades alternativas" (Mário Jorge de Carvalho)... o sujeito está embalado numa compreensão que está cega para as alternativas!

domingo, 3 de setembro de 2017

Narrativa da Felicidade, o mito de Aristóteles

A propósito da felicidade.


Para Nietzsche, a própria ideia de que a felicidade é algo que se deseja e que constitui a finalidade da nossa existência é uma marca da decadência de uma cultura.

Para Kierkegaard, a busca pela felicidade é, na verdade, uma forma de desespero.

Para Kant, a busca da felicidade faz-nos esquecer a dignidade - o fim autêntico da vida humana.

Três autores muito diferentes entre si, mas que concordam em discordar da narrativa da felicidade que se impôs no ocidente desde Aristóteles.


«A felicidade como fim último da vida individual. Aristóteles e todos os outros!» Nietzsche, Fragmento póstumo, 7 [210]

Afecto e exibição nas redes sociais

A propósito da intimidade nas redes sociais.


A intimidade é tanto exibição quanto afecto.
Para um casal, mostrar proximidade significa apresentar uma narrativa de felicidade ao mundo. O casal sente necessidade de constantemente validar a sua intimidade, afirmar a própria existência.
A melhor expressão desta intimidade é a selfie.
É certo que sempre foi assim, mas hoje vive-se com mais intensidade a dimensão da exposição, da exibição, porque os meios para isso estão mais presentes na nossa vida e têm mais poder de exposição do que nunca. Quanto mais poder de exposição se tem, maior é a necessidade interior de exibir a intimidade para assegurar a sua existência.
A coisa está tão exacerbada que, se por um passe de mágica o facebook acabasse amanhã, provavelmente teríamos o maior boom de rompimentos e divórcios da história... 



sábado, 2 de setembro de 2017

A experiência como acontecimento anónimo de si

A propósito de experiência de vida...

A experiência de vida é um dos bois de ouro do nosso século. As pessoas acreditam que a experiência lhes ensina coisas, e não só isso, acreditam que a própria experiência é conhecimento. Acreditam até que a experiência é um bom critério para decidir como hão-de levar a vida e deixam-se guiar, assim, pelas experiências da vida. As pessoas depositam a sua confiança na experiência e julgam que ela é inabalável - a não ser, claro está, por outras experiências que venham a refutar a primeira... As pessoas pensam que aprendem com os acontecimentos e que vão formando, progressivamente, uma sabedoria de vida assim acumulada.

Basicamente, a experiência corresponde ao rosto da vida tal como é anonimamente oferecido ao sujeito. A experiência de vida é algo que já está inscrito na vida natural - quer dizer, um sujeito não tem de fazer nada para a adquirir: basta que se deixe estar na vida que ela há-de providenciar experiências. Depois, claro, depende daquilo que a vida trouxer, pois será nisso que se adquire experiência.

Mas, no essencial, quando as pessoas invocam a "experiência de vida" como testemunha e como prova, isso só mostra uma coisa: que as pessoas deixam que a sua vida seja conduzida anonimamente... E este é só mais um exemplo.


Sugestões

A propósito de leituras

1. De Sara de Oliveira, a tese O sentido do espírito no humano: Estudo sobre a determinação antropológica na obra de Kierkegaard
Tese muito bem conseguida. Oficialmente sobre a noção de espírito, em Kierkegaard, a tese vai, na verdade, muito para além disso. Ou melhor, o esclarecimento cabal do que está implicado na noção de espírito implica o esclarecimento de muitas outras noções - como é evidente - e esta tese consegue um extraordinário entrelaçamento de temas e conceitos que faz dela, provavelmente, o melhor trabalho de investigação sobre Kierkegaard que eu alguma vez li.


2. De Marisa Moura, o livro O que é que os portugueses têm na cabeça?
Livro ligeiro muito bom. Uma crítica capaz, não superficial, abrangente e com rigor. Apesar das fontes usadas serem, em grande parte, do âmbito da imprensa, e não, propriamente, académicas, o resultado global é uma obra sólida e ampla sobre a mentalidade, o espírito e o perfil dos portugueses, não só na actualidade, mas também na sua formação ao longo dos séculos - e milénios.




quinta-feira, 24 de agosto de 2017

O ensopado de Lobo Mau

A propósito das estórias de antigamente

A versão dos três porquinhos anterior à da Disney é muito diferente. Nessa versão mais antiga os dois porquinhos mais preguiçosos, o da casa de palha e o da casa de madeira, não sobrevivem, pois, após lhes haver destruído as casas, o lobo faminto come-os. Depois de comer os dois primeiros porquinhos, o Lobo Mau, ainda com fome, tenta invadir a casa de cimento do terceiro porquinho entrando pela chaminé. Mas o porquinho já o esperava com uma grande panela de água a ferver na fogueira. O lobo, escorregando pela chaminé, não tem como escapar, cai dentro da panela e acaba cozido. Então, o último dos porquinhos come o lobo à refeição. Nesta versão mais antiga, o Lobo Mau vira comida e o porquinho mais esforçado e prático dos três irmãos não deixa desperdiçar uma boa carne.

A Capuchinho Vermelho

A propósito das estórias de antigamente


Regra geral, as versões dos Grimm são bem mais sangrentas e cruas do que as versões actuais insossas e sem espírito. Mas a história da Capuchinho Vermelho contada pelos Grimm já é uma versão muito "politicamente correcta" da mesma. Nas versões mais antigas não havia lenhador. Na verdade, a Capuchinho Vermelho nem sequer usava um capuchinho vermelho... O Lobo Mau matava a avó, não a engolia ainda viva. Mais: o Lobo, depois de matar a avó, tirava-lhe o sangue para uma jarra e cortava-a às fatias. Quando a Capuchinho chegava, o Lobo dava-lhe o sangue e a carne da avó a comer, como se de vinho e carne vulgar se tratasse. Depois desse episódio canibalesco, o Lobo pedia à Capuchinho que se deitasse nua com ele. As perguntas eram bem diferentes, nada de "porque tens olhos tão grandes?"... À medida que a Capuchinho se despia, ia perguntando o que fazer com a peça de roupa despida e o Lobo mandava que a jogasse na fogueira. Além disso, a Capuchinho apenas observava que a avó era bastante "peluda", com "ombros largos", em tiradas com suposto teor sexual, até que, finalmente, notava os "grandes dentes" da avó. Depois desta última observação, com a Capuchinho já nua, o Lobo comia-a e pronto. Não havia lenhador - tópico acrescentado pelos Grimm - para salvar ninguém. A história acabava mesmo assim com a avó comida e bebida pela neta, e a neta comida pelo Lobo, uma verdadeira lição de vida sem lenhadores míticos ou salvamentos mágicos.

Estado de Graça

A propósito de Estado de Graça

Nos tempos idos da Santa Inquisição, quando os monges do Santo Ofício chegavam a uma terra reuniam com a população na igreja da vila. Durante um mês os pecadores eram convidados a admitirem as suas faltas passíveis de configurar heresia. Quem se confessasse durante esse período livrava-se, pois encontrava-se em estado de graça, sendo habitualmente perdoado sem consequências de maior. Essa benevolência não se verificaria findo o estado de graça podendo os réus ser condenados, inclusivamente, à morte na fogueira depois de períodos de tortura.

O ónus da prova

A propósito de Presunção de Inocência


Durante séculos os tribunais presumiam a culpa dos réus. O problema desses tribunais "inquisitivos" é que abrem a porta a que os inocentes sejam condenados por não terem forma de provar a sua inocência. Num tribunal que presume a culpa não se aplica a noção de que "se fores inocente não tens nada que temer". Eram assim os tribunais do Santo Ofício, mas também os tribunais seculares até há bem pouco tempo. É fácil verificar os excessos a que esses tribunais eram levados quando podemos tomar em consideração casos como o das bruxas de Salem. Por isso, é certo que a presunção de inocência permite que alguns criminosos não sejam condenados quando a culpa não pode ser provada. Mas, de qualquer modo, a presunção da culpa é, claramente, mais perniciosa, porque, por princípio e definição, permite que os inocentes sejam condenados sempre que não forem capazes de provar a própria inocência.

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Kant - antropologia moral

A propósito de Felicidade e Dever

O respeito pelo outro e tal são, precisamente, limites... é a definição de ética. Como Kant dizia, a felicidade é o fim último subjectivo e o dever é a condição formal de todos os fins... Ou seja, ao contrário do que diz Aristóteles, a felicidade não é o fim último em si mesmo, porque se fosse, então tudo aquilo que faríamos teria a obtenção de felicidade como critério. No entanto, nós somos capazes de identificar situações em que aquilo que me traria felicidade não deve ser feito.

Kant acreditava que o humano estava cindido ente dois desejos: o de felicidade, e o de dignidade. O problema, segundo ele, é que aquele que objectivamente é superior (porque lhe reconhecemos validade universal, pelo menos, se Kant está certo), é simultaneamente aquele que é subjectivamente mais fraco (porque o móbil da felicidade - as diversas paixões - é mais forte do que o móbil da dignidade - o sentimento de dever)... Daqui resulta que para que uma pessoa viva eticamente tenha de, primeiro, conseguir intervir na sua própria constituição subjectiva, formando um carácter (a capacidade de se fixar em máximas)... Isto, evidentemente, é aquilo que ninguém se lembra de fazer, porque como se sabe a vida externa ocupa-nos demasiado tempo, de modo que só quando estamos para morrer nos lembramos que poderíamos ter sido melhores pessoas.

Os revolucionários de sofá

A propósito daqueles que são revolucionários enquanto palitam os dentes

Há quem critique Maduro por ser demasiado democrata e pacífico, pedindo mais violência, mais acção da parte do Estado, achando que o melhor seria Maduro começar a "despachar" todos os que se lhe opõem! Acho perfeitamente normal que um sujeito pense assim, mas se o pensa e debita enquanto está sentado no sofá, a palitar os dentes, a gozar das férias, já me parece estranho.

É que um sujeito tem a tendência a ser tão mais revolucionário quanto o possa ser enquanto palita os dentes! Há uma deslocação reflexiva completa: o sujeito vive a sua vida real pacatamente no meio do consumismo, tem o seu ordenado, a sua carreira, uma família, um sofá - e, simultaneamente, pede no facebook que o Maduro estripe os que se opõem à revolução, exige sangue e tece extraordinárias reflexões como só com acção se faz revolução - sendo que o excelente sujeito que, provavelmente, não levantou o cu do sofá o dia inteiro, entende que acção é sinónimo de violência, que só aquele que, pelo menos, matou alguém realmente age.

Até percebo a coisa, mas só acrescentaria uma coisa: que o excelente revolucionário deixe o seu sofá e rume à revolução. Enquanto estiver a palitar os dentes no sofá que se remeta ao silêncio, porque falar e escrever no facebook é apenas uma forma de aliviar a tensão e não fazer nada.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

O Admirável Mundo Novo que a Eugenia nos reserva

A propósito de eugenia e felicidade

Imagine-se a seguinte sociedade.
Esta sociedade faz uso da tecnologia que lhe permite editar o ADN com facilidade e acuidade.
Assim, todos os indivíduos são editados para nascerem com determinadas inclinações, tendências e propensões.
Esta sociedade gere perfeitamente as suas necessidades, quer a mão-de-obra, quer a de recursos. Assim, tem bem determinadas as suas necessidades.
Antes de nascer cada indivíduo é alocado a uma função, a uma posição, a um local social, conforme as necessidades previamente identificadas.
Antes de nascer cada indivíduo é editado para querer fazer exactamente aquilo a que foi alocado, de tal modo que a função que lhe foi atribuída corresponda à sua maior paixão e àquilo que lhe proporciona realização pessoal.
Isto é assim com qualquer função, mesmo se um indivíduo acumula diversas funções (por exemplo, funcionário de uma repartição e pai de família).
Nesta sociedade, nunca ninguém está insatisfeito com aquilo que lhe caiu no lote, pois foi programado para querer fazer exactamente isso.
Suspenda-se - para efeitos de problematização - a questão de saber se tudo isto seria efectivamente possível do ponto de vista técnico, ou se haveria sempre alguma falha, alguma necessidade a mais. Suponha-se que tudo quanto se disse era de facto cumprido.
Há algum problema com esta sociedade? Qual?

O humano e os três porquinhos

A propósito de casas


O ser humano é assim como os porquinhos da história! Porque aquilo que o humano quer é estar a salvo do lobo. É por isso - só por isso - que o humano quer uma casa solidamente construída sobre fundamentos seguros, com paredes robustas e telhados resistentes.

Mas o ser humano - que precisa sempre de ter uma casa - quer construir a própria casa gastando o mínimo possível, cansando-se ainda menos e, sobretudo, sem se preocupar muito com o assunto, porque se há coisa que o aborrece é preocupar-se. É por isso - e só por isso - que constrói uma barraca de feno.

Conclusão: o porquinho quer estar a salvo do lobo. Mas é uma questão dialéctica perceber até que ponto ele quer de facto uma casa sólida ou uma casa de feno. É certo que ele julga querer uma casa de feno, fácil e cómoda. Mas também é certo que aquilo que ele quer acima de tudo é estar acoitado quando o lobo vier!

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Senso-comum e bom senso

A propósito da diferença entre senso-comum e bom senso


Há várias definições que se aplicam a estes dois termos, sobretudo, se recorrermos aos filósofos.
Em geral, eu diria que o "senso-comum" se caracteriza pelo recurso a conhecimentos em vigor numa dada comunidade. É uma forma de conhecimento que tem como critério a colectividade e que se caracteriza pela incorporação: é um saber viver que os indivíduos apropriam e que se torna natural neles. Por isso, torna-se espontâneo no homem formado (adulto).

Aparentemente, o "bom senso" não pertence ao âmbito do conhecimento - ao contrário do senso-comum, mas ao âmbito dos sentidos/sentimentos. Ou, mais correctamente, é uma forma de julgar - como o juízo de gosto, ou o juízo moral, parece haver também o bom senso, um modo de sentir a situação, de discernir e julgar particulares. Ter bom senso não é saber algo, mas julgar de determinada maneira. Parece, no entanto, que tem alguma coisa que ver com o senso comum, porque aquilo a que se chama bom senso é, habitualmente, reconhecível como tal quando o juízo de alguém é reconhecido como "razoável", "bom", "adequado" numa determinada situação pelos elementos de um grupo ou colectividade (por isso, aquilo que é bom senso aqui pode não o ser na China, ou na Arábia, como qualquer pessoa que já tenha passado por esses países poderá dizer)... Ou seja, o senso comum parece ser uma espécie de saber adquirido, nomeadamente, um conjunto de normas e de critérios vigentes numa comunidade, enquanto o bom senso parece ser a boa aplicação dessas regras, dessas normas, desses critérios. Por isso o bom senso não pode ser, propriamente, ensinado, pois não há regra para a aplicação de regras. Assim, a mera detenção de senso-comum não habilita, imediatamente, um sujeito a julgar com bom senso - daí que tendamos a distingui-los e, até mesmo, a considerá-los muito diferentes. Mas, no fim de contas, são duas faces da mesma moeda - embora possa acontecer que se tenha uma sem a outra.

Do conflito entre a discriminação positiva e meritocracia

A propósito de justiça e educação


Parece-me que o critério do historial do aluno, nomeadamente, das suas notas, deve ser progressivamente dominante na atribuição de vantagens ou determinação de preferências. Isto porque o sistema de ensino deve incentivar os bons alunos e que os alunos se tornem bons alunos. A igualdade no acesso não deve ser confundida com a desvalorização do esforço dos alunos. É só perfeitamente natural que os alunos que mais se esforçam sejam recompensados; tal como é natural que aqueles que têm menos capacidades sejam ajudados a suprir essas dificuldades. As duas dimensões têm de ser consideradas para evitar desequilíbrios que jamais poderão conduzir à justiça.
Mas acho extraordinário que se ache normal que um encarregado de educação displicente e um aluno absolutamente indiferente aos estudos fiquem chocados com o facto de o bom desempenho ser um factor a ter em conta... Já agora, convém relembrar que a escolaridade também serve para preparar os alunos para um dia se integrarem no sistema em que terão de apresentar resultados e mostrar competência, e onde eles mesmos vão querer ser avaliados pelas suas competências e pelos resultados do seu esforço - pois, como eles próprios irão verificar, sempre que o seu esforço não for reconhecido, sempre que trabalharem para apresentar resultados e, depois, alguém seja preferido por ter nascido assim ou assado, sentir-se-ão altamente injustiçados. Ora, se as pessoas sempre querem ver os seus esforços recompensados, por que razão têm tanta dificuldade em aceitar que sejam prejudicados por não terem resultados a apresentar? Se o sujeito que se esforça, trabalha, estuda e tem boas notas deve ser recompensado, isso tem de implicar sempre uma vantagem. E se a ausência de resultados não releva realmente de falta de esforço, mas de menores capacidades, então o Estado também tem de oferecer recursos para suprir essas dificuldades e, no limite, recorrer à discriminação positiva: mas note-se, só e apenas se a ausência de resultados se dever, de facto, a um deficit de capacidades ou a incapacidades reconhecíveis, e não ao mero "deixa andar que a escola também não serve para nada" que tantas vezes já ouvi - que estou farto de ouvir - e que não deve, de modo algum, ser incentivado.

domingo, 16 de julho de 2017

O sujeito e o espelho

A propósito da noção de síntese em Kierkegaard

Deus fez o homem à sua imagem. Quem é o espelho? É o homem, o homem é o espelho. Então, quando procura Deus, o homem encontra tudo aquilo que lhe possa passar pela frente. É por isso que é perfeitamente natural que o homem confunda o deus que procura com o dinheiro que encontra e, em conformidade, receba a forma disso que reflecte. O homem que ama o dinheiro tem uma identidade definida pelo dinheiro. Assim, a expressão "amar-se a si mesmo" só pode ser esclarecida mediante um acrescento que esclareça qual é a determinação que o define. Quer dizer, amar-se a si mesmo não diz nada, porque o significado disso depende da sua identidade, e a identidade do homem é definida a partir de uma instância. Assim, aquele que ama o dinheiro é ainda a si que ele ama. E aquele que se ama a si mesmo pode amar-se a si mesmo no dinheiro se é neste que deposita a sua identidade. É natural, portanto, que uma pessoa obcecada por si mesma só dê importância ao dinheiro. E é perfeitamente natural que quem só pensa em dinheiro seja alguém obcecado por si mesmo. O mais feroz egocentrismo reflecte-se sempre numa fixação a algo, e a mais feroz fixação a algo reflecte sempre a força do eu.

Sobre o direito à velhice

A propósito da 3ª idade como um direito

Não é só a criança que deve ver reconhecido o direito a ter uma infância. Também os velhos devem ver reconhecido o direito a ter uma velhice digna. E não, isto não tem sido garantido.




A idade de reforma, na Europa, vai ficando cada vez mais na dependência da esperança média de vida e da sustentabilidade da segurança social. De modo que, se continuarmos a morrer cada vez mais tarde, o sistema vai garantindo que a reforma nos chegará, também, cada vez mais tarde - até porque o aumento da esperança média de vida, além de ser um dos factores contabilizados, também influencia directamente o outro factor, visto que exerce pressão sobre a sustentabilidade do sistema.

O problema não é que as pessoas de 65 anos estejam doentes e velhas, mas sim a ideia de que a vida de uma pessoa é para ser gasta no trabalho e que, por isso, até estar transformada num velho adoentado e incapacitado, tem de continuar a trabalhar.

Penso que seria mais interessante perceber que as pessoas têm direito a ter uma "velhice" útil para elas mesmas, para viajarem, para lerem, para estudarem, para pensarem - para tudo aquilo que não puderam fazer enquanto tiveram de ser úteis ao mercado de consumíveis. Tal como os infantes foram ganhando o direito à infância, também os velhos precisam de ganhar o direito à velhice, a uma velhice saudável e em plena actividade. Não é só o doente inactivo que merece a reforma. E já nem vou falar do direito a gozar do sistema para o qual contribuiu ao longo da vida.

A ideia de que o idoso activo e saudável deve continuar o seu trabalho, de que é por se manter activo no trabalho que permanece "vivo", deve ser abjurada como uma mentira. Não quero ser mal entendido: se quer continuar a ser activo trabalhando, se é assim que se define, se é assim que imagina que a vida deve continuar, o idoso deve ser livre de o fazer. Mas dever-lhe-ia ser dito que isso não tem de ser assim, que ele pode permanecer "vivo", "activo", "saudável" vivendo activamente para si, mas as coisas que ele realmente quer fazer. Deve ser-lhe dito que, se é verdade que "parar é morrer", também é verdade que pode "não parar" sem que isso tenha de significar ter de continuar a trabalhar.

Deve ser dito aos idosos que têm o direito a ser activos fora do mercado de trabalho. A gozar a sua velhice antes que, por força da natureza ou da doença, se lhes torne impossível fazê-lo.

sábado, 15 de julho de 2017

Texto e interpretação

A propósito da ilusão de que se pode tornar um texto mais preciso falando mais.



Qualquer texto pode receber sentidos diferentes entre si.

Exemplos:

Executive Order 12333, EUA, de Ronald Reagan:
No person employed by or acting on behalf of the United States Government shall engage in, or conspire to engage in, assassination.
O texto parece o mais claro e límpido do mundo. No entanto, ainda hoje se discute o que significa exactamente esta "assassination".

O mandamento da Tora 
Não matarás.
parece a coisa mais evidente do mundo. Duas palavras. E, no entanto, ainda hoje se discute o que significam, exactamente, este "não" e este "matarás".


O sentido não é analítico face ao texto. Cada texto admite sempre várias hipóteses interpretativas. De modo que a maior ilusão é a de que se pode reduzir esta "abertura" do texto dizendo mais coisas, empregando mais palavras, "esclarecendo" isto e aquilo, tornando mais "preciso" o conteúdo, pois quando maior for o texto e mais palavras contiver, mais fontes de confusão são criadas. A segunda maior ilusão é a de que, por intermédio de uma análise mais cuidada se pode chegar mais perto de um sentido supostamente "presente" no texto.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Do Relativismo Moral e das estratégias para o vencer - apontamentos sumários

A propósito da dificuldade que há para vencer o relativismo moral...


A tese de que há limites, ou de que há uma moralidade mínima transversal parece bastante fácil de aceitar, mas as coisas complicam-se assim que queremos começar a concretizar onde se situam tais limites. Na verdade, não parece haver nenhuma determinação moral que todas as culturas, todos os povos, muito menos todas as pessoas estejam dispostas a aceitar. Nenhuma mesmo. Então, parece sempre que aquele que estipula certos limites o faz a partir da sua própria cultura e mesmo a partir da sua própria sensibilidade, a qual também depende, em larga medida, de aspectos culturais. Por isso, quando dizemos, por exemplo, que o multiculturalismo não pode permitir o "horror", ou o "terror" - bem, aquilo que vale como horror ou terror parece depender de quem julga. Por outro lado, a perspectiva dita "científica" sugere a identificação entre "norma cultural ou social" e "norma moral". Ou melhor, do ponto de vista científico, as normas morais parecem não ser mais do que normas culturais - que, portanto, só surgiram porque se desencadearam determinadas condições históricas que as produziram, tal como qualquer outra norma social. Ou seja, do ponto de vista científico, a norma moral "não matarás" não parece ter um estatuto diferente da norma social "as mulheres não devem andar com os seios descobertos em público". Um desenvolvimento histórico diferente teria produzido uma norma social diferente, como acontece com os povos para quem é perfeitamente natural que as mulheres não cubram os seios. Deste ponto de vista, não parece haver nenhuma razão objectiva para considerar que uma norma moral seja mais válida do que outra, tal como não há nenhuma razão objectiva para considerar que uma norma social seja mais válida do que outra: as razões parecem ser sempre relativas, nunca objectivas, de modo que eu poderia escolher as normas morais mais úteis, mais convenientes, etc., tal como posso escolher vestir-me como me for mais útil tendo em conta se vai chover ou não.
Houve várias tentativas de resolver o assunto. Kant é, de facto, o mais conhecido - mas não conseguiu demonstrar que a razão seja capaz de produzir uma ética concreta que escape à arbitrariedade (como Hegel, Schpenhauer e até Lacan mostraram, para nomear apenas alguns, pois a teoria da Kant exerce uma atracção enorme sobre toda a gente que, não tendo mais que fazer, ocupa-se a atacar um qualquer aspecto dela). 
Mas houve outras tentativas. Fitche, por exemplo, pegou numa outra parte da filosofia de Kant e aplicou-a à moralidade. O juízo moral tal como Kant o apresentava era "determinante", e o juízo estético era "reflectinte". Ou seja: para julgar se uma acção é boa ou má, eu preciso de uma regra e para ter tais regras preciso de um princípio, portanto, o juízo moral tem uma forma determinante: há sempre um universal que determina um particular, é a regra "não deves roubar" que determina a acção de roubar como errada. Com o juízo estético isto não acontece: eu olho para um quadro e sei logo se ele é belo ou feio (se me aparece como belo, ou se me aparece como feio). Não preciso de saber nenhuma regra. Pelo contrário, é o particular que me dá o universal: olho para uma rapariga e vejo imediatamente que ela é bela. Fichte foi o primeiro a aplicar o juízo reflectinte à ética, o que significa, basicamente, que o juízo moral se aplica a particulares sem precisar de normas (e, assim, sem precisar das normas externas fornecidas pela comunidade). Arendt tentou, mais tarde, esta mesma estratégia.
Mas há outras estratégias, como a de Hegel, a qual também foi imensamente influente na nossa história. Para Hegel, é o Estado - e as instituições - que podem fixar uma eticidade concreta. Para Hegel, a Lei tinha uma consciência e o tribunal era a consciência privilegiada, à qual todas as demais teriam de obedecer em caso de conflito. Claro que Hegel não chegou a ver o que o Nazismo fez da Lei.
Seja como for, a ideia é conseguir identificar um ponto fixo que permita produzir determinações de ordem moral sem cair na arbitrariedade. Houve muitos filósofos que simplesmente desistiram disto. Alguns destes entregaram a moral à sensibilidade, como fez Hume ainda antes de Kant começar a fixação da moral. Alguns fenomenólogos seguiram vias semelhantes fazendo da moralidade uma instância da afectividade. De qualquer modo, este tipo de soluções não oferece qualquer ponto fixo. Pelo contrário, desistem e até condenam a tentativa de fixar a moralidade. E estes filósofos são, muitas vezes, muito bem recebidos, porque nem sempre nestas discussões as pessoas têm presente a extrema arbitrariedade da sensibilidade ou da afectividade. Mas bastará ter presente que um fenomenólogo que defenda a afectividade como fundamento da moralidade não terá qualquer argumento para condenar um psicopata que tenha um apetite imenso por matar outros seres humanos, ou para condenar a acção da progenitora que, não encontrando em si qualquer vestígio de instinto ou sentimento maternal, apenas sente repulsa pelo seu filho recém nascido e, por isso, o joga na sanita mais próxima.

terça-feira, 13 de junho de 2017

Suspender os direitos humanos é revogá-los

A propósito da posição de Theresa May relativamente aos Direitos Humanos


"Eu sou clara: se as leis dos direitos humanos se metem no caminho do combate ao extremismo e ao terrorismo, nós iremos mudar essas leis para manter o povo britânico seguro."
"I'm clear: if human rights laws get in the way of tackling extremism and terrorism, we will change those laws to keep British people safe."
Theresa May

A noção aqui implicada é perigosa, muito perigosa. A noção em causa é a de que se os Direitos Humanos atrapalham o combate ao terrorismo e ao extremismo, então vamos mudar os Direitos Humanos. Ou seja, na prática significa que se os Direitos Humanos atrapalham uma determinada agenda política, então tem-se legitimidade para suspender ou alterar tais direitos humanos.
A cumprir-se esta ameaça acontecem eo ipso duas coisas:

1. Abre-se um precedente muito perigoso, e este precedente é o de permitir alterar os Direitos Humanos - ou aquilo em que eles se corporizam na prática - para cumprir uma determinada agenda. Nunca se sabe quem resolverá seguir este exemplo e alterar os Direitos Humanos para, com isso, seguir a sua própria agenda. Quem sabe que agenda poderá levar Donald Trump, ou uma Le Pen na presidência francesa, a alterar os Direitos Humanos. Isto só para dar dois exemplos, mas a realidade pode ser muito mais eloquente e imaginativa, como já o provou no passado. A própria noção de que existem Direitos Humanos foi desenhada para evitar e impedir aventuras deste tipo.

2. Os Terroristas terão aqui a sua primeira vitória efectiva ao levarem o Ocidente a abdicar dos seus princípios definidores. Com isto os terroristas mostrarão na prática a hipocrisia do Ocidente que tantas vezes usou os Direitos Humanos como desculpa para atacar e declarar guerra contra os seus inimigos. O Ocidente, ao entrar por esta via, entra pela via dos próprios terroristas. A via do "tudo vale", do "não há limites". E isto é a instalação do terror na política, porque só ilusoriamente esta medida pode levar a uma sociedade livre de medo e de terror. Pelo contrário, introduzirá mais medo, mais terror, porque os cidadãos perdem a garantia de que alguns dos seus direitos são inalienáveis da sua condição humana.

Gostava de dizer que os britânicos penalizaram May por esta ousadia tão pouco democrática. Mas não estou certo de que esta "mentalidade" já não esteja a fazer escola no Ocidente. Contudo, é muito perigosa a ideia, que anda de mãos dadas com a que discuti acima, de que a certas pessoas podem retirar-se os seus Direitos Humanos, pois a própria noção de Direitos Humanos, mais uma vez, foi desenhada, justamente, contra a ideia de que certos indivíduos não têm direitos. Os Direitos Humanos só fazem sentido enquanto tal na medida em que sejam universais (isto é, precisamente, a razão pela qual lhe chamamos "Humanos") e inalienáveis.

Ora, significa isto que os Direitos Humanos não podem ser alterados, como se correspondessem a leis divinas escritas por Deus na pedra da História? De modo nenhum. Os Direitos Humanos podem e devem ser mudados, alterados, etc., pois, como se sabe, foram os Direitos Humanos que foram feitos para os homens, e não os homens para os Direitos Humanos. Mas estas alterações e mudanças, a ocorrerem, devem ser fruto de uma ponderação racional sobre o que significa ser humano e sobre os direitos que devem ser inalienáveis da condição de humano. Estas alterações nunca devem decorrer de um pensamento do tipo: "agora dava jeito que...", ou "isto atrapalha os nossos interesses". Porque, no momento em que se fizer tal, está-se a criar, de mão-beijada, as condições para um novo Holocausto.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Antes fosses ou frio ou quente

A propósito da indiferença...


Um dos momentos em que, na Bíblia, se condena a indiferença.

«Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente. Antes fosses ou frio ou quente. Assim, porque és morno, e nem quente nem frio, estou quase a vomitar-te da minha boca.»
João, Revelação 3:15-16
Οἶδά σου τὰ ἔργα, ὅτι οὔτε ψυχρὸς εἶ οὔτε ζεστός. ὄφελον ψυχρὸς ἦς ἢ ζεστός. οὕτως, ὅτι χλιαρὸς εἶ, καὶ οὔτε ζεστὸς οὔτε ψυχρός, μέλλω σε ἐμέσαι ἐκ τοῦ στόματός μου.
Note-se que o texto - posto na boca de Jesus pelo autor do chamado Apocalipse - parece dizer que é preferível errar do que permanecer a salvo não tomando posição. Outros textos dos evangelhos parecem confirmar esta posição de Jesus.

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Vida ou morte

A propósito de perspectivas


1. O traço distintivo da verdade é: "a verdade mata".
2. A primeira das verdades da existência é: "tu és o ponto a partir do qual tudo existe ou não existe para ti".
3. A outra é: "tu nada és, sejas tu quem fores ou venhas alguma vez a ser".
4. Portanto: "tu és tudo quanto tens e tudo quanto tens é nada".
5. Tu és aquilo com o qual e sem o qual a verdade permanece tal e qual, a saber: que "quer existas, quer não existas, nada és e nada vens a ser".


Citações:
"Dormir é bom, a morte é melhor; mas, é claro, o melhor de tudo seria nunca ter chegado sequer a nascer". Heinrich Heine
"O melhor de tudo para ti é-te completamente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Porém, o segundo melhor para ti é morrer o mais brevemente possível". Nietzsche
"Um rumor percorre desde há muito a boca dos homens: que não ter nascido é o melhor de tudo e que estar morto é melhor do que viver". Aristóteles

Existência e verdade

A propósito de verdades




Uma das verdades da existência é: "tu és o ponto a partir do qual tudo existe ou não existe para ti".
A outra verdade é: "tu nada és, sejas tu quem fores ou venhas alguma vez a ser".
Depois há pessoas para quem uma destas verdades é mais evidente, e pessoas para quem a outra verdade é mais evidente. Há pessoas para quem só uma delas vem ao de cima. E, finalmente, há pessoas que têm de lidar com ambas.
Cada uma destas fórmulas só é catastrófica quando uma pessoa a descobre tendo permanecido até aí sob o império da outra.
Seja como for, tudo o que se possa dizer da existência pode ser resumido numa das duas fórmulas ou numa mistura de ambas. Se não puder ser resumido a nenhuma das duas, é uma mentira ou uma ilusão.

A verdade mata.
Aquilo que não mata, não é verdade.

terça-feira, 30 de maio de 2017

Odiar o próprio pai e a própria mãe

A propósito de Lucas 14:26

Jesus não está a pedir-nos que odiemos tudo e todos e a nós mesmos. Mas o que também é errado é presumirmos que a palavra de Jesus deve ser, ou deve adequar-se, àquilo que à partida queremos que nos seja dito. Jesus - como, aliás, outros na história da humanidade - teve essa característica que é a de não encaixar as bitolas habituais. E é sempre uma absurdidade pretender-se fazê-lo caber nos nossos padrões habituais, nos nossos preconceitos, nos nossos juízos ao sabor do senso-comum. Se alguém pretende procurar os ensinamentos de Jesus não deve fazê-lo impondo-lhe a condição de que Jesus só possa dizer aquilo com que à partida concordará. Jesus não lhe dirá sempre o que espera ouvir, não lhe dirá sempre o que quer ouvir. Aliás - se for honesto e não deturpar as suas palavras - verificará que, na maior parte das vezes, Jesus lhe dirá o que não espera ouvir, lhe dirá o que não quer ouvir. Porque já a Abraão não foi pedido que amasse o seu filho acima de todas as coisas, e Jesus também não nos pede que sejamos amigos dos nossos amigos. A Abraão foi pedido que matasse o seu filho, e Jesus pediu-nos que amassemos os nossos inimigos.
Quando Sócrates disse que "vale mais sofrer uma injustiça do que cometê-la", todos o julgaram louco. Quando Jesus disse que "devemos amar aos nossos inimigos", julgaram-no louco. Porque os homens sempre se querem colocar na posição de medida de todas as coisas, mas na maioria das vezes nem sequer sabem qual é a sua própria medida.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

A difícil relação entre felicidade e ética

A propósito de felicidade


Como todos os homens estão de acordo em quererem ser felizes, ainda que um o consiga por um caminho e outro por outro, parece que só há um objectivo que todos se esforçam por atingir, e esse é a felicidade. Assim, também estariam de acordo em querer ser felizes, seja qual for o caminho que leve à felicidade, e escolherão o caminho que mais rápida e seguramente os faça experimentar a alegria a que chamam vida feliz.


O problema que se põe é que, se nada mais houver a dizer, então não há espaço para a ética na vida humana, porque nenhuma razão há para escolher ou preterir senão a dita felicidade, e seja qual for o caminho que leve à dita, esse deve ser escolhido sem reservas. Assim, se um sujeito é feliz pelo caminho X, e outro pelo Y, nenhuma consideração ética desvaloriza um ou outro, e tão legítimo é enganar, roubar ou matar para ser feliz, como é legítima qualquer outra actividade conforme ao temperamento e à inclinação de cada um.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

O esteta face ao ético

A propósito da superioridade do estado ético face ao estético

Por vezes, tende-se a pensar que a relação entre o estádio ético e o estético em Kierkegaard é uma relação de superioridade cognitiva. Aliás, é comum que um comentador que começou por afastar esta hipótese, depois, quando tem de descrever a superioridade do ético face ao estético, recorra a categorias do âmbito cognitivo...

Mas Kierkegaard aponta claramente para o inverso: é possível que um ponto de vista estético seja, do ponto de vista cognitivo, racional, etc., claramente superior a um ponto de vista ético. No Ou/Ou, o esteta é, claramente, o ponto de vista mais compreensivo, com a perspectiva mais abrangente, mais acurada, mais lúcida e o ponto de vista ético, o de B, na segunda parte, não introduz nenhum ganho de conhecimento, não produz nenhum alargamento cognitivo... B reconhece que A lhe é intelectualmente superior e reconhece a acurácia da sua perspectiva. De facto, B afirma compreender a visão de A e concordar com ela, admitindo que está correcta.

Se é certo que Kierkegaard atribui ao estádio ético uma superioridade que o estético, seja qual for a sua forma, não pode receber - então essa superioridade não pode ter que ver com qualquer conhecimento que o esteta tenha de adquirir para isso.

Os comentadores de Kierkegaard - quando reconhecem este ponto - parecem debater-se com isto de forma algo curiosa, porque como não conseguem encontrar mais nada acabam por recorrer a atributos cognitivos que, supostamente, o ético "compreende melhor", ou afirmam que B "vê algo que A não percebe", etc.
E isto é, em si mesmo, extremamente risível!

Uma forma de vida

A propósito do "salto"




Kierkegaard insiste que a existência tem a forma de salto e, por isso mesmo, de aposta. Claro que o sujeito procura que a vida tenha a forma de troca. O homem gostaria de poder escolher como quem troca isto por aquilo, tal como se faz quando se vai ao hiper-mercado. 

Gostaríamos de saber que quando abdicamos de Y tendo em vista X, há alguma espécie de garantia celestial. Assim, o homem prudente apenas aceita ir em busca de X se puder suportar a sua escolha em alguma forma de garantia. Mas Kierkegaard insiste: a vida não tem a forma de "troca", mas sim a forma de "aposta". Por mais que se tente, a forma da vida será sempre a de aposta e nunca a de uma troca, precisamente pela razão de que se pode sempre acabar na bancarrota total. 

Este reconhecimento de Kierkegaard estraga as contas de quem vá procurar nele um pensador cristão pronto a oferecer uma visão da vida garantida por alguma espécie de consórcio de seguradoras ou por um bombeiro universal!

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Kierkegaard, o "salto" e a angústia

A propósito da noção de "salto".


A noção de "salto", em Kierkegaard, refere-se, em primeiro lugar, à situação em que o sujeito, por sua conta e risco, tem de escolher a ideia pela qual há-de viver e morrer.


O salto é sempre um momento de absoluto desamparo, se se trata, efectivamente, de uma decisão, de uma escolha efectiva, se não é um mero seguimento de algo dado por pressuposto, porque se não é um seguimento de algo simplesmente dado por pressuposto, então requer do sujeito uma decisão radical, que seja capaz de fundar, de ser fundamento - caso contrário, fica-se apenas aí, no desamparo absoluto.

Por isso mesmo, a decisão é ocasião de angústia, e a decisão autêntica não pode deixar de ser, antes de mais nada, o momento da angústia mais profunda.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Não há forma de fundamentar a Moral

A propósito de fundamentação da Moral...


Nietzsche e Kierkegaard em relação à fundamentação ética.
A questão de fundo, ao nível da fundamentação ética, não é apenas a formulação de um princípio (seja o imperativo categórico, seja a utilidade, seja a felicidade, etc.), mas sim a questão de "porquê ser moral?".
Nietzsche e Kierkegaard concordam: a este nível, não há resposta. Ou melhor, a resposta a esta questão depende de uma "crença moral".

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

O mundo laico e os seus rituais

A propósito de rituais


Os rituais servem para esconder a vacuidade.

Quanto mais o mundo perde sentido, mais precisa de rituais.
O ritual é como o paliativo existencial: na ausência de algo que cubra o vazio vai-se em procissão sobre o abismo.

Por isso mesmo, o mundo laico e laicizante não erradica os rituais, mas multiplica-os em etiquetas, protocolos e cerimónias!


A maior força do capitalismo não está nos seus ideais, nos seus objectivos, na finalidade que oferece ou nos sentidos que abre, mas sim nos seus rituais e no poder destes para ocultarem o vazio de tudo isso.

Sem lei não há transgressão

A propósito de um trecho altamente sobre-determinado, denso, complexo e perfeitamente filosófico da Epístola aos Romanos, de São Paulo, 7:7-8:


Que diremos, então? É a lei pecado [ἁμαρτία]? De modo nenhum. Mas eu não teria como saber o que é pecado, se não através da lei, nem sequer teria conhecido a cobiça [ἐπιθυμία], se a lei não tivesse dito: não cobiçarás!
Mas o pecado, tomando ocasião através do mandamento produziu em mim toda a cobiça. De facto, sem a lei, o pecado está morto.


*ἁμαρτία: falta, falhanço; erro, erro de julgamento; falta ou erro imputável ao agente; em textos religiosos, significa habitualmente "pecado", na medida em que esta noção tem um alcance especificamente religioso (não apenas jurídico, embora envolva a violação de uma lei, não apenas moral, embora envolva a noção de imoral).

*ἐπιθυμία: desejo forte; cobiça exacerbada de algo; pode significar um desejo poderoso em geral, mas frequentemente refere-se à lascívia (desejo sexual exacerbado) em particular; em Aristóteles, o termo não significa apenas "desejo", pois implica força ou poder que dificulta ou obstaculiza a capacidade do sujeito para lhe resistir; nos textos filosóficos e religiosos em geral, habitualmente, não significa apenas a existência de um desejo forte, mas também a noção de imputabilidade ou culpa.




Texto grego:
Τί οὖν ἐροῦμεν; ὁ νόμος ἁμαρτία; μὴ γένοιτο· ἀλλὰ τὴν ἁμαρτίαν οὐκ ἔγνων εἰ μὴ διὰ νόμου, τήν τε γὰρ ἐπιθυμίαν οὐκ ᾔδειν εἰ μὴ ὁ νόμος ἔλεγεν Οὐκ ἐπιθυμήσεις·
ἀφορμὴν δὲ λαβοῦσα ἡ ἁμαρτία διὰ τῆς ἐντολῆς κατειργάσατο ἐν ἐμοὶ πᾶσαν ἐπιθυμίαν, χωρὶς γὰρ νόμου ἁμαρτία νεκρά.
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