quarta-feira, 30 de março de 2016

Se cais levantas-te

A propósito de quedas...


É comum ouvir aquele conselho aos mais novos: faz todas as asneiras que tens de fazer quando és mais novo, pois enquanto és jovem se cais levantas-te...


É curioso. Esta nota pode ser encontrada em bastantes moralistas, mesmo nos mais rigorosos. Os filósofos reconhecem, simultaneamente, que é a juventude o tempo da educação, da formação do carácter, o tempo oportuno, o tempo certo, o kairós do humano... e que a juventude é o tempo dos erros. Mesmo Kierkegaard reconhece que há um tempo para a brincadeira, um tempo que não é nem deve ser de seriedade... e, simultaneamente, que a juventude é o tempo oportuno porque, se na juventude segues pelo caminho errado, mais tarde ser-te-á tão mais difícil - talvez impossível - mudar de rumo...


Ora, de facto, dá as quedas que tens para dar na tua juventude porque, então, se cais levantas-te...


Mas... cuidado: é que tudo depende da queda. Se tropeças num calhau levantas-te com os joelhos a sangrar mas a tua carne endurece. Se escorregas no molhado levantas-te com as mãos doridas mas aprendes a evitar o molhado. Mas se te atiras de um arranha-céus suicidas-te. É assim com a juventude como é com qualquer queda: se cais levantas-te, mas cuidado para que a queda não seja maior do que aquilo que podes suportar e continuar a ter uma vida. O problema é que na juventude ainda não se sabe verdadeiramente quais são os nossos limites - se é que alguma vez se sabe. E se é a queda que nos ensina os limites, há também quedas que nos podem destruir.

segunda-feira, 28 de março de 2016

Superprodução e consumo de massas

A propósito de produção e consumo no mundo contemporâneo.

As crises do mundo contemporâneo ocidental são coisa completamente nova e distinta das crises que assolaram o mundo ao longo da história. Isto porque não são crises de produção. Antigamente - há séculos volvidos - havia crise porque havia fome e havia fome porque havia crises de produção. Dizia-se que havia crise quando não havia do que comer. Hoje, as crises dão-se em plena superabundância: há demasiada carne, demasiados frutos, demasiado leite, etc. Há tudo em demasia. E a nossa economia de consumo só funciona porque há essa superprodução. O consumo massificado precisa de produção superabundante para que os preços permaneçam baixos. Simultaneamente, os preços baixos debilitam o sector produtivo, baixam os rendimentos do sector primário e pressionam para que haja mais produtividade e mais rentabilidade - o que significa que estamos numa espécie de círculo vicioso.

quinta-feira, 24 de março de 2016

Divina Comédia e Ironia

A propósito da Ironia da Divina Comédia


Na porta do Inferno põe Dante as seguintes palavras:
"fecemi la divina podestate,| la somma sapïenza e 'l primo amore".
Divina Comédia, III, 5-6.


O que, em português, verte mais ou menos isto:


"Fez-me a divina potestade,| a sabedoria suprema e o primeiro amor".


Quer dizer: a divina potestade, a sabedoria suprema e o primeiro amor fizeram o Inferno. Ou seja, o Inferno foi feito por Deus.


Estas linhas têm uma conotação forte e múltiplos sentidos podem ser descortinados. Um dos mais evidentes é o de que o Inferno foi feito pelo Amor - não um amor qualquer, mas pelo Primeiro Amor, pelo amor original, pelo Amor de Deus. O amor de Deus fez o Inferno.


E continua: "Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate": "Abandonai toda a esperança, vós que entrais".


Que o local de onde toda a esperança fica arredada se nele alguma vez se entra seja obra do amor é algo que deve fazer-nos ficar estupefactos: talvez Dante esteja a brincar com os conceitos, afinal, o Inferno terá sido feito por Deus, visto que Deus é o Criador e, por isso, também o Inferno teve de ser obra sua - que, então, o deve ter feito em amor parece conceptualmente claro: Deus criou o mundo por amor e com isso criou todas as coisas, as boas, é certo, mas também as más, por isso, o próprio Inferno foi feito por amor na medida em que Deus tudo faça por amor! Também o Inferno foi feito por amor.


Mas Dante vai mais longe... por exemplo: mais à frente, canto V, uma das almas no Inferno, Francesca, acusa o amor da sua situação. Segundo ela, foi por amor que fez aquilo que fez e seguiu o caminho que a levou a estar agora ali, no Inferno.




Alguns prisioneiros talvez se possam identificar com Francesca. O prisioneiro tende a culpar tudo e todos pelas suas acções. Talvez culpe a miséria da sua vida, a injustiça do mundo, as suas necessidades, as necessidades dos seus filhos. Às vezes, quando está na prisão, o prisioneiro pode perceber que está a fazer o mesmo que Francesca.


Francesca culpa o amor pelo facto de estar ali, pois, segundo ela, fez o que fez por amor. Foi o amor que a fez fazer as coisas que fez. Por amor. "O amor que o nosso coração tão rapidamente aprende".


Quando alguém fala com Dante - Dante coloca-se a si mesmo como o protagonista da Divina Comédia, o que, por si só, é de uma fina ironia - é porque Dante tem algo a aprender com o que esse alguém diz.


E o que terá Dante a perceber com Francesca? Dante aprende que há uma proximidade muito perigosa entre o amor e o Inferno. Em múltiplos sentidos. O inferno foi feito pelo amor e Dante verifica que muitas das almas no inferno estão lá por amor.


O que é que se pode fazer por amor? Bem, segundo a Divina Comédia, tudo se faz por amor: até mesmo o Inferno, até mesmo pôr-se a si mesmo a caminho do inferno. Dante precisa de perceber algo com Francesca.

Francesca é uma personagem apelativa - ao contrário de outros condenados no inferno - não é repelente. Somos tentados a simpatizar com ela.

Com Francesca Dante não precisa só de aprender quanto as inclinações nos podem afundar no inferno. O ponto crucial é, justamente, o contrário disso: Dante precisa de compreender que não foi o amor de Francesca que a condenou, que não são as nossas inclinações que nos levam ao inferno. O problema de Francesca é que ele permanece cega para a sua culpa: ela não se compreende na sua culpabilidade, não se julga culpável. Joga a responsabilidade no amor: foi por amor que se perdeu.

Francesca é uma personagem enganadora: por mais charmosa que ela possa parecer-nos, ela está no inferno. Esse é um ponto importante. Ela é culpada porque não pode absolver-se da sua própria responsabilidade em virtude das suas inclinações. As inclinações não decidem. O amor de Francesca não tomou decisão alguma: foi Francesca que tomou as suas decisões. A Francesca, na sua totalidade, era também as suas inclinações, mas condenou-se quando decidiu ser apenas as suas inclinações.


Há uma exegése complexa que o livro de Dante exige. Que o Inferno seja obra do amor não significa, por si mesmo, que o amor fabrique o mal. O Inferno não é o Mal. Também Kant percebeu muito bem que se podem fazer coisas boas na sequência do mal radical. O mal radical pode conviver com uma vida cheia de boas acções. Da mesma forma, seria possível percorrer o caminho do inferno fazendo só coisas boas. Mas Francesca significa que o amor pode fazer o mal - e, na medida em que faz o mal, ser efectivamente o fazedor do inferno.



Tudo isto é estranho para nós que estamos mais próximos de pensar que o Inferno é obra do ódio, que o mal é feito por ódio. Que o amor obra o bem e que o bem é a obra do amor.

terça-feira, 22 de março de 2016

O terrorismo é um ataque ao nosso modo de vida?

A propósito de terror e banalidade...

O terrorismo é um ataque ao nosso modo de vida?
É.
Mas é esse o maior problema com o terrorismo?
Não.
O terrorismo não seria menos errado se o nosso modo de vida fosse errado. O terrorismo não pode ser resumido como "um ataque ao nosso modo de vida"... Só pensamos que o terrorismo pode ser definido dessa maneira porque somos fundamentalmente egocêntricos. Pensamos que somos o centro do mundo, que somos o verdadeiro mundo, a verdadeira civilização, a verdadeira humanidade. Por isso, é natural que tenhamos mais dificuldade em sentirmo-nos tocados pelos atentados noutras partes do mundo. Que os terroristas se expludam no meio de uma cidade centro-africana toca-nos como uma curiosidade exótica.
...
Só quando o terror atinge as pessoas que apanham o metro, que andam de sub-urbano, que esperam pelo avião, que têm o nosso modo de vida, que são iguais a nós - só então, o terror nos atinge efectivamente.
...
Mas, convenhamos, o nosso modo de vida ocidental contemporâneo está longe de ser idílico, está longe de ser ideal, estamos longe de ser perfeitos exemplos de candura... o Ocidente não é um exemplo de rectidão moral, ética e política! O nosso modo de vida é profundamente desumanizado, materializado, sem alma e zombificado...


Ainda assim, o terrorismo está errado. O terrorismo está errado mesmo que o nosso modo de vida esteja também errado em muitos aspectos...


Agora, quando alguém diz que a nossa maior vitória contra o terrorismo é mantermos o nosso modo de vida, a nossa banalidade, há algo profundamente errado neste pensamento. A nossa vitória contra o terrorismo é acabar com ele. Erradicá-lo da face da terra. Quanto às supostas virtudes e pretensos vícios do nosso modo de vida - isso é uma discussão que tem de ser feita à parte... Caso contrário parece que há um outro terror a entrar pela retaguarda... como se para condenarmos o terrorismo tivéssemos de endeusar o modo de vida tipicamente ocidental...

O terror e o problema do paliativo

A propósito de terrorismo na Europa...

Imagine-se que um sujeito tem uma doença. Esta doença é fatal - talvez a médio-longo prazo. Contudo, imagine-se que há uma cura, desde que o medicamento certo seja tomado em tempo útil. Por outro lado, esta doença é tal que provoca dores horríveis no paciente e o problema é que a cura provoca, também, uma espécie de sofrimento agonizante. Há, no entanto, um paliativo bastante eficaz capaz de retirar as dores ao paciente. Infelizmente, o princípio activo capaz de atacar a doença e curar o paciente é incompatível com o paliativo.

Ora, se o paciente, com medo do sofrimento provocado pela cura, preferisse eliminar as dores tomando o paliativo, não diríamos que a sua escolha tinha sido imprudente?
Acontece, porém, que se passa com o paciente o mesmo que com aquela raposa que queria comer as uvas, mas constatando que estavam longe de mais para lhes chegar, se resume a dizer que, afinal, "até estão verdes"!
Ora, se o paciente, com medo do sofrimento provocado pela cura, preferisse eliminar as dores tomando o paliativo, não diríamos que a sua escolha tinha sido imprudente?Acontece, porém, que se passa com o paciente o mesmo que com aquela raposa que queria comer as uvas, mas constatando que estavam longe de mais para lhes chegar, se resume a dizer que, afinal, "até estão verdes"!É neste ponto que estamos no combate ao terrorismo. O Ocidente é esse paciente!

Primeiro: é importante que não se actue por impulso emocional sempre que há atentados.

Segundo: a verdadeira guerra ao terrorismo é a que se trava dos os dias - as dezenas de atentados evitados sem que a população se aperceba.

Mas há um problema: esse trabalho que os serviços de segurança fazem, e que é importantíssimo, não é, na verdade, uma luta contra o terrorismo. É apenas tratamento sintomático, não etiológico. Apenas ataca os efeitos, não as causas. A União Europeia não tem feito nada de relevante contra o terrorismo ao nível do combate às suas causas. Continua iludida de que pode resolver todos os seus problemas mandando milhões de euros para aqui ou para ali...

sábado, 12 de março de 2016

Os homens são naturalmente hipócritas



A propósito da hipocrisia humana.


"Em vão os espelhos se multiplicam à nossa volta e reflectem com exactidão geométrica a luz e a verdade; no momento em que os raios penetram o nosso olho e nos mostram tal como somos, o amor-próprio introduz o seu prisma enganador entre nós e a nossa imagem, e apresenta-nos uma divindade."

Xavier de Maistre, Viagem à Roda do meu Quarto



"Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
[...]
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
[...]

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?"

[Fernando Pessoa, ]Álvaro de Campos, Poema em Linha Recta



"em nenhuma outra coisa alguém se engana mais facilmente do que naquilo que favorece a sua boa opinião acerca de si mesmo"

Kant, A Religião nos Limites da Simples Razão



"os homens amam tanto a verdade que mesmo aqueles que vivem no erro obstinadamente o proclamam como sendo verdade"

Santo Agostinho, Confissões


Como se sabe, segundo Kierkegaard, os homens são naturalmente hipócritas. Como se sabe, esta tese não é nova - como se pode comprovar nas citações anteriores.

Não pretendo aqui defender esta tese. Apenas afastá-la de um equívoco.

A tese de que os homens são hipócritas não é o contrário de dizer que os homens amam a verdade. Pelo contrário, a hipocrisia só é possível na medida e que os homens amam a verdade. Se não a amassem não poderiam ser hipócritas quando se comprazem no erro.

Problemas filosóficos - Problemas existenciais

A propósito da questão - "O que é um problema existencial?"*


Muitas confusões surgem a propósito de problemas existenciais. Por exemplo, é comum relacionar suicídio e problemas existenciais, como se as pessoas se suicidassem sempre devido a problemas existenciais.

Na base desta confusão bastante comum está uma interpretação literal e imediata da expressão problema existencial. Segundo esta interpretação literal, um problema existencial seria um problema que surge na existência. Ora, como é evidente, não pode ser esse o significado da expressão, visto que nesse caso todos os problemas seriam problemas existenciais... pois que todos os problemas surgem na existência.

Ora, de facto nem todas as pessoas que se suicidam o farão por motivos propriamente existenciais. E nem todos os problemas que se têm na vida são problemas existenciais. Nem mesmo todos os problemas graves, difíceis de resolver são existenciais. E há problemas que ameaçam a nossa própria existência que não são problemas existenciais.

Pense-se um pouco: o que queremos dizer quando afirmamos que este ou aquele problema é um problema existencial?

Bem, com certeza não queremos dizer que é um problema psicológico, ou um problema amoroso. No entanto, as pessoas podem suicidar-se devido a problemas psicológicos ou amorosos.

Se um sujeito disser que foi abandonado pela sua namorada e que por isso quer morrer eu não direi que ele tem um problema existencial. Mas se um sujeito disser que anda a tentar perceber qual é o sentido da sua vida, então eu já direi sem qualquer dúvida que está a colocar um problema existencial. O sentido da vida é um problema existencial, mas passar fome não o é. No entanto, a fome é um problema muito importante, premente, decisivo na vida de uma pessoa.

Um problema existencial, pelo simples facto de ser um problema existencial, não é nem mais nem menos importante do que outros problemas. Os outros problemas podem ocupar-nos a vida e é perfeitamente normal que o façam: as mulheres que vivem em zonas recônditas de África e têm de percorrer diariamente vários quilómetros simplesmente para se abastecerem de água têm aqui uma dificuldade assinalável. Uma mulher que tem um marido que lhe bate constantemente, tem um problema muito grave na sua vida. Etc. Mas estes problemas não são problemas existenciais.

Na verdade, os problemas existenciais podem desempenhar um papel muito reduzido na minha vida. Se eu tenho cinco filhos para alimentar num país corrupto e sub-desenvolvido, que não me oferece igualdade de oportunidades e que me castiga com impostos excessivos, talvez os problemas existenciais tendam a passar despercebidos. Ou talvez não passem despercebidos. Seja como for, a questão é que nem todos os problemas graves são problemas existenciais.

Portanto, assim como se pode ter problemas de saúde, psicológicos, psiquiátricos, de dinheiro, de emprego, de trabalho, etc., também se pode ter problemas existenciais, mas estes não se confundem com aqueles... E, normalmente, quando nós temos problemas existenciais somos também capazes de dar conta de uma certa peculiaridade, especificidade, deste tipo de problemas - mesmo se nunca estudámos filosofia.

Ora, tendo afastado estes falsos amigos, estas confusões habituais, podemos então perceber que os problemas existenciais parecem ter que ver com a Filosofia. E, de facto, assim é.

No entanto, nem todos os problemas filosóficos são problemas existenciais. Um problema de lógica não é existencial. Mas os problemas existenciais são sempre problemas filosóficos.

Então, o que são problemas filosóficos?

A dificuldade que há em definir os problemas existenciais tem que ver com a dificuldade própria de definir os problemas filosóficos, e esta está relacionada com a dificuldade que há em definir a Filosofia.

Uma boa definição de Filosofia deveria incluir todas as correntes, todas as metodologias e todos os objectos de estudo da Filosofia.

Por exemplo, embora eu possa ser um filósofo existencialista não devo definir a Filosofia de modo a que só o Existencialismo esteja incluído, mas também as outras correntes. Se eu sou fenomenólogo não devo fornecer uma definição de Filosofia que exclua as restantes metodologias. Uma boa definição deve incluir as várias correntes e as várias metodologias.

O problema do objecto de estudo da Filosofia também é difícil. De facto, cada ciência tem o seu objecto, mas a Filosofia lida com muitos objectos. Por isso mesmo, a Filosofia está dividida em muitas áreas. A Epistemologia, a Axiologia, a Ética, a Lógica, são áreas da Filosofia, cada uma com um objecto diferente, mas todas elas são áreas filosóficas e é muito difícil perceber o que é que as une a todas dentro de um mesmo conceito, o conceito de Filosofia.

Muitas vezes tem-se a tentação de dizer que aquilo que define a Filosofia é a imprecisão, mas isso não é verdade. A Metafísica é, de facto, algo impreciso, mas isso não significa que não seja rigorosa. Simplesmente, tem um rigor diferente da matemática. A Ética é uma disciplina cujos problemas são abertos, isto é, para os quais não é possível dar uma resposta definitiva, unívoca e absolutamente indiscutível. Claro que isso não significa que a investigação em Ética não seja rigorosa. Todavia, a Lógica não é apenas uma disciplina rigorosa como é absolutamente precisa e completamente fechada. Os problemas lógicos têm a precisão, o rigor e a apodicticidade da matemática. Têm uma resposta objectiva e indiscutível: se P implica Q e P e é o caso, então Q é o caso.

Dado que a Filosofia tem muitos objectos (os valores na Axiologia, a acção na Ética, a ciência na Epistemologia, etc.), por vezes tem-se a tentação de dizer que os problemas filosóficos não têm um objecto específico. Ora, isto é pura e simplesmente errado.

Se um problema filosófico não tem um objecto específico, então o problema deve estar mal formulado. Claro que há problemas, digamos assim, muldisciplinares, mas essa é outra questão. Quando pergunto "o que é o conhecimento?", esta pergunta filosófica tem um objecto específico, a saber, o conhecimento - por isso, pertence à Filosofia do Conhecimento. Se eu perguntar "o que é a Beleza?", esta pergunta filosófica tem um objecto específico: a Beleza - por isso, pertence à Estética.

É certo que alguns dos objectos da Filosofia não são definíveis da mesma maneira que o são os objectos da Ciência. É extraordinariamente difícil perceber o que é o conhecimento, ou o que significa conhecer algo. Talvez nem seja possível dar uma definição definitiva. Mas, de qualquer forma, quando pergunto "o que é o conhecimento?" tenho um objecto específico: pergunto pelo conhecimento e não pela beleza, ou pela arte, ou pela política, ou pelo átomo, ou pelas forças da natureza.

Portanto, os problemas filosóficos - se estão bem formulados - têm objectos específicos distintos, ainda que estes objectos não sejam claros. Quer dizer: posso não ser capaz de definir exactamente o que é o conhecimento, mas os problemas da Filosofia do Conhecimento têm um objecto específico que é o conhecimento.

Ora, os problemas existenciais são um tipo específico de problemas filosóficos que, como tal, devem ter um objecto específico. O objecto é, como não poderia deixar de ser, a existência humana. É certo que o que seja isso de "existência humana" é muito complexo de definir. Não é estar simplesmente aí ao lado de outros objectos como um como está ao lado de outro em cima da mesa. O humano não está no mundo ao mesmo modo que um copo está no mundo. O estar-aí do humano é específico e não se deixa capturar sem mais. Quer dizer, em certo sentido, nós sabemos o que é existir, nós sabemos o que é estar-aí, mas sabemos no modo do estar-aí que é o nosso, e não no modo teórico.

Mas isto já é importante. Os problemas existenciais são problemas filosóficos que têm como objecto a existência no modo da existência.

O que quer isto dizer?

Por exemplo, se eu coloco a pergunta "qual é o sentido da vida?" estou a colocar um problema existencial. Agora imagine-se que eu sou filósofo e estou a colocar o problema numa dissertação de mestrado. Eu coloco o problema do ponto de vista teórico e tento resolvê-lo seriamente, abordando os vários ângulos da questão, etc. Mas isso não significa que eu tenho um problema existencial. Na verdade, posso estar a milhas de ter um problema existencial: a minha vida corre bem, não estou de facto a afundar-me na ausência de sentido; pelo contrário, estou motivado para terminar a dissertação, talvez até já tenha em vista um lugar na Universidade, talvez tenha uma namorada fiel e amorosa que me acompanha. Enfim, enquanto me debato intelectualmente com o problema existencial "qual é o sentido da vida?" não tenho, propriamente, um problema existencial. Na minha vida o problema existencial do sentido dela está resolvido: tirar o mestrado, dar aulas, casar-me, etc.

Agora imagine-se um sujeito que nunca estudou Filosofia mas que um dia, quer seja porque alguma coisa lhe aconteceu, quer seja porque começou simplesmente a pensar nisso, sentiu que a sua vida não tem sentido. Então ele resvala no problema existencial, cai nele, afunda-se nele. Este problema não é para ele uma questão teórica. Este problema abala a sua existência inteira e totalmente. E abala-o disposicionalmente, emocionalmente, sentimentalmente. Não se trata de resolver o problema teórico - trata-se de resolver o problema existencial.

Quer dizer, o problema existencial é, de certo modo, um problema filosófico, mas por outro lado, é outra coisa. É um problema filosófico no sentido em que o problema teórico, o questionamento temático, pertence à Filosofia. É a Filosofia que tematiza o sentido da vida. É a Filosofia que formula teoricamente o problema existencial. Mas o problema é, em sentido rigoroso, um problema existencial quando este problema se dá ao modo da existência.

Portanto, o problema existencial está sempre inscrito existencialmente: eu estou nele. Não estou apenas ocupado teoricamente com ele. Estou vivencialmente nele. Vivo nele. E posso matar-me por ele. Posso suicidar-me porque a minha vida perdeu todo o sentido para mim.

Contudo, nem todos os problemas em que eu vivo, que são existencialmente relevantes para mim, são problemas existenciais. Como já disse, se eu passo fome a fome é um problema em que eu me encontro. A frustração no emprego não é apenas um problema teórico: é um problema que habito. Mas não é um problema existencial.

Assim, um problema existencial é: 1) um problema filosófico (no sentido em que a sua tematização pertence à Filosofia); 2) um problema que visa a existência humana enquanto tal - ou seja, visa a minha existência enquanto sou eu que a habito, e a minha existência enquanto totalidade; 3) um problema que está posto para mim ao modo de ser habitado por mim, no modo em que eu moro nele.

O melhor exemplo é, justamente, a pergunta pelo sentido da vida quando esta surge para mim enquanto me implica a mim mesmo como existente e a minha vida enquanto é a minha.

Não é quando me ocupo dela teoricamente, ao modo do pensar nela, mas quando ela me invade, quando ela me define, quando estou disposto por ela que ela é um problema existencial. Quando na minha vida me encontro a mim mesmo habitando o problema do sentido, então tenho um problema existencial.

É isto que é um problema existencial.

E o problema existencial é o problema filosófico por excelência, entre outras coisas, porque é justamente um problema em que qualquer um se pode encontrar a si mesmo, seja-se filósofo, vendedor de automóveis ou banqueiro, seja-se rico ou pobre, culto ou inculto, esteja-se no auge da carreira profissional ou no desemprego de longa duração... Os problemas existenciais podem acometer a qualquer um. Podemos cair neles porque os começamos a considerar do ponto de vista teórico e depois eles nos engoliram. Ou podemos apanhá-los como como se apanha uma doença. Podemos ser engolidos por eles mesmo quando a nossa vida está cheia de sucessos, e podemos ser surpreendidos por eles quando não temos tido senão insucessos.


Podemos ficar sem vida neles, ou podemos ganhar-nos para a vida por eles.

São os problemas filosóficos mais perigosos, e também aqueles que abrem para a autenticidade.

Nunca se é verdadeiramente autêntico sem termos lutado neles, sem nos termos afundado neles. Mas o perigo é imenso porque, seja o que for que saibamos teoricamente acerca deles, uma vez que nos tenhamos encontrado a nós mesmos a morar neles, teremos de ser nós, por nossa conta e risco, a vencê-los ou a deixarmo-nos vencer.

A maioria de nós vive longe deles, toca-os de longe, quando muito, ao modo do pensamento. A maioria de nós julga que já está neles quando está na periferia afastada, e escapa deles recorrendo a paliativos, a ilusões, a doces mentiras que contamos a nós mesmos.

Portanto: não, não é verdade que todos os suicidas se matem por problemas existenciais; a maioria não o faz; poucos o fazem; na verdade, o mais provável é que muito raramente alguém se mate por problemas existenciais. No início e na maioria das vezes, nada temos com eles. Mesmo quando escrevemos sobre eles ou falamos deles para fazermos boa figura num qualquer jantar de circunstância.


* Questão colocada por um leitor


terça-feira, 8 de março de 2016

Da diferença entre "acção" e "linguagem"

A propósito de "acção"...


Há dias, numa discussão sobre o valor de contribuir nas acções de recolha de alimentos, alguém me repetia aquele argumento tão usual: 

não dou nada porque a maior parte não chega àqueles que realmente precisam. Eu até seria capaz de dar o meu suor, de dar a camisa pelos necessitados, mas estas campanhas nunca servem senão para encher os bolsos de alguns

Evidentemente, respondi: 

se realmente é capaz de dar o seu suor e a camisa pelos necessitados, então não esteja aqui a discutir comigo, arregace as mangas e ponha-se a caminho que qualquer discussão é apenas tempo perdido. Os médicos que largam tudo nas suas casas e vão para o meio da miséria, voluntária e gratuitamente, oferecer os seus serviços e arriscar a própria saúde não são conhecidos por fazerem grandes argumentos filosóficos para justificar que não se dê um pacote de arroz nas campanhas de alimentos: eles estão lá onde podem dar camisa e suor pelos necessitados

A "baba da linguagem", como diz Kierkegaard, permite-nos iludirmo-nos constantemente a nós mesmos sobre o nosso valor para nós próprios...
 

sexta-feira, 4 de março de 2016

Podemos decidir os nossos fins?

A propósito do fim e dos meios

A questão parece ser a seguinte: 

- a qualidade moral de uma pessoa define-se pela 

1) sua fidelidade ao ideal que tem, ou pela

2) qualidade do ideal a que se vincula, ou 

3) pelos dois (pela fidelidade ao ideal e pela qualidade deste)?



Se 1) está correcto, então Rorty tem razão quando diz que um nazi pode ser uma pessoa tão boa como qualquer um de nós, visto que é tão fiel ao seu ideal como nós somos, simplesmente, aquilo que toma como bem/fim/ideal/categoria orientadora difere daquilo que nós usamos. 

Mas se 2) está correcto, então haveria de aferir se um sujeito tem, de facto, a possibilidade de determinar os seus próprios fins - o que, como se sabe, é muito complexo de avaliar, pois, à partida, parece que podemos decidir dos MEIOS QUE usamos, dos modos COMO prosseguimos, e da forma de vida EM QUE visamos os fins, mas não podemos decidir dos fins, visto que o fim é, justamente, o critério de decisão. O problema quanto à decisão dos fins coloca-se porque não parece haver meio de ter uma categoria como critério de deliberação senão, justamente, a do fim que se tem, seja ele qual for - o problema é, pelo menos, tão antigo como Aristóteles, e não me parece que tenhamos avançado muito depois dele. 

Mas se não admitirmos nem 2), nem 3), caímos no problema de Rorty: como podemos culpar os nazis por terem os fins que têm? Se somos sinceros ao dizer que não devemos julgar ninguém por aquilo em que acredita - como parece ser o caso - então não teremos de aplicar esse argumento também aos nazis e aos terroristas? Será que queremos mesmo admitir que não podemos condenar os terroristas e os nazis pelas crenças que têm?



O que significa ser humano, para Kant. Notas éticas

A propósito de Kant e de Dexter


Para Kant a Vontade não é uma instância independente dos desejos. 

Segundo Kant, a Vontade é uma forma de desejar - ou, na linguagem de Kant, a Vontade é um modo da faculdade de desejar.


A faculdade de desejar tem dois modos gerais. 
Ora, quando a faculdade de desejar tem, na Razão, o seu fundamento interno de determinação para a acção com consciência da possibilidade de produzir o seu objecto, chama-se Vontade. Cf. Metafísica dos Costumes, A VI 213.

Quando Kant se refere a Costumes ("Sitten"), ou a Moral ("Moral"), está a referir-se à legislação prática em geral, independentemente de ser jurídica ou ética.

A diferença entre o jurídico e o ético, é que o jurídico refere-se a "acções meramente externas", enquanto o ético se refere à lei que se apresenta ela mesma como móbil do seu próprio seguimento...

Portanto, Kant não diz que a lei ética é um âmbito tal que eu a devo seguir sem ter qualquer móbil para ou desejo de a seguir. Pelo contrário:

- segundo Kant, se eu não tenha a lei ética para mim como móbil de a seguir e, por conseguinte, não tenho o desejo de a cumprir por si mesma, então não sou propriamente humano...

- ainda segundo Kant, não pode ser meu dever querer seguir a lei ética, visto que querer seguir a lei ética é uma pré-condição para haver dever

- e ainda, se eu porventura não tiver a lei ética como móbil, se não houver em mim um desejo de ser ético, então não haveria qualquer forma de o criar ou produzir em mim (e isso também não seria um dever visto que isso que faltaria seria, justamente, a condição de haver dever);

- finalmente, se eu pudesse perder o móbil ético, se a lei ética em mim pudesse deixar alguma vez de ser um móbil em si mesma, não haveria qualquer forma de a restituir.

Para Kant não é que o dever e o desejo estejam apartados, mas sim que se não houver em mim uma lei sob a forma de impulso para a sua própria execução, i.e., se não houver em mim mesmo uma lei com a forma de desejo, então não há em mim mesmo qualquer dever... para Kant, nesse caso, eu não sou humano.

Como se percebe, pelo menos formalmente, seria possível haver um sujeito que tivesse apenas lei no sentido jurídico (externo) e a cumprisse toda a vida, sem que alguma vez tivesse em si mesmo qualquer noção de dever ético (lei como móbil). Esta possibilidade é apresentada na figura fictícia da televisão chamada Dexter: um psicopata que não tem noção de dever, mas que recebeu um código de regras externo e por força de um conjunto de móbiles não-éticos tenta cumprir esse código. 

O ponto fundamental da figura de Dexter não é a ausência de sentimentos. Por isso, não estranha nada que, a certa altura, Dexter perceba em si várias emoções. O ponto fundamental da figura de Dexter é que não há nele qualquer sentimento ético, no sentido estrito. Ele pode amar uma rapariga, querer protegê-la, etc. Mas tudo isso nele está fora do sentido "ético", da noção de "dever" como ela ocorre em sujeitos que não são psicopatas. Não é por motivação ética que ele quer proteger a rapariga por quem se apaixonou, ou a sua irmã, etc. Ele quer proteger a rapariga porque se apaixonou por ela, quer ajudar a sua irmã porque gosta dela. A "motivação ética" enquanto "lei que determina o arbítrio" está nele ausente.

Como diz Kant, "a acção representada como dever" é "um conhecimento meramente teórico". Para se estar no domínio do ético falta ainda que tal lei, ou regras práticas, sejam um móbil, um fundamento de determinação. (cf. Metafísica dos Costumes, 218 - destaque meu).


Portanto, o que Kant diz não é que eu devo tomar a lei ética como móbil.

O que Kant diz é que, se eu sou um ser humano, então há qualquer coisa em mim como uma lei que é um móbil em si mesma. Sem isto não haveria qualquer dever (portanto, não haveria também o dever de tomar a lei como móbil). E eu não seria humano.


E se há qualquer coisa em mim como uma lei que por si mesma me motiva, então é meu dever tomar esse móbil como o único móbil das minhas acções.
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