quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Nietzsche e a Verdade

A propósito de Nietzsche e da vontade de verdade


Nietzsche não nega que exista no humano um requisito de verdade. Pelo contrário, ele insiste, justamente, na força dessa "vontade de verdade", no vínculo aparentemente inquebrável do sujeito humano à vontade de verdade.
Acontece que Nietzsche reconhece também que o humano não está em condições de satisfazer essa petição que está incluída na sua própria estrutura - razão pela qual "a verdade mata à distância, como as setas de Apolo".
A verdade mata porquê? Porque a vontade de verdade foi sendo satisfeita ilusoriamente graças à pretensão de verdade: as ilusões, na medida em que têm a pretensão de verdade, na medida em que se apresentam como verdade, satisfazem a vontade de verdade - mas apenas na condição de o sujeito estar na inconsciência. Ou seja, a satisfação da vontade de verdade está dependente da permanência da ilusão de verdade. O problema é que a vontade de verdade quando atinge um certo desenvolvimento começa a desocultar o carácter ilusório e falso das pretensas verdades em que se sustenta. Por isso mesmo, a vontade de verdade é auto-destrutiva, porque o seu destino só pode ser descobrir-se incapaz de cumprir os seus próprios requisitos.
Ora, visto que Nietzsche admite que o sujeito humano não é capaz de se manter conscientemente numa ilusão que sabe ser ilusão, num sonho que sabe ser sonho, a vontade de verdade mata - porque deixa o sujeito entregue ao nihilismo, à morte dos seus ídolos, à morte de Deus, da Verdade, da Metafísica como um todo, e isso só pode significar a desorientação, o caos, o vazio, o nada.
Portanto, Nietzsche não nega que a verdade é algo absolutamente importante para o humano... E é precisamente por isso é que começa toda aquela conversa acerca da superação do humano, do sobre-humano. É que o humano está tão dependente da verdade que só ultrapassando-se a si mesmo pode superar a vontade de verdade. Ou seja, a vontade de verdade é tão vinculativa, tão radical no humano que a sua ultrapassagem só pode ser conseguida através de uma transformação radical do modo-de-ser humano.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Da confusão das esferas, segundo Kierkegaard

A propósito de como distinguir um apóstolo de um louco, um religioso de um fanático, e de como o religioso se torna demoníaco, e o demoníaco se torna religioso...


«Pastores "cristãos" é aquilo que será necessário, também em relação ao maior de todos os perigos, o qual está muito mais próximo do que podemos acreditar - nomeadamente, que quando a catástrofe se espalhar e se tornar num movimento religioso (e a força do comunismo, obviamente, é o mesmo ingrediente que está, demoniacamente, potencial na religiosidade, mesmo na religiosidade cristã), então, como cogumelos depois de uma chuva, irão aparecer personagens demoniacamente treinados que logo farão de si mesmos, presunçosamente, apóstolos, a par com "os apóstolos", uns poucos que também assumirão a tarefa de aperfeiçoar o Cristianismo, logo se tornado eles mesmos também fundadores religiosos, inventores de uma nova religião que agradará ao tempo presente e ao mundo de uma maneira completamente diferente do "ascetismo" do Cristianismo. A era dos ataques académico-científicos ao Cristianismo já tinha acabado antes de 1848, nós já estávamos profundamente embrenhados na era dos ataques da paixão, dos ataques dos ofendidos. Mas isto não é o mais perigoso; o mais perigoso chega quando os próprios demoníacos se tornam apóstolos - qualquer coisa como os ladrões se fazerem passar por polícias - e até mesmo fundadores de religiões, os quais terão um ponto de apoio terrível numa era que é de tal modo crítica que do ponto de vista do eterno é eternamente verdadeiro dizer o seguinte dela: O que é preciso é religiosidade - isto é, a verdadeira religiosidade; contudo, do ponto de vista demoníaco, a mesma idade diz acerca de si mesma: É de religiosidade que nós precisamos - nomeadamente, religiosidade demoníaca.»


Kierkegaard, Journals & Papers, X6 B, §41

sábado, 19 de novembro de 2016

Política e politicamente correcto

A propósito de politicamente correcto... e de política...

O fim da política


O fim da política não é o bem-estar das pessoas. Não é o "bem comum", e certamente que não é construir um sociedade mais justa.
O fim da política é o poder.
Lamento, mas é assim.
Pode ser chato, pode ser injusto, pode ser f*****. Mas é como as coisas são.
Isto vale para todos. Seja-se Trump, seja-se Clinton.
O fim da política é o poder.
Ponto.


O povo e a política


Pense-se numa corrida de cavalos da Roma Antiga.

Ninguém vai lá assistir para ver como os cavalos correm bem ou como os cavaleiros competem destemidamente. As pessoas não vão lá porque perder ou ganhar é desporto. As pessoas não querem saber de desportistas perdedores. As derrotas não lhes interessam.

As pessoas não vão lá para ver um cavaleiro ganhar com coragem, honra e justiça. É indiferente. A justiça e a honra não lhes interessam.

As pessoas também não vão lá para ver vitórias. As vitórias não lhes interessam.

As pessoas vão lá para ver sangue
Para ver os corpos cortados ao meio pelas rodas. 
Sempre que uma corrida acaba sem meia dúzia de membros perdidos e um par de mortes, o público vai para casa com uma espécie de letargia no espírito.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Hegel, Kierkegaard e o fenómeno Trump

A propósito do movimento da história...


Como se sabe, Kierkegaard aborrece alguns aspectos de Hegel. Nomeadamente, o facto de Hegel se apresentar a si mesmo como se antecipasse todo e qualquer ponto de vista possível, como se todo e qualquer ponto de vista que alguma vez existiu, existe ou venha a existir não fosse nem venha alguma vez a ser senão um momento, um estágio preliminar, um troço do caminho em direcção à Verdade que só ele pode revelar. Hegel apresenta-se a si mesmo como se antecipasse que todos nós somos momentos no desenvolvimento da sua Verdade, de modo que por mais que o critiquemos, toda a nossa crítica será apenas um momento no processo pelo qual nos tornamos conscientes da Verdade que Hegel já revelou. Como se dissesse: "critica-me à vontade, mas toma nota de uma coisa: se a tua crítica for suficientemente profunda, se for capaz de se tornar progressivamente transparente para si mesma, então hás-de chegar ao ponto onde eu quero que tu chegues, a crítica que me fazes é apenas um processo pelo qual chegarás onde eu já sei que chegarás".


Há algo de hegeliano no modo como tendemos a pensar a história das ideias, a evolução dos costumes, o movimento político das sociedades. Nós tendemos, de facto, a pensar que a História corre numa direcção, num sentido definido e imparável. Há algo de hegeliano no modo como julgamos que as nossas ideias políticas, sociais, morais e éticas correspondem a "avanços", a "progressos", a momentos "mais à frente" numa linha temporal ininterrupta e necessária. 


Porém, a História mostra-nos outra coisa. Mostra-nos civilizações que existiram durante vários milhares de anos e que se esfumaram. Mostra-nos religiões que existiram durante tanto tempo que fazem o Cristianismo parecer um bebé mas que já não existem hoje. Mostra-nos que num belo dia Hitler pode vencer eleições. Mostra-nos que padrões de comportamento se podem inverter num piscar de olhos histórico. Mostra-nos que alguns padrões de comportamento antigos se inverteram hoje. Mostra-nos que alguns dos nossos padrões de comportamento estiveram suspensos durante séculos seguidos antes de voltarem a ser restabelecidos. Enfim, a História não parece ser uma corrida linear - excepto se considerarmos que a História se limita aos últimos 50 anos, ou se lermos a História sob o ponto de vista hegeliano: como se, de qualquer modo, tudo não foi mais do que um momento da nossa própria mentalidade a formar-se; como se a nossa própria mentalidade fosse a Verdade histórica a que todos os arrepios hão-de inexoravelmente chegar.


Há qualquer coisa de hegeliano em dizer que Trump representa um retrocesso. Há qualquer coisa de hegeliano em dizer que o crescimento da xenofobia representa um retrocesso. E há um grande perigo em ver as coisas desse modo. Porque a História, muito provavelmente, não seguirá em nenhuma direcção definida se não na eventualidade de os homens a construírem desse modo.


Há um grande perigo em pensar que a mentalidade xenófoba é um retrocesso que a história há-de reverter. 


Há um grande perigo em chamar-lhe "retrocesso", porque então chega-se muito facilmente à ilusão de que estamos a salvo porque "o tempo não volta para trás".

sábado, 15 de outubro de 2016

A cara do outro - considerações patéticas

A propósito do outro...

Por vezes tem-se o pressuposto de que o mal moral se segue apenas de se evitar o reconhecimento do outro como outro.

Este tipo de mal é subjectivamente vivido como amoral, pois o sujeito não o reconhece como mal, mas simplesmente como algo "que tem de ser feito", reflexo da lógica da vida, como se o próprio sujeito da intenção estivesse reduzido à condição de mero instrumento. Neste mal negativo não é apenas o outro que é previamente despido da sua condição de "outro": é o próprio agente do mal que se despede da tarefa de agente moral.

Mas é ingénuo pensar que o mal moral tem apenas esta forma negativa. Aliás, como se disse, este mal negativo é, na verdade, amoral: trata-se de uma forma de demissão do sujeito moral, de uma forma de indiferença. O mal moral em sentido próprio, pelo contrário, consiste no oposto disto. No mal moral positivo não se evita a consciência: esta é, precisamente, a autoridade que é explicitamente confrontada. Neste tipo de mal, o outro é aquele que eu quero maltratar - aquele que odeio, que suscita sentimentos agressivos. Aqui o outro não é apenas fonte de aversão e repugnância, algo que se evita olhar e tratar como "um outro". Pelo contrário, aqui o outro, mais do que repugnar, suscita violência, desejo de vingança, vontade de espezinhar.

São todos ingénuos os autores moralistas que supõe que a face do outro é aquilo que evita que eu o agrida. São ingénuos aqueles que julgam que a agressão ao outro só surge porque evito considerá-lo como "outro".

(E é também ingénuo julgar que se tomo o outro como "um outro eu" não vou querer maltratá-lo. Pelo contrário, que o outro seja reconhecido, precisamente, como "outro eu" pode ser ocasião de descarregar todo o meu desejo de vingança. Não é isso que se põe a claro em romances tipo "Homem Duplicado"? Porque é ingénuo pensar que cada um se ama placidamente a si mesmo de forma tão pura que ao projectar no outro um outro eu vai sempre amá-lo também. A psicologia sabe há muito tempo que não é assim: quantos desejos de se agredir a si mesmo o eu não precisa de suprimir para sobreviver? E quanto não descomprime poder aliviar no "outro eu" os desejos de agressão que habitualmente se suprime em relação a si mesmo?)

Se a experiência do outro pode suscitar - como defendem alguns, e bem - o amor, na verdade pode suscitá-lo não mais, não menos quanto pode suscitar o ódio.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

A maravilhosa nova Ética

A propósito da suposta necessidade de uma "nova Ética"...


Acho sempre tremendamente irónicos os textos de "Ética" que, a dada altura, afirmam que "precisamos de uma nova Ética"... É comum ler e ouvir isto por todo o lado... "Precisamos de uma nova Ética" que faça sobressair os direitos dos animais... "Precisamos de uma nova Ética" que proteja a natureza... "Precisamos de uma nova Ética" que isto e aquilo! Na minha opinião, já há "Éticas" de mais, e tão pouca ética... Por isso mesmo é que quando um secretário é apanhado numa qualquer actuação menos clara, logo se reúne o Governo em peso para redigir "uma nova Ética", "um novo código de conduta", enfim... O que se precisa é de ética! De teorias está o inferno bem atulhado - que deve ser por isso que o fogo lá é eterno: devido às infinitas resmas de papel usadas para escrever todas as "Éticas"!
A ética é uma questão de injunção: uma pressão-tensão que nos indica que algo deve ser feito, ou que algo não deve ser feito. Portanto, lamento, mas é uma questão de "móbil", como dizia Kant nas suas lições, tantas vezes esquecidas por aqueles que se agarram à Fundamentação para nos informar que "precisamos de uma nova Ética" que vá para lá de Kant... 
O ético é uma questão de "vontade", como diziam os medievais. Uma questão de paixão, de amor, de decisão. Não é uma questão de se ter uma boa teoria para a coisa - nem de escrever um livro que vai com a moda de defender que um gato bebé vale o mesmo que um bebé humano. 
A injunção ética nada tem que ver com o saber.
Se eu estiver à espera de saber com certeza absoluta, de um ponto de vista teórico, o que devo fazer estarei perdido. Dada a multidão de teorias que há em qualquer livraria, a ignorância declarada relativamente a este tipo de "certeza" não pode - "não deve" - servir de pretexto para não agir, para não fazer aquilo que me surge numa injunção. Aquilo que produz clarificação ética não é comprar muitos livros de moral, muito menos ler muitas Éticas - quanto muito, poderão aumentar a confusão. O que é preciso é, justamente, passar a injunção para o âmbito da acção...
Claro que quando se está a escrever uma "nova Ética" sentado na cadeira-meio-sofá do escritório, tudo isto parece "indefinido e abstracto"... De facto, quando estou à mesa do café a beber uma caipirinha não há muitas injunções éticas que me assolem. Quando estou esparramado a ver televisão não vem ter comigo nenhuma injunção que me atire ao chão. Por isso, é natural que quando queimo os meus neurónios a tentar descobrir um nexo lógico entre A e B também nenhuma injunção ética me pareça clara e evidente.
Mas se vou na rua e passo indiferente ao lado de um bruto a espumar-se que esbofeteia a sua mulher, porque, afinal, ainda não sei bem o que faz de algo um dever - ou se, perante a injunção ética, que naquele momento com certeza me vem aos nervos, passo de largo porque ainda me falta explicitar o conceito formal de "dever" ou "útil" - nesse caso, com certeza uma "nova Ética" não me servirá de muito.
O ponto da injunção é a interiorização: o ponto em que a possibilidade de agir perde o carácter de mera possibilidade vazia, abstracta e neutra - porque nenhuma possibilidade abstracta pode ser para mim um dever. Esta consciência moral é aquilo que é preciso: o sujeito intervém e impede que o bruto esbofeteie a rapariga.

domingo, 31 de julho de 2016

O Nazismo é a Verdade do Ocidente

A propósito da "virtude" da banalidade...

Na antiguidade, "trabalho" era ou escravidão ou tortura. O trabalhador era o escravo, o servo. O escravo trabalhava ou era castigado - e o trabalho era a tortura, ou a tortura de ser escravo, ou a tortura que castigava o escravo.

Uma mentalidade diferente se começou a formar na Europa há séculos. Muito lentamente a mentalidade inverteu-se. Com a revolução industrial essa inversão estabeleceu-se. Foi naturalmente que a Europa chegou à conclusão de que o trabalho salva.
 
Quando o homem começou a viver para trabalhar, quando o trabalho se tornou a medida do homem, quando a dignidade humana foi reduzida ao seu trabalho o homem perdeu a sua humanidade. Só por força de ilusões de óptica tudo pode parecer diferente e os homens ainda se convencerem de que são humanos: quando o trabalho é a vida do homem este tornou-se essencialmente dispensável.
 
O Nazismo não foi uma aberração da racionalidade: o Nazismo é a verdade da mentalidade ocidental. Sacrificar os homens está-lhe no sangue - e o que tem preservado o Ocidente de continuamente recair no Nazismo é que o Ocidente não sabe bem "a quê" sacrificar os homens... 

Paradoxalmente, tem sido a perda de ideais, a perda de força vital, a perda de paixão no Ocidente que tem preservado o Ocidente: dêem-lhe um ideal, "algo pelo qual se deva trabalhar", e teremos a mentalidade perfeita para as trevas!

sábado, 9 de julho de 2016

Relativismo cultural versus Relativismo moral

A propósito do relativismo cultural...

O Relativismo Cultural não implica Relativismo Moral


Turiel e Richard Schweder, cientistas das áreas da antropologia e da psicologia cultural, realizaram estudos para avaliar se havia algum fundo comum a todas as morais dos vários povos... Encontraram povos com normas sociais muito estranhas.
Em alguns povos, a mulher é partilhada sexualmente por todos, noutros comem-se os próprios filhos... Encontraram um povo, os Iks, que considerava o egoísmo uma virtude, recusava a noção de partilha, os pais deixavam morrer os filhos à fome sem qualquer recriminação social, os filhos nunca cuidavam dos pais quando estes precisavam ou envelheciam, etc. Contra todas as expectativas, este povo não se extinguiu, apesar de deixar morrer os filhos à fome parecer ser uma boa forma de uma sociedade se extinguir...
Mas, analisando os dados, chegaram à conclusão (provisória, claro) de que, por mais diferentes que sejam as normas de conduta entre povos, e mesmo nos casos mais extremos, parece haver um reduto moral comum, independentemente da variação da norma de conduta... Mesmo nos Iks.
Por exemplo, um canibal admite que comer outros homens é errado. Contudo, uma cultura canibal tem uma explicação para o acto de comer o outro, por exemplo, possuir o espírito do inimigo derrotado na batalha. Os Iks motivos para deixarem morrer os filhos à fome, pois é-lhes muito difícil adquirir comida e a densidade populacional tem de ser mantida em níveis muito baixos... Aparentemente, até mesmo o líder do Estado Islâmico admite que matar humanos é errado, mas tem uma explicação para matar infiéis... Ou seja: parece, de facto, que toda a gente sabe o que é o Bem, e que este Bem é igual para todos os homens - mas alguns arranjam desculpas, ou têm crenças que justificam comportamentos imorais... A razão, ao contrário do que Kant supunha, não parece ser um meio seguro de determinar o Bem - pelo contrário, parece ser o meio mais comum de o corromper...

terça-feira, 5 de julho de 2016

São Lourenço e o fenómeno da resistência

A propósito do fenómeno da resistência





O problema filosófico da resistência ao mal é complexo... desde logo porque não é evidente o que é o "mal". Como não é evidente como é que nós discriminamos o bem do mal. Mas depois há o problema da resistência. A resistência é um problema específico: como é que há homens que, mesmo quando todas as circunstâncias os condicionam para o mal, ainda assim lhe resistem?

Este é um problema eminentemente filosófico. Do ponto de vista científico, o fenómeno da resistência configura uma excepção, uma anomalia: quando todas as supostas "leis" psicológicas, quando todas as determinações nos levariam a prever um certo comportamento o sujeito comporta-se de uma forma contrária. Para a ciência, o fenómeno da resistência não é, de facto, um fenómeno científico, pois, por definição, não pode ser reproduzido: a reprodução das circunstâncias tende a reproduzir o comportamento padrão, previsível, de modo que não é possível estudar cientificamente o fenómeno da resistência: não apresenta um padrão empírico verificável e reproduzível. Portanto, em princípio, o fenómeno da resistência não existe cientificamente. E, no entanto, ele existe porque ocorre de facto: no condicionamento mais extremo há homens que resistem a comportar-se conforme esperado. Como estas ocorrências - estes homens - são extremamente raras, são simplesmente anomalias, conjuntos estatisticamente irrelevantes, percentagens residuais da população.


São Lourenço, responsável pela guarda dos bens materiais da Igreja e respectiva distribuição pelos pobres foi chamado perante o imperador. Este exigiu-lhe que entregasse todo o tesouro da Igreja. São Lourenço reuniu os mais pobres de entre os pobres, os doentes mais enfermos e levou-os à presença do imperador, dizendo: "Aqui está o tesouro da Igreja". Naturalmente, o imperador não ficou contente com aquela falta de respeito e sentenciou-o à morte pelo fogo. Reza a lenda que, enquanto era queimado em lume brando, sobre as brasas, São Lourenço disse: "Este lado já está bem passado, podem virar-me". Parece que a Igreja Católica achou tanta piada ao caso que o fez padroeiro dos cozinheiros!

terça-feira, 28 de junho de 2016

Marquês de Sade e a inversão da moral

A propósito de DEMONÍACO: Kant, Sade, Lacan e Schopenhauer


Segundo Sade, o prazer inerente à acção moral representa uma tentação poderosa para o indivíduo; por outro lado, a acção libertina constitui o imperativo ético. Assim, Sade preserva a forma da moral kantiana invertendo apenas o sentido moral dos móbiles.

Isto não é o mesmo que o mal-radical: o mal-radical não corresponde à inversão do sentido moral dos móbiles, mas sim ao princípio subjectivo da subordinação do móbil do bem ao móbil do mal.

Do ponto de vista da moral kantiana, a moral de Sade é demoníaca. Do ponto de vista da moral de Sade, a moral de Kant é demoníaca. Mas o mal-radical não é demoníaco.


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"age de tal maneira que a máxima da tua acção, se convertida em lei da natureza, te permita usar o outro, qualquer que ele seja, para tua satisfação"

Cf. Lacan, Kant com Sade


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Para Schopenhauer, o problema da ética de Kant é que, para determinar o dever, usa como princípio os móbiles (inclinações, desejos, impulsos...). No fundo, segundo Schopenhauer, Kant limita-se a dizer-nos: age de tal maneira que faças apenas aquilo que desejes de modo incondicional. Para saber se devo roubar ou não, preciso de saber se eu desejaria que fosse sempre legítimo roubar - ou seja, preciso de saber se também desejaria ser roubado.
O problema, então, é com os sadomasoquistas... Schopenhauer parece ter razão. Isto porque, se pensarmos bem, se um sadomasoquista fosse kantiano e tentasse aplica o princípio categórico, o resultado seria uma moral como a de Sade (e é curioso que o nome de Sade tenha dado origem ao nosso termo "sadismo"). Ou seja, um sadomasoquista que aplicasse a si mesmo o princípio categórico de Kant tornar-se-ia no exemplo perfeito da moral de Sade.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

O burro de Buridano...

A propósito do problema da liberdade de indiferença...



A história é contada de diversos modos, mas basta imaginar um burro tomado pela fome, um mês sem comer, que se vê, de repente, à mesma distância de dois fardos de palha exactamente iguais! Incapaz de decidir para qual dos dois se encaminhar, o coitado do burro acabaria por morrer de fome, apesar da comida estar à sua disposição!

Normalmente, o pobre do burro de Buridano é citado como exemplo de desinteresse ou indiferença. Mas em filosofia, surge habitualmente no contexto da discussão da "liberdade de indiferença da vontade" - isto é, do problema de saber se o homem é capaz de se decidir indiferentemente, capaz de decidir independentemente daquilo que, de cada vez, influi sobre ele.

Não é incomum, no entanto, que a estória do burro seja mal interpretada. Usa-se o exemplo para negar a liberdade de indiferença - como se o problema do burro presumisse essa liberdade. Ora, é exactamente o contrário que sucede.

Como surge o problema do burro? A questão inicial é saber como se chega a produzir uma escolha (que determina a decisão). Ora, o problema com a liberdade de indiferença é que, se a vontade é se pode dissociar das inclinações, então é possível um estado de indiferença no qual o sujeito fica absolutamente em aporia, incapaz de tomar qualquer decisão, justamente porque nenhum peso se faz sentir e as alternativas deixam de se destacar. No limite, sem critério, o sujeito simplesmente deixaria de se mexer... Curiosamente, parece haver casos em que isto acontece efectivamente com os seres humanos, mas então torna-se sobretudo um problema médico. Não parece haver forma de curar a abulia profunda recitando Leibniz ou discutindo Duns Scotus!

Portanto, o problema da tese da indiferença da vontade é que se fica sem critério de decisão - ou melhor, esta tese não diz que nós estamos todos paralisados, pois, ao contrário da crença vulgar, os filósofos não têm por hábito negar evidências (quer dizer..., bem, fiquemos por aqui...), e é evidente que tomamos decisões todos os dias. A questão é que admitem que a indiferença é a condição fundamental da vontade, de modo que a tornam independente do mundo e das inclinações, e, por isso, não só admitem que um sujeito pode cair numa situação de indiferença absoluta (da qual se tornaria impossível sair por esforço racional ou por acção de qualquer inclinação ou paixão), como são forçados a encontrar outra "explicação" para o fenómeno da decisão! A única explicação, como é evidente, dadas as circunstâncias, é que "não há explicação" para as decisões. Normalmente, quando um filósofo não tem uma explicação para alguma coisa, encontra um termo mais ou menos pomposo e transforma-o em advérbio de modo - neste caso, habitualmente, diz-se que a decisão surge "espontaneamente". É difícil explicar o que significa dizer que "a vontade é espontânea", porque, basicamente, significa que não há explicação! 

Ora, os defensores da liberdade de indiferença não dizem que não há inclinações - o que seria parvo, pois como todos sabemos é inegável que temos fome, o que normalmente se traduz em vontade de comer, etc. Claro que os dicionários dizem todas as parvoíces, até mesmo atribuir parvoíces a grandes filósofos que, se tivessem dito tais parvoíces, provavelmente nunca se teriam tornado tão famosos como filósofos, embora talvez se tivessem tornado comediantes famosos. Os defensores (credíveis) da liberdade de indiferença admitem que todos nós temos propensões, as quais podem tornar-se inclinações, etc. A questão é que admitem que podemos decidir independentemente delas: por exemplo, um sujeito com muita fome pode decidir não comer. Chama-se greve de fome. Claro que podemos dizer que o sujeito faz greve de fome porque há outra inclinação mais forte nele do que a fome... Este é, justamente, o ponto: os defensores da liberdade de indiferença admitem que o sujeito, em circunstâncias comuns, decide-se com base em inclinações e, por isso, no resultado da soma destas, ou na inclinação mais forte, conforme o caso. Contudo, e isto é o decisivo, admitem que, por mais forte que seja uma inclinação, ou qualquer que seja o resultado de uma soma de inclinações, o sujeito tem o poder de escolher a alternativa contrária (ainda que isto tenda a acontecer muito raramente, dado que, normalmente, o sujeito está como que absorvido na vida, ocupado pelas suas inclinações, incapaz de fazer surgir a distância de si às próprias paixões que lhe permitiria ser livre). 

Portanto, os defensores deste tipo de liberdade dizem que, essencialmente, a vontade do homem é independente, e que, por isso, tem sempre a possibilidade real de se determinar a si mesmo apesar e/ou contra as inclinações.

Por vezes, o burro de Buridano é apresentado, pelos opositores desta tese, como exemplo da liberdade de indiferença. Ora, isso não é assim.

O caso do burro não pretende apresentar a hipótese da indiferença. Para que tal fosse o caso, o burro teria de ser indiferente mesmo se os fardos de palha não fossem iguais, nem estivessem à mesma distância. Ou seja, o que os defensores da liberdade de indiferença dizem é que o burro pode decidir não comer palha mesmo que esteja com muita fome, e mesmo que só haja um fardo de palha mesmo à frente do seu nariz... Claro que, normalmente, não se diz que o burro tenha esta capacidade, pois pretende-se que apenas os homens têm vontade - e é a vontade que é capaz de ser indiferente. Há uma diferença entre mera paixão - afectividade - e vontade, que agora não vou tratar.

Portanto, o burro de Buridano não é indiferente: ele tem fome e quer comer. E é aqui que surge o problema: apesar de o Burro não ser indiferente, não consegue decidir-se.

Ou seja, o problema do burro mostra um problema que surge, não relativamente à indiferença da vontade, mas sim relativamente à tese de que a vontade não é indiferente.

O que a estória do burro mostra é que, se não há liberdade de indiferença, o burro é incapaz de se decidir se, por mero acaso, as inclinações não chegarem a inclinar o burro mais para um lado do que para o outro... Ou seja: se a vontade não é indiferente, e se as minhas inclinações se dividem equitativamente por "dois objectos", serei incapaz de me decidir... Isto parece, de facto, acontecer muito com os seres humanos que tantas vezes são incapazes de decidir entre dois amores! Ou entre diferentes marcas de leite quando os pacotes estão ao mesmo preço!!! O segredo é um sujeito chegar e pegar no que estiver mais perto... Mas, lá está: o problema do burro é que os fardos de palha estão à mesma distância, e, então, a sua inclinação está num impasse!

Ora, um dos modos de resolver o problema é recorrer à batotice, que foi o que Leibniz fez (é claro que ele também discutiu o problema seriamente, fora dos livros que publicou em vida). 

A batotice foi recorrer ao princípio da "identidade dos indiscerníveis". Este princípio, apoiado no princípio da "razão suficiente", postula que não há duas coisas exactamente iguais na natureza. Portanto, bem vistas as coisas, um pacote de leite nunca é exactamente igual a outro. E o mesmo se passa com os fardos de palha. Há pequenas diferenças entre eles que podem passar-nos despercebidas, mas que contribuem para nos inclinarmos mais para um do que para outro. Claro que, com isto, Leibniz abriu a caixa de Pandora, pois isto significa que as escolhas de um sujeito podem ser - e, muitas vezes, são efectivamente - resultado de pequenas percepções que escapam à "apercepção". Quer dizer, o sujeito é determinado por determinações de que não se apercebe, mas que determinam efectivamente as suas escolhas, de modo que, no limite, é perfeitamente possível um sujeito ser uma espécie de sonâmbulo na sua própria vida. Mas, assim, Leibniz resolveu o problema do burro: na verdade, os fardos de palha não podem ser exactamente iguais e, por isso, o burro será inclinado mais para um lado do que para o outro.

No entanto, há batotice no modo como Leibniz resolve o problema. Porquê? Porque não se resolve o problema da não indiferença da vontade, propriamente dita. Apenas se reconduz a solução do mesmo para a circunstância de não haver duas coisas exactamente iguais. Mas, do ponto de vista teórico, o problema mantém-se: a haver um homem com uma inclinação dominante que se confronta-se com dois objectos exactamente idênticos que lhe correspondessem, esse homem ficaria impedido de se decidir (a não ser que o jogo entre as suas inclinações, ou alguma mudança nos objectos, produzisse um desequilíbrio na determinação).

domingo, 10 de abril de 2016

A sociedade como linha de montagem



A propósito de coisas... Sobre a coisificação do homem...

Penso que a imagem da sociedade como "linha de montagem" está correcta em muitos aspectos, designadamente, nos essenciais: fabricação autonomizada e em série de elementos idênticos. A a produção em série como produção de "autonomização" e "igualdade" é um dos aspectos mais importantes. De facto, a sociedade de massas "autonomiza" o sujeito ao mesmo tempo que garante a igualdade dos objectos finais... Isto é curioso, porque, à primeira vista, tenderíamos a pensar que "autonomização" e "igualdade entre elementos de uma série" seriam coisas antagónicas. Mas é de facto assim, o objecto final de uma linha de montagem está autonomizado e homologado. Talvez por isso os críticos da sociedade contemporânea não consigam entender-se sobre se o que a caracteriza é o "individualismo extremo" ou a "carneirização absoluta".

Mas há um problema com a imagem da sociedade como linha de montagem. Esta imagem pressupõe um "objecto original", ao qual se vão acrescentando as partes (na cresce, no infantário, na escola, na universidade, no emprego, no lar, no hospital)... Na verdade, o processo de produção nunca pára, e este é o segredo da coisa! O objecto está sempre na linha de montagem, sempre à espera de mais uma peça... Mas, seja como for, presume-se que houve um "objecto original" ao qual se adicionaram peças, de tal modo que, no "objecto final", o "objecto original" praticamente desapareceu... O objecto "autêntico" só pode ser aferido por relação a um "objecto final" ideal, que nunca está efectivamente acabado. Por sua vez, do "objecto original" não se tem qualquer notícia!

O problema com esta imagem é, portanto, que sugere que há um "objecto original" que, de algum modo, ainda ali permanece: a função do "objecto original" é a de suportar as peças que lhe vão sendo acrescentadas. Como se sabe, a tradição filosófica chama a esta peça original "substância", e os gregos chamavam-lhe "coisa". Pessoalmente, prefiro a designação grega: coisa. The thing. A "coisa original" por baixo de todos os acrescentos... O cinema tem-nos brindado com boas análises do que possa ser essa "the thing"...

Na filosofia, os filósofos têm-se dividido entre aqueles que acham que a coisa é, essencialmente, má. E aqueles que acham que a coisa é, essencialmente, boa.

E este é o problema da metáfora da sociedade como "linha de montagem", porque presume que há nos homens uma "coisa original", presumivelmente boa, à qual poderemos fazer aproximações à medida que a limpamos dos acrescentos. Presume-se que a coisa é boa, mas a sociedade é que a corrompe...

Na verdade, está em causa uma compreensão essencialista do homem. Uma interpretação ôntica do homem. Uma forma de considerar que o homem é uma coisa.

E a coisificação do homem é sempre uma desumanização.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Sou livre quando escolho o mal?

A propósito de liberdade...


Questão muito pertinente - apesar de, como se sabe, ser tão antiga quanto a filosofia, não tendo surgido com Kant: vejo o bem e aprovo-o mas sigo o mal... sou livre?

A resposta do senso-comum, normalmente, é que "sim". À primeira vista, pensamos que somos livres quando temos alternativas e escolhemos uma delas. Quer dizer, pensamos que somos livres independentemente de termos escolhido uma ou outra das alternativas - aliás, é justamente nesta abertura indiferente que colocamos a noção de liberdade: a olho nu pensamos que a liberdade reside, justamente, na escolha enquanto tal, de modo que quer eu escolha A ou não-A, sou livre na medida em que tive escolha e pude escolher.
Curiosamente, a resposta tradicional da filosofia é, justamente, a oposta. Tradicionalmente, há condições que têm de se verificar para se poder dizer que um sujeito é livre, mesmo quando este tem a experiência imediata da sua liberdade. Quer dizer, do ponto de vista filosófico, a experiência interna da sensação de liberdade não assegura que o sujeito seja livre. Kant encontra-se nesta tradição longa que tenta identificar requisitos "fenomenológicos" - requisitos que o sujeito possa identificar - para assegurar ou, pelo menos, indiciar que "sou livre".
Mas a resposta de Kant é original - na medida em que se pode dizer que há originalidade na filosofia, pois quando vamos a ver bem, já houve sempre alguém que disse qualquer coisa semelhante antes...
O resposta de Kant tem que ver com a natureza, primeiro, da moralidade e, segundo, da eticidade. Não interessa aqui analisar em pormenor a diferença que Kant estipula entre estes dois âmbitos, basta-nos um esboço. A lei moral é o âmbito da lei que está imbuída de autoridade racional. A lei moral é o âmbito geral das leis práticas dadas pela razão com força de validade universal. Diz Kant que dentro da moral há leis de carácter jurídico e leis éticas. A lei ética tem a particularidade de produzir, por si mesma, sentimento. Ou seja: a representação que o sujeito faz de uma lei ética para si mesmo produz, por si mesma, um sentimento mobilizador - um impulso mobilizador. Então, o que caracteriza a lei ética enquanto tal é ser ela um ideal que o sujeito reconhece como sendo aquele a cuja execução se deve propor e, além disso, também actua imediatamente sobre a sua faculdade de desejar. 
Quer isto dizer que a lei ética desempenha, para o sujeito, o papel de um "ideal" com que o sujeito se quer conciliar (ele não se limita a reconhecer a sua validade, como no caso das leis meramente jurídicas - o sujeito quer efectivamente, uma lei chama-se ética quando ela, além de validade universal, também determina imediatamente a sua vontade apresentando-se ao arbítrio - à faculdade de escolha - como princípio determinante).
Ou seja, segundo Kant, se só houvesse no homem o princípio do bem, o sujeito faria sempre o bem (o que, aliás, é mais ou menos evidente). O problema é que, do ponto de vista antropológico, a vontade nunca é pura: o homem não é res integra, mas sim uma vontade heterogénea. Então, o sujeito pode, efectivamente, escolher não seguir o princípio do bem, não seguir a lei ética, ou segui-la, não em função dela enquanto móbil, mas porque coincide com as inclinações propriamente físicas (que, no geral, são uma disposição para a felicidade). Mas então, em conformidade com tudo o que se disse antes, não há outra possibilidade senão considerar que o sujeito que fez isto não foi livre: ele reconhece que quer seguir o ideal ético (sem este reconhecimento, não haveria nenhum dever posto enquanto tal e, portanto, também não haveria transgressão) e, ainda assim, não o faz.
Parece, então, que segundo Kant a liberdade consiste em escolher o bem... De facto, esta interpretação é a que geralmente acontece, mas Kant quando tem de discutir o assunto da liberdade em rigor diz mais do que isso.
Efectivamente, ao escolher o bem o sujeito seguiria aquilo a que ele mesmo reconhece dignidade, de modo que está em conformidade consigo mesmo (ao contrário do que acontece com a transgressão). Portanto, em sentido derivado, pode dizer-se que o sujeito é livre "se de facto, seguiu a lei moral enquanto móbil supremo", ou seja, se de facto agiu exclusivamente segundo o móbil que a lei ética é, "seguir o Dever por dever". No entanto, Kant diz que o sujeito nunca sabe quando de facto assim foi. Mais: Kant pensa que muito raramente conseguimos agir apenas por dever sem outros móbiles à mistura. Kant afirma mesmo, várias vezes, que é bem provável que nunca ninguém tenha efectivamente agido exclusivamente por dever... Isto significaria, então, que nunca ninguém é, empiricamente, de facto livre - ainda que, metafisicamente, isso seja sempre possível.
Contudo, na análise rigorosa do que é a liberdade, Kant conclui que, afinal, esta também não pode ser identificada com a escolha do bem. A Liberdade consiste no "poder escolher". Ou melhor: em rigor,  a Liberdade consiste no "poder escolher O Bem", visto que, escolher o mal, será o abandono da liberdade.  O que acontece é que, quando o sujeito contrai o mal - isto é, quando acolhe a máxima que se opõe à máxima do dever - o sujeito, voluntariamente, recusa a sua liberdade (isto é, a faculdade de se determinar independentemente de móbiles empíricos, externos à lei ética). Assim, em rigor, a liberdade consiste no "poder". Liberdade é Poder. Mas, enquanto poder, é apenas formal: no concreto da vida nós ou escolhemos o mal, e então, voluntariamente, recusamos ser livres, ou escolhemos o bem, e acolhemo-nos a nós mesmos (acolhemos o ideal que temos de nós mesmos)... Como se sabe, Kant pensa que isto é sempre possível - pois que a liberdade significa, formalmente, isso - mas, considerando os elementos da antropologia, na maioria das vezes o sujeito deita fora a sua própria liberdade.
Este problema também é complexo, porque, segundo Kant, este "lançar fora" não pode querer dizer que a liberdade desapareceu, como se o sujeito não pudesse nunca mais escolher o bem, corrigir-se, etc. Mas, por outro lado, Kant diz que a disposição para o mal é uma "propensão", o que significa que é uma tendência para criar uma inclinação: ou seja, se eu faço o mal serei cada vez mais determinado por ele, como acontece com os vícios em geral. Ou seja, é sempre possível um sujeito corrigir-se, mas isso torna-se cada vez mais difícil no concreto.

A reflexão do amor

A propósito de amor reflexo...

Um problema complexo é o de saber se é possível, ao humano, amar algum bem acima do bem particular.
Os medievais, com a sua habitual argúcia, questionavam-se se é efectivamente possível amar o bem comum acima do bem particular.

O ponto é complexo porque diversos aspectos difíceis o complicam. Um deles é a aparente capacidade reflexa do amor... O amor é capaz de reflectir-se - o que, evidentemente, complica tudo... na verdade, é na continuação deste problema da reflexão do amor que Kant veio a dizer ser impossível ao humano ter evidência acerca da sua própria intenção verdadeira... o sujeito não tem como saber de modo certo qual é a sua intenção mais profunda quando faz algo. Mas a coisa vem, evidentemente, de muito de trás.

Já Platão identificara a capacidade de reflexão do amor - desde logo no famoso Sympósio em que um dos participantes conta o mito em que Zeus teria dividido ao meio o ser humano originário, ficando cada uma das partes com a ingrata tarefa de encontrar a sua cara metade... Ao contrário do que pode parecer aos mais românticos, o mito da cara metade é uma apresentação muito pessimista da natureza humana. Isto é assim, justamente, porque este mito põe a possibilidade de todo o nosso amor - todo o nosso afã - se dar em modo reflexo, mas de tal modo que a reflexão não recupera em próprio o reflectido... ou seja: Platão coloca a hipótese de que todo o afã do humano no mundo poder não passar de equívoco, de tal modo que se ama sempre algo que está "em vez" daquilo que verdadeiramente nos falta e verdadeiramente se ama. Platão coloca a hipótese de que tudo aquilo que de cada vez julgamos amar ser um tiro ao lado, ser um falhanço... Evidentemente, se esta hipótese for mais do que uma hipótese, mais do que um mito que alguém já tocado pela bebida conta, então a vida humana será uma espécie de tragédia em que os homens sempre se esforçam por colmatar a falta que em si mesmos encontram, mas de tal modo que sempre se dirigem para aquilo que pensam amar sem amar efectivamente e que, por isso, jamais pode saldar o débito natural.

O problema da reflexão do amor significa que se pode amar sempre algo diferente daquilo que se julga amar. O sujeito pode fazer todas as coisas julgando que o faz em virtude de tal ou tal móbil, tal ou tal impulso, e estar completamente equivocado quanto à verdadeira motivação das suas acções.

Assim, é perfeitamente possível que o sujeito que julga agir por mor do bem comum esteja, afinal, a fazê-lo em virtude do seu bem particular. A esta forma de confusão, a que Kant alude várias vezes, Kierkegaard chamava "equívoco" ou "mal-entendido do sujeito consigo mesmo"...

Ora, o mal-entendido não é, em si mesmo, um problema. Na verdade, mesmo do ponto de vista ético, o equívoco não coloca graves problemas, desde que o sujeito seja honesto. Quer dizer: pode haver mal-entendido do sujeito consigo mesmo enquanto este é honesto. Como quando dois sujeitos falam entre si de coisas diferentes julgando ambos estar a falar da mesma coisa.

O problema coloca-se porque esta estrutura - a do amor enquanto capaz de reflectir-se - permite uma outra forma bem mais perversa, a saber, o auto-engano. O auto-engano é uma espécie de equívoco, mas que é produzido de tal modo que é imputável ao sujeito.

Como se sabe, a estrutura da consciência tal como era concebida pelos modernos, a conhecida estrutura cartesiana, impediria a ocorrência do auto-engano. Ou melhor, impediria a ocorrência de um auto-engano eficaz, pois o sujeito tentar-se-ia enganar enquanto conhecedor da verdade e da intenção de mentir.

A reflexão cartesiana é uma reflexão do pensamento, uma dobra do pensamento sobre si mesmo - que, portanto, é límpida e apresenta o sujeito em pessoa a si mesmo.

Mas a reflexão do amor é mais complexa: o sujeito ama x mas na dobra o seu amor visa y. Não se trata de um substituto, como quando alguém compra uma cópia pirata porque é mais barata. Aqui não há qualquer mal-entendido. Mas a raposa que, ao perceber que as uvas estão muito altas, se convence a si mesma que afinal até estão verdes e desiste do esforço, está envolta num auto-engano. A questão de saber se ela alguma vez poderia chegar-lhes é indiferente.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Kant, leitor de Aristóteles

A propósito de uma ética da virtude em Kant

(Pressupõe-se que o leitor conhece Aristóteles, de modo que se assume que identificará, no seguinte, a sua filosofia).

Segundo Kant (veja-se A Religião nos Limites da Simples Razão, A Metafísica dos Costumes - não confundir com a Fundamentação... -, Antropologia do Ponto de Vista PragmáticoLições de Ética, entre outros escritos tardios):

A virtude existe no carácter. Virtude: disposição firme da vontade.
Pode assumir dois sentidos.

Primeiro: um sentido puramente formal enquanto disposição firme da vontade de querer uma regra ou máxima de acção. Neste sentido, a virtude não é em si mesma nem boa nem má, mas ela opõe-se propriamente às inclinações. As inclinações são inimigas dos princípios, sejam estes bons ou maus.

Segundo: sentido ético enquanto disposição firme da vontade de querer o bem (o qual é definido como uma máxima do dever, portanto, incondicional).

Carácter: firme disposição de querer de uma determinada maneira
Há carácter no homem que adere a uma regra, máxima ou princípio com uma disposição de querer incondicionada. Há carácter quando o sujeito adopta para si uma máxima suprema enquanto fundamento de todas as máximas, ou, por outras palavras, quando adopta um princípio supremo enquanto condição de satisfação de todos os fins.




Continuando:

"Um homem possui um modo de pensar quando ostenta certos princípios práticos, e não apenas lógico-teóricos. O carácter configura a liberdade. Quem não ostenta nenhuma regra de conduta não possui carácter algum." Anth. Mrong.

Ter um carácter não é garante de perfeição:

"Assim, isto [ser presa de uma certa tentação] depende tão só das circunstâncias externas e não existe nenhuma virtude o suficientemente forte para a qual não se possa encontrar uma tentação." Moral. Collins

sexta-feira, 1 de abril de 2016

A Ética do Dever

A propósito de ética e moral, em Kant


Nenhum filósofo vive as nossas vidas por nós, mas podem dar-nos que pensar.

Por exemplo, os filósofos identificaram duas formas de consciências internas: 

1) uma é aquela que identifica o que não deve ser feito: não mentir, não roubar, não matar, etc.;

2) outra é aquela que identifica aquilo que deve ser feito: dizer a verdade (o que não é o mesmo do que simplesmente "não mentir"), prestar auxílio a quem está a ser maltratado, ajudar o próximo, etc..

Esta diferença foi identificada pela primeira vez por Sócrates.

Kant analisou a Moral e distinguiu-a da Ética (vide Metafísica dos Costumes - não confundir com a Fundamentação da Metafísica dos Costumes).

Para Kant, a Moral é o âmbito da lei (frequentemente, usava o termo "Sitten", costumes, em vez de "Moral", moral, por motivos que não interessam aqui). 

Dentro da Moral distinguiu 2 campos: 1) o jurídico e 2) o ético. 

1) O Jurídico é o campo legalista, da conformidade à lei: não mentir, não roubar, não matar... Se eu agir sempre de acordo com esta consciência nunca farei nada de mal (pelo menos, é possível que nunca faça nada de mal), mas também nunca farei o bem por mor do bem. A consciência neste sentido 1), segundo Kant, não é ética: é apenas jurídico-legalista. Aquele que se rege apenas por ela age conforme à lei, mas não por dever. Pode nunca violar o dever, mas também nunca é realmente ético.

2) O Ético é o campo do Dever, isto é, o campo em que se age por dever tendo o dever como impulsor ou móbil da acção. Só é ético o acto feito por mor do dever, o que significa não só ter o cumprimento do dever como fim, mas também ter o próprio dever como móbil.

Kant diz que a consciência 1), jurídica e legalista, é uma hipocrisia e chama-lhe "mal radical", porque corresponde à corrupção do próprio fundamento de todas as nossas máximas de acção.

Segundo Kant, esta posição corresponde a mais uma forma de ser hipócrita e de, afinal, agir apenas de uma maneira "politicamente correcta"... Só que nesta forma de consciência meramente legalista, o sujeito é "politicamente correcto" perante si mesmo (ainda que não o seja perante os outros). É politicamente correcto perante si mesmo porque convence-se de que ao não mentir, não roubar, etc., já está a cumprir o seu dever... Mas, segundo Kant, agir sempre em conformidade com o dever não demonstra que o sujeito esteja eticamente motivado, de modo que é possível que o cumprimento do dever esteja associado ao mal radical.

quarta-feira, 30 de março de 2016

Se cais levantas-te

A propósito de quedas...


É comum ouvir aquele conselho aos mais novos: faz todas as asneiras que tens de fazer quando és mais novo, pois enquanto és jovem se cais levantas-te...


É curioso. Esta nota pode ser encontrada em bastantes moralistas, mesmo nos mais rigorosos. Os filósofos reconhecem, simultaneamente, que é a juventude o tempo da educação, da formação do carácter, o tempo oportuno, o tempo certo, o kairós do humano... e que a juventude é o tempo dos erros. Mesmo Kierkegaard reconhece que há um tempo para a brincadeira, um tempo que não é nem deve ser de seriedade... e, simultaneamente, que a juventude é o tempo oportuno porque, se na juventude segues pelo caminho errado, mais tarde ser-te-á tão mais difícil - talvez impossível - mudar de rumo...


Ora, de facto, dá as quedas que tens para dar na tua juventude porque, então, se cais levantas-te...


Mas... cuidado: é que tudo depende da queda. Se tropeças num calhau levantas-te com os joelhos a sangrar mas a tua carne endurece. Se escorregas no molhado levantas-te com as mãos doridas mas aprendes a evitar o molhado. Mas se te atiras de um arranha-céus suicidas-te. É assim com a juventude como é com qualquer queda: se cais levantas-te, mas cuidado para que a queda não seja maior do que aquilo que podes suportar e continuar a ter uma vida. O problema é que na juventude ainda não se sabe verdadeiramente quais são os nossos limites - se é que alguma vez se sabe. E se é a queda que nos ensina os limites, há também quedas que nos podem destruir.

segunda-feira, 28 de março de 2016

Superprodução e consumo de massas

A propósito de produção e consumo no mundo contemporâneo.

As crises do mundo contemporâneo ocidental são coisa completamente nova e distinta das crises que assolaram o mundo ao longo da história. Isto porque não são crises de produção. Antigamente - há séculos volvidos - havia crise porque havia fome e havia fome porque havia crises de produção. Dizia-se que havia crise quando não havia do que comer. Hoje, as crises dão-se em plena superabundância: há demasiada carne, demasiados frutos, demasiado leite, etc. Há tudo em demasia. E a nossa economia de consumo só funciona porque há essa superprodução. O consumo massificado precisa de produção superabundante para que os preços permaneçam baixos. Simultaneamente, os preços baixos debilitam o sector produtivo, baixam os rendimentos do sector primário e pressionam para que haja mais produtividade e mais rentabilidade - o que significa que estamos numa espécie de círculo vicioso.

quinta-feira, 24 de março de 2016

Divina Comédia e Ironia

A propósito da Ironia da Divina Comédia


Na porta do Inferno põe Dante as seguintes palavras:
"fecemi la divina podestate,| la somma sapïenza e 'l primo amore".
Divina Comédia, III, 5-6.


O que, em português, verte mais ou menos isto:


"Fez-me a divina potestade,| a sabedoria suprema e o primeiro amor".


Quer dizer: a divina potestade, a sabedoria suprema e o primeiro amor fizeram o Inferno. Ou seja, o Inferno foi feito por Deus.


Estas linhas têm uma conotação forte e múltiplos sentidos podem ser descortinados. Um dos mais evidentes é o de que o Inferno foi feito pelo Amor - não um amor qualquer, mas pelo Primeiro Amor, pelo amor original, pelo Amor de Deus. O amor de Deus fez o Inferno.


E continua: "Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate": "Abandonai toda a esperança, vós que entrais".


Que o local de onde toda a esperança fica arredada se nele alguma vez se entra seja obra do amor é algo que deve fazer-nos ficar estupefactos: talvez Dante esteja a brincar com os conceitos, afinal, o Inferno terá sido feito por Deus, visto que Deus é o Criador e, por isso, também o Inferno teve de ser obra sua - que, então, o deve ter feito em amor parece conceptualmente claro: Deus criou o mundo por amor e com isso criou todas as coisas, as boas, é certo, mas também as más, por isso, o próprio Inferno foi feito por amor na medida em que Deus tudo faça por amor! Também o Inferno foi feito por amor.


Mas Dante vai mais longe... por exemplo: mais à frente, canto V, uma das almas no Inferno, Francesca, acusa o amor da sua situação. Segundo ela, foi por amor que fez aquilo que fez e seguiu o caminho que a levou a estar agora ali, no Inferno.




Alguns prisioneiros talvez se possam identificar com Francesca. O prisioneiro tende a culpar tudo e todos pelas suas acções. Talvez culpe a miséria da sua vida, a injustiça do mundo, as suas necessidades, as necessidades dos seus filhos. Às vezes, quando está na prisão, o prisioneiro pode perceber que está a fazer o mesmo que Francesca.


Francesca culpa o amor pelo facto de estar ali, pois, segundo ela, fez o que fez por amor. Foi o amor que a fez fazer as coisas que fez. Por amor. "O amor que o nosso coração tão rapidamente aprende".


Quando alguém fala com Dante - Dante coloca-se a si mesmo como o protagonista da Divina Comédia, o que, por si só, é de uma fina ironia - é porque Dante tem algo a aprender com o que esse alguém diz.


E o que terá Dante a perceber com Francesca? Dante aprende que há uma proximidade muito perigosa entre o amor e o Inferno. Em múltiplos sentidos. O inferno foi feito pelo amor e Dante verifica que muitas das almas no inferno estão lá por amor.


O que é que se pode fazer por amor? Bem, segundo a Divina Comédia, tudo se faz por amor: até mesmo o Inferno, até mesmo pôr-se a si mesmo a caminho do inferno. Dante precisa de perceber algo com Francesca.

Francesca é uma personagem apelativa - ao contrário de outros condenados no inferno - não é repelente. Somos tentados a simpatizar com ela.

Com Francesca Dante não precisa só de aprender quanto as inclinações nos podem afundar no inferno. O ponto crucial é, justamente, o contrário disso: Dante precisa de compreender que não foi o amor de Francesca que a condenou, que não são as nossas inclinações que nos levam ao inferno. O problema de Francesca é que ele permanece cega para a sua culpa: ela não se compreende na sua culpabilidade, não se julga culpável. Joga a responsabilidade no amor: foi por amor que se perdeu.

Francesca é uma personagem enganadora: por mais charmosa que ela possa parecer-nos, ela está no inferno. Esse é um ponto importante. Ela é culpada porque não pode absolver-se da sua própria responsabilidade em virtude das suas inclinações. As inclinações não decidem. O amor de Francesca não tomou decisão alguma: foi Francesca que tomou as suas decisões. A Francesca, na sua totalidade, era também as suas inclinações, mas condenou-se quando decidiu ser apenas as suas inclinações.


Há uma exegése complexa que o livro de Dante exige. Que o Inferno seja obra do amor não significa, por si mesmo, que o amor fabrique o mal. O Inferno não é o Mal. Também Kant percebeu muito bem que se podem fazer coisas boas na sequência do mal radical. O mal radical pode conviver com uma vida cheia de boas acções. Da mesma forma, seria possível percorrer o caminho do inferno fazendo só coisas boas. Mas Francesca significa que o amor pode fazer o mal - e, na medida em que faz o mal, ser efectivamente o fazedor do inferno.



Tudo isto é estranho para nós que estamos mais próximos de pensar que o Inferno é obra do ódio, que o mal é feito por ódio. Que o amor obra o bem e que o bem é a obra do amor.

terça-feira, 22 de março de 2016

O terrorismo é um ataque ao nosso modo de vida?

A propósito de terror e banalidade...

O terrorismo é um ataque ao nosso modo de vida?
É.
Mas é esse o maior problema com o terrorismo?
Não.
O terrorismo não seria menos errado se o nosso modo de vida fosse errado. O terrorismo não pode ser resumido como "um ataque ao nosso modo de vida"... Só pensamos que o terrorismo pode ser definido dessa maneira porque somos fundamentalmente egocêntricos. Pensamos que somos o centro do mundo, que somos o verdadeiro mundo, a verdadeira civilização, a verdadeira humanidade. Por isso, é natural que tenhamos mais dificuldade em sentirmo-nos tocados pelos atentados noutras partes do mundo. Que os terroristas se expludam no meio de uma cidade centro-africana toca-nos como uma curiosidade exótica.
...
Só quando o terror atinge as pessoas que apanham o metro, que andam de sub-urbano, que esperam pelo avião, que têm o nosso modo de vida, que são iguais a nós - só então, o terror nos atinge efectivamente.
...
Mas, convenhamos, o nosso modo de vida ocidental contemporâneo está longe de ser idílico, está longe de ser ideal, estamos longe de ser perfeitos exemplos de candura... o Ocidente não é um exemplo de rectidão moral, ética e política! O nosso modo de vida é profundamente desumanizado, materializado, sem alma e zombificado...


Ainda assim, o terrorismo está errado. O terrorismo está errado mesmo que o nosso modo de vida esteja também errado em muitos aspectos...


Agora, quando alguém diz que a nossa maior vitória contra o terrorismo é mantermos o nosso modo de vida, a nossa banalidade, há algo profundamente errado neste pensamento. A nossa vitória contra o terrorismo é acabar com ele. Erradicá-lo da face da terra. Quanto às supostas virtudes e pretensos vícios do nosso modo de vida - isso é uma discussão que tem de ser feita à parte... Caso contrário parece que há um outro terror a entrar pela retaguarda... como se para condenarmos o terrorismo tivéssemos de endeusar o modo de vida tipicamente ocidental...

O terror e o problema do paliativo

A propósito de terrorismo na Europa...

Imagine-se que um sujeito tem uma doença. Esta doença é fatal - talvez a médio-longo prazo. Contudo, imagine-se que há uma cura, desde que o medicamento certo seja tomado em tempo útil. Por outro lado, esta doença é tal que provoca dores horríveis no paciente e o problema é que a cura provoca, também, uma espécie de sofrimento agonizante. Há, no entanto, um paliativo bastante eficaz capaz de retirar as dores ao paciente. Infelizmente, o princípio activo capaz de atacar a doença e curar o paciente é incompatível com o paliativo.

Ora, se o paciente, com medo do sofrimento provocado pela cura, preferisse eliminar as dores tomando o paliativo, não diríamos que a sua escolha tinha sido imprudente?
Acontece, porém, que se passa com o paciente o mesmo que com aquela raposa que queria comer as uvas, mas constatando que estavam longe de mais para lhes chegar, se resume a dizer que, afinal, "até estão verdes"!
Ora, se o paciente, com medo do sofrimento provocado pela cura, preferisse eliminar as dores tomando o paliativo, não diríamos que a sua escolha tinha sido imprudente?Acontece, porém, que se passa com o paciente o mesmo que com aquela raposa que queria comer as uvas, mas constatando que estavam longe de mais para lhes chegar, se resume a dizer que, afinal, "até estão verdes"!É neste ponto que estamos no combate ao terrorismo. O Ocidente é esse paciente!

Primeiro: é importante que não se actue por impulso emocional sempre que há atentados.

Segundo: a verdadeira guerra ao terrorismo é a que se trava dos os dias - as dezenas de atentados evitados sem que a população se aperceba.

Mas há um problema: esse trabalho que os serviços de segurança fazem, e que é importantíssimo, não é, na verdade, uma luta contra o terrorismo. É apenas tratamento sintomático, não etiológico. Apenas ataca os efeitos, não as causas. A União Europeia não tem feito nada de relevante contra o terrorismo ao nível do combate às suas causas. Continua iludida de que pode resolver todos os seus problemas mandando milhões de euros para aqui ou para ali...

sábado, 12 de março de 2016

Os homens são naturalmente hipócritas



A propósito da hipocrisia humana.


"Em vão os espelhos se multiplicam à nossa volta e reflectem com exactidão geométrica a luz e a verdade; no momento em que os raios penetram o nosso olho e nos mostram tal como somos, o amor-próprio introduz o seu prisma enganador entre nós e a nossa imagem, e apresenta-nos uma divindade."

Xavier de Maistre, Viagem à Roda do meu Quarto



"Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
[...]
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
[...]

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?"

[Fernando Pessoa, ]Álvaro de Campos, Poema em Linha Recta



"em nenhuma outra coisa alguém se engana mais facilmente do que naquilo que favorece a sua boa opinião acerca de si mesmo"

Kant, A Religião nos Limites da Simples Razão



"os homens amam tanto a verdade que mesmo aqueles que vivem no erro obstinadamente o proclamam como sendo verdade"

Santo Agostinho, Confissões


Como se sabe, segundo Kierkegaard, os homens são naturalmente hipócritas. Como se sabe, esta tese não é nova - como se pode comprovar nas citações anteriores.

Não pretendo aqui defender esta tese. Apenas afastá-la de um equívoco.

A tese de que os homens são hipócritas não é o contrário de dizer que os homens amam a verdade. Pelo contrário, a hipocrisia só é possível na medida e que os homens amam a verdade. Se não a amassem não poderiam ser hipócritas quando se comprazem no erro.

Problemas filosóficos - Problemas existenciais

A propósito da questão - "O que é um problema existencial?"*


Muitas confusões surgem a propósito de problemas existenciais. Por exemplo, é comum relacionar suicídio e problemas existenciais, como se as pessoas se suicidassem sempre devido a problemas existenciais.

Na base desta confusão bastante comum está uma interpretação literal e imediata da expressão problema existencial. Segundo esta interpretação literal, um problema existencial seria um problema que surge na existência. Ora, como é evidente, não pode ser esse o significado da expressão, visto que nesse caso todos os problemas seriam problemas existenciais... pois que todos os problemas surgem na existência.

Ora, de facto nem todas as pessoas que se suicidam o farão por motivos propriamente existenciais. E nem todos os problemas que se têm na vida são problemas existenciais. Nem mesmo todos os problemas graves, difíceis de resolver são existenciais. E há problemas que ameaçam a nossa própria existência que não são problemas existenciais.

Pense-se um pouco: o que queremos dizer quando afirmamos que este ou aquele problema é um problema existencial?

Bem, com certeza não queremos dizer que é um problema psicológico, ou um problema amoroso. No entanto, as pessoas podem suicidar-se devido a problemas psicológicos ou amorosos.

Se um sujeito disser que foi abandonado pela sua namorada e que por isso quer morrer eu não direi que ele tem um problema existencial. Mas se um sujeito disser que anda a tentar perceber qual é o sentido da sua vida, então eu já direi sem qualquer dúvida que está a colocar um problema existencial. O sentido da vida é um problema existencial, mas passar fome não o é. No entanto, a fome é um problema muito importante, premente, decisivo na vida de uma pessoa.

Um problema existencial, pelo simples facto de ser um problema existencial, não é nem mais nem menos importante do que outros problemas. Os outros problemas podem ocupar-nos a vida e é perfeitamente normal que o façam: as mulheres que vivem em zonas recônditas de África e têm de percorrer diariamente vários quilómetros simplesmente para se abastecerem de água têm aqui uma dificuldade assinalável. Uma mulher que tem um marido que lhe bate constantemente, tem um problema muito grave na sua vida. Etc. Mas estes problemas não são problemas existenciais.

Na verdade, os problemas existenciais podem desempenhar um papel muito reduzido na minha vida. Se eu tenho cinco filhos para alimentar num país corrupto e sub-desenvolvido, que não me oferece igualdade de oportunidades e que me castiga com impostos excessivos, talvez os problemas existenciais tendam a passar despercebidos. Ou talvez não passem despercebidos. Seja como for, a questão é que nem todos os problemas graves são problemas existenciais.

Portanto, assim como se pode ter problemas de saúde, psicológicos, psiquiátricos, de dinheiro, de emprego, de trabalho, etc., também se pode ter problemas existenciais, mas estes não se confundem com aqueles... E, normalmente, quando nós temos problemas existenciais somos também capazes de dar conta de uma certa peculiaridade, especificidade, deste tipo de problemas - mesmo se nunca estudámos filosofia.

Ora, tendo afastado estes falsos amigos, estas confusões habituais, podemos então perceber que os problemas existenciais parecem ter que ver com a Filosofia. E, de facto, assim é.

No entanto, nem todos os problemas filosóficos são problemas existenciais. Um problema de lógica não é existencial. Mas os problemas existenciais são sempre problemas filosóficos.

Então, o que são problemas filosóficos?

A dificuldade que há em definir os problemas existenciais tem que ver com a dificuldade própria de definir os problemas filosóficos, e esta está relacionada com a dificuldade que há em definir a Filosofia.

Uma boa definição de Filosofia deveria incluir todas as correntes, todas as metodologias e todos os objectos de estudo da Filosofia.

Por exemplo, embora eu possa ser um filósofo existencialista não devo definir a Filosofia de modo a que só o Existencialismo esteja incluído, mas também as outras correntes. Se eu sou fenomenólogo não devo fornecer uma definição de Filosofia que exclua as restantes metodologias. Uma boa definição deve incluir as várias correntes e as várias metodologias.

O problema do objecto de estudo da Filosofia também é difícil. De facto, cada ciência tem o seu objecto, mas a Filosofia lida com muitos objectos. Por isso mesmo, a Filosofia está dividida em muitas áreas. A Epistemologia, a Axiologia, a Ética, a Lógica, são áreas da Filosofia, cada uma com um objecto diferente, mas todas elas são áreas filosóficas e é muito difícil perceber o que é que as une a todas dentro de um mesmo conceito, o conceito de Filosofia.

Muitas vezes tem-se a tentação de dizer que aquilo que define a Filosofia é a imprecisão, mas isso não é verdade. A Metafísica é, de facto, algo impreciso, mas isso não significa que não seja rigorosa. Simplesmente, tem um rigor diferente da matemática. A Ética é uma disciplina cujos problemas são abertos, isto é, para os quais não é possível dar uma resposta definitiva, unívoca e absolutamente indiscutível. Claro que isso não significa que a investigação em Ética não seja rigorosa. Todavia, a Lógica não é apenas uma disciplina rigorosa como é absolutamente precisa e completamente fechada. Os problemas lógicos têm a precisão, o rigor e a apodicticidade da matemática. Têm uma resposta objectiva e indiscutível: se P implica Q e P e é o caso, então Q é o caso.

Dado que a Filosofia tem muitos objectos (os valores na Axiologia, a acção na Ética, a ciência na Epistemologia, etc.), por vezes tem-se a tentação de dizer que os problemas filosóficos não têm um objecto específico. Ora, isto é pura e simplesmente errado.

Se um problema filosófico não tem um objecto específico, então o problema deve estar mal formulado. Claro que há problemas, digamos assim, muldisciplinares, mas essa é outra questão. Quando pergunto "o que é o conhecimento?", esta pergunta filosófica tem um objecto específico, a saber, o conhecimento - por isso, pertence à Filosofia do Conhecimento. Se eu perguntar "o que é a Beleza?", esta pergunta filosófica tem um objecto específico: a Beleza - por isso, pertence à Estética.

É certo que alguns dos objectos da Filosofia não são definíveis da mesma maneira que o são os objectos da Ciência. É extraordinariamente difícil perceber o que é o conhecimento, ou o que significa conhecer algo. Talvez nem seja possível dar uma definição definitiva. Mas, de qualquer forma, quando pergunto "o que é o conhecimento?" tenho um objecto específico: pergunto pelo conhecimento e não pela beleza, ou pela arte, ou pela política, ou pelo átomo, ou pelas forças da natureza.

Portanto, os problemas filosóficos - se estão bem formulados - têm objectos específicos distintos, ainda que estes objectos não sejam claros. Quer dizer: posso não ser capaz de definir exactamente o que é o conhecimento, mas os problemas da Filosofia do Conhecimento têm um objecto específico que é o conhecimento.

Ora, os problemas existenciais são um tipo específico de problemas filosóficos que, como tal, devem ter um objecto específico. O objecto é, como não poderia deixar de ser, a existência humana. É certo que o que seja isso de "existência humana" é muito complexo de definir. Não é estar simplesmente aí ao lado de outros objectos como um como está ao lado de outro em cima da mesa. O humano não está no mundo ao mesmo modo que um copo está no mundo. O estar-aí do humano é específico e não se deixa capturar sem mais. Quer dizer, em certo sentido, nós sabemos o que é existir, nós sabemos o que é estar-aí, mas sabemos no modo do estar-aí que é o nosso, e não no modo teórico.

Mas isto já é importante. Os problemas existenciais são problemas filosóficos que têm como objecto a existência no modo da existência.

O que quer isto dizer?

Por exemplo, se eu coloco a pergunta "qual é o sentido da vida?" estou a colocar um problema existencial. Agora imagine-se que eu sou filósofo e estou a colocar o problema numa dissertação de mestrado. Eu coloco o problema do ponto de vista teórico e tento resolvê-lo seriamente, abordando os vários ângulos da questão, etc. Mas isso não significa que eu tenho um problema existencial. Na verdade, posso estar a milhas de ter um problema existencial: a minha vida corre bem, não estou de facto a afundar-me na ausência de sentido; pelo contrário, estou motivado para terminar a dissertação, talvez até já tenha em vista um lugar na Universidade, talvez tenha uma namorada fiel e amorosa que me acompanha. Enfim, enquanto me debato intelectualmente com o problema existencial "qual é o sentido da vida?" não tenho, propriamente, um problema existencial. Na minha vida o problema existencial do sentido dela está resolvido: tirar o mestrado, dar aulas, casar-me, etc.

Agora imagine-se um sujeito que nunca estudou Filosofia mas que um dia, quer seja porque alguma coisa lhe aconteceu, quer seja porque começou simplesmente a pensar nisso, sentiu que a sua vida não tem sentido. Então ele resvala no problema existencial, cai nele, afunda-se nele. Este problema não é para ele uma questão teórica. Este problema abala a sua existência inteira e totalmente. E abala-o disposicionalmente, emocionalmente, sentimentalmente. Não se trata de resolver o problema teórico - trata-se de resolver o problema existencial.

Quer dizer, o problema existencial é, de certo modo, um problema filosófico, mas por outro lado, é outra coisa. É um problema filosófico no sentido em que o problema teórico, o questionamento temático, pertence à Filosofia. É a Filosofia que tematiza o sentido da vida. É a Filosofia que formula teoricamente o problema existencial. Mas o problema é, em sentido rigoroso, um problema existencial quando este problema se dá ao modo da existência.

Portanto, o problema existencial está sempre inscrito existencialmente: eu estou nele. Não estou apenas ocupado teoricamente com ele. Estou vivencialmente nele. Vivo nele. E posso matar-me por ele. Posso suicidar-me porque a minha vida perdeu todo o sentido para mim.

Contudo, nem todos os problemas em que eu vivo, que são existencialmente relevantes para mim, são problemas existenciais. Como já disse, se eu passo fome a fome é um problema em que eu me encontro. A frustração no emprego não é apenas um problema teórico: é um problema que habito. Mas não é um problema existencial.

Assim, um problema existencial é: 1) um problema filosófico (no sentido em que a sua tematização pertence à Filosofia); 2) um problema que visa a existência humana enquanto tal - ou seja, visa a minha existência enquanto sou eu que a habito, e a minha existência enquanto totalidade; 3) um problema que está posto para mim ao modo de ser habitado por mim, no modo em que eu moro nele.

O melhor exemplo é, justamente, a pergunta pelo sentido da vida quando esta surge para mim enquanto me implica a mim mesmo como existente e a minha vida enquanto é a minha.

Não é quando me ocupo dela teoricamente, ao modo do pensar nela, mas quando ela me invade, quando ela me define, quando estou disposto por ela que ela é um problema existencial. Quando na minha vida me encontro a mim mesmo habitando o problema do sentido, então tenho um problema existencial.

É isto que é um problema existencial.

E o problema existencial é o problema filosófico por excelência, entre outras coisas, porque é justamente um problema em que qualquer um se pode encontrar a si mesmo, seja-se filósofo, vendedor de automóveis ou banqueiro, seja-se rico ou pobre, culto ou inculto, esteja-se no auge da carreira profissional ou no desemprego de longa duração... Os problemas existenciais podem acometer a qualquer um. Podemos cair neles porque os começamos a considerar do ponto de vista teórico e depois eles nos engoliram. Ou podemos apanhá-los como como se apanha uma doença. Podemos ser engolidos por eles mesmo quando a nossa vida está cheia de sucessos, e podemos ser surpreendidos por eles quando não temos tido senão insucessos.


Podemos ficar sem vida neles, ou podemos ganhar-nos para a vida por eles.

São os problemas filosóficos mais perigosos, e também aqueles que abrem para a autenticidade.

Nunca se é verdadeiramente autêntico sem termos lutado neles, sem nos termos afundado neles. Mas o perigo é imenso porque, seja o que for que saibamos teoricamente acerca deles, uma vez que nos tenhamos encontrado a nós mesmos a morar neles, teremos de ser nós, por nossa conta e risco, a vencê-los ou a deixarmo-nos vencer.

A maioria de nós vive longe deles, toca-os de longe, quando muito, ao modo do pensamento. A maioria de nós julga que já está neles quando está na periferia afastada, e escapa deles recorrendo a paliativos, a ilusões, a doces mentiras que contamos a nós mesmos.

Portanto: não, não é verdade que todos os suicidas se matem por problemas existenciais; a maioria não o faz; poucos o fazem; na verdade, o mais provável é que muito raramente alguém se mate por problemas existenciais. No início e na maioria das vezes, nada temos com eles. Mesmo quando escrevemos sobre eles ou falamos deles para fazermos boa figura num qualquer jantar de circunstância.


* Questão colocada por um leitor


terça-feira, 8 de março de 2016

Da diferença entre "acção" e "linguagem"

A propósito de "acção"...


Há dias, numa discussão sobre o valor de contribuir nas acções de recolha de alimentos, alguém me repetia aquele argumento tão usual: 

não dou nada porque a maior parte não chega àqueles que realmente precisam. Eu até seria capaz de dar o meu suor, de dar a camisa pelos necessitados, mas estas campanhas nunca servem senão para encher os bolsos de alguns

Evidentemente, respondi: 

se realmente é capaz de dar o seu suor e a camisa pelos necessitados, então não esteja aqui a discutir comigo, arregace as mangas e ponha-se a caminho que qualquer discussão é apenas tempo perdido. Os médicos que largam tudo nas suas casas e vão para o meio da miséria, voluntária e gratuitamente, oferecer os seus serviços e arriscar a própria saúde não são conhecidos por fazerem grandes argumentos filosóficos para justificar que não se dê um pacote de arroz nas campanhas de alimentos: eles estão lá onde podem dar camisa e suor pelos necessitados

A "baba da linguagem", como diz Kierkegaard, permite-nos iludirmo-nos constantemente a nós mesmos sobre o nosso valor para nós próprios...
 
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