sábado, 12 de dezembro de 2015

Será que a educação mata o terrorismo?


A propósito do chavão "a educação mata o terrorismo"...




Há um problema que é de sempre: quando um chavão cai nas cabeças das pessoas, nem o diabo é capaz de o tirar de lá.


As pessoas continuam a escrever em teses, em dissertações, em artigos, em jornais e em revistas - das mais variadas especialidades, e generalistas - aquela ideia segundo a qual - e para citar apenas uma das referências que mais parece simbolizar o chavão que aqui pretendo criticar - dizia eu, as pessoas insistem em repetir a ideia segundo a qual "as armas podem matar terroristas, mas a educação mata o terrorismo".


Muito bem. Eu próprio repeti este chavão até à exaustão, e até começar a ler e ter estudado um pouco sobre o Estado Islâmico.


O Estado Islâmico representa, quer se queira quer não, uma realidade nova. Muitas pessoas insistem (é verdade que nos textos da especialidade já não se vê esta ideia, mas o senso-comum continua a insistir nisto) em dizer que o Estado Islâmico renega a educação, o estudo das tecnologias e da ciência em geral. Alguns jornalistas também são culpados por esta generalização porque pensam que, se o Estado Islâmico impõe o estudo da religião e tal, então deve impedir o estudo da ciência em geral.


Vamos lá a ver o que nos dizem as informações de que dispomos (se alguém estiver disposto a viajar para o Estado Islâmico para confirmar, faça favor, seja como for, estas são as informações disponíveis):


- o Estado Islâmico integra MILHARES de especialistas nas mais variadas áreas científicas e tecnológicas, a maioria, na verdade, quase todos, formados em UNIVERSIDADES OCIDENTAIS; estes especialistas não são ignorados pelo Estado Islâmico, pelo contrário, têm lugar de destaque;


- o Estado Islâmico tem feito vários apelos a que especialistas se juntem à sua causa, considerando que estas pessoas com estudos superiores e altamente especializadas são de extrema importância (aliás, embora, em geral, não permitam que as raparigas estudem excepto nas áreas religiosas, na verdade, os dirigentes do Estado Islâmico permitem que médicas e outras especialistas, mulheres já formadas, exerçam).


É verdade que o Estado Islâmico nega muitas das teses do paradigma científico vigente actualmente no ocidente, mas isto não significa, de modo nenhum, que não dê importância à formação e à educação, sobretudo, na sua vertente técnica e prática, tal como teológica e jurídica.


Portanto, não é nada evidente que "a educação mata o terrorismo" - pelo menos, se tivermos em atenção que muitos dos terroristas tiveram acesso a educação, a educação especializada, especializada nas próprias universidades do ocidente, e até mesmo em algumas das consideradas como sendo das melhores universidades do mundo.


Estes aspectos não devem ser esquecidos... embora, como é óbvio, não contem a estória toda.


Aliás, era bom que não esquecessemos as descrições de quem viu a máquina da morte nazi ser pensada, projectada, arquitectada, manipulada e operada por especialistas, doutores e técnicos, desde médicos a engenheiros, passando por biólogos, juristas, filósofos, entre muitos outros, na verdade, de todas as áreas, altamente financiadas pelo regime que, com a ajuda de toda essa educação, formação e especialização, conseguiu pôr em marcha um dos fenómenos mais macabros da história da civilização altamente desenvolvida e cientificamente sobrevalorizada!

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Canibalismo e cultura

A propósito de,




Inicialmente, o termo "canibal" significava "selvagem" e qualificava certos povos americanos, da zona do Caribe. A palavra "canibal" parece ter derivado de "caribe", termo usado para significar "homem cruel". O índio foi visto como um homem selvagem, não civilizado e mesmo sem cultura, entregue à animalidade e a práticas consideradas desumanas pela cultura europeia: incesto, infanticídio e antropofagia. Neste sentido, o canibalismo era considerado uma prática não só imoral como também a-cultural, animalesca e desumana.

Mais tarde, o canibalismo deixou de ser relatado como monstruosidade animal para passar a ser considerado como uma prática ritual presente em várias culturas no mundo. Pouco a pouco, os estudiosos deixaram de ver o canibalismo como uma prática selvagem, marca da ausência de cultura, para passarem a vê-lo como elemento cultural próprio de certos povos e até mesmo civilizações. O canibalismo era, então, um elemento cultural e civilizacional que poderia ser observado em certas culturas e civilizações.

Com isto, alguns passaram a dividir o canibalismo em dois tipos. Por um lado, o bom canibalismo, o canibalismo ritual, parte integrante de um cultura e elemento constituinte da identidade de um povo, em que um inimigo é cozinhado e repartido entre os elementos da tribo que depois o comem. Este canibalismo, bom, tem um sentido, uma lógica e uma moral que o enquadra culturalmente. Mas, por outro lado, também há o mau canibalismo, instintivo, praticado por fome, em que a vítima é amiúde consumida crua, sem a presença de qualquer elemento ritual ou cultural e sem qualquer intenção de partilhar a carne. Este canibalismo, mau, é uma forma de bestialidade ou, pelo menos, uma cedência ao império do elemento animalesco. É certo que há uma lógica de sobrevivência, mas desta está completamente ausente qualquer elemento espiritual, cultural, moral ou ético. É, portanto, concebido como um acto propriamente imoral no sentido em que o próprio sujeito está, normalmente, consciente do mal, da crueldade e da violência que o seu acto representa, mas ainda assim consome outro homem para desse modo não morrer de fome.

Há, portanto, um momento em que o gesto canibal passa a ser de algum modo desculpado, desde que ocorra num quadro conceptual que lhe dê sentido e que, portanto, apresente tal acto como justificado ao sujeito que o pratica. O capuchino Claude d'Abeville descreve a situação em que o índio cumpre o ritual canibal com relutância, de tal modo que o pratica devido ao carácter de "obrigação" que a tradição lhe incute. Nessa situação, o índio come outro homem para cumprir as leis e as normas da tradição e da cultura que identificam o seu povo e, em alguns casos, já não parece haver qualquer prazer pessoal nisso. Alguns chegam mesmo a vomitar a carne consumida e declaram que não o teriam comido, não fosse para cumprir a tradição. Tal como entre nós alguns apenas cumprem as normas culturais por obrigação sem retirarem disso qualquer prazer e muitas vezes as cumprem mesmo retirando disso apenas dissabores, também entre as culturas canibais alguns indivíduos consomem carne humana por obrigação, sem disso retirarem qualquer satisfação sensível e muitas vezes obtendo apenas um dissabor literal que os leva ao vómito.

Contudo, apesar desta desculpabilização do acto ritual do canibalismo, desculpabilização que podemos encontrar mesmo entre relatos de homens da Igreja, a verdade é que os europeus tenderam a limitar, a dissuadir, a impedir, a proibir práticas canibais. Se o canibalismo era desculpado aos índios, era-o apenas na medida em que eles eram ignorantes do verdadeiro carácter imoral do acto canibal. Se o canibal era inocente, era inocente porque era ignorante. Na verdade, havia entre a filosofia dos europeus a crença inabalável de que também o canibal era humano e que dentro de todos os humanos se encontrava um elemento ético fundamental, bastando então que o índio fosse educado para perceber a sua própria natureza moral.

De facto, a crença de que se pode educar um canibal só tem fundamento na medida em que se acredite haver em todos os homens uma essência moral universalmente partilhada, a qual poderá servir de critério para que todos os homens, incluindo os índios, possam reconhecer o verdadeiro bem e o verdadeiro mal, de modo a que também os canibais possam admitir o seu erro. Sem a presença de um elemento universal que sirva de critério as morais serão essencialmente incomensuráveis entre si - então, o índio poderá ser coagido pela força, os seus filhos poderão ser educados noutra cultura, mas o que jamais se conseguirá é que um povo canibal reconheça que o canibalismo é um mal.

Nós, hoje, vivemos numa situação curiosa, embora já identificada por vários filósofos: perdemos aquilo que servia de fundamento às nossas convicções morais, mas queremos manter as nossas convicções morais e, simultaneamente, mantermo-nos convictos de que as nossas convicções morais têm fundamento. Assim, sabemos ou acreditamos saber que não há no homem nenhuma universalidade moral, que cada moral é um regime de sentido regional, paroquial. Sabemos ou acreditamos saber que a moral não é um conjunto de valores válidos em si mesmos, inscritos na natureza das coisas, gravados na realidade, mas um edifício cultural construído por homens e cuja validade depende apenas da crença neles. Mas continuamos desesperadamente convictos de que há actos maus e actos bons, de que, por exemplo, o infanticídio é mau, de que o canibalismo é mau, de que ajudar o nosso semelhante é bom, etc.

A pergunta que Nietzsche colocou, tal como Rorty mais tarde, é a seguinte: seremos capazes de permanecer convictos dos nossos ideais, valores e desejos mesmo que reconheçamos que não temos para eles nenhum fundamento outro que o de acreditarmos neles?

A resposta de Nietzsche, tal como mais tarde a de Rorty, parece negar a nossa compreensão vulgar da noção de "crença" segundo a qual 

crer que "P"

é o mesmo que

crer que "P é verdade".

Rorty tematiza esta distinção tão importante para Nietzsche: uma coisa é a convicção - outra diferente a pretensão epistemológica. Posso defender acerrimamente a minha convicção e, simultaneamente, reconhecer o seu carácter puramente contingente. Surge assim, em Rorty, a noção de ironia liberal. Noção que parece entrelaçar de forma surpreendentemente sugestiva elementos nietzschianos e kierkegaardianos.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Ética: como se sai desta confusão?

A propósito de ética

Como produzir um campo ético em sentido próprio?
A questão é difícil, como se sabe, e eu não pretendo ter uma solução. Como também se sabe, este problema tem levado alguns filósofos a colocar a possibilidade de um intuicionismo ético - qualquer coisa como um senso ético, no sentido que o termo "intuição" tem em Aristóteles. Esta solução tem a vantagem de fazer desaparecer o problema - deslocando-o para o questionamento fáctico (saber se existe, ou não, tal coisa como uma intuição ética - um conhecimento, é certo, mas originariamente ético - e se tal intuição constitui "a cognitive point of view, accessible to human beings, from which that truth can be ascertained", para usar uma expressão de Price). Como se sabe, há até quem defenda que o próprio Aristóteles postula uma faculdade especial de intuição ética... (o que eu não consigo encontrar em Aristóteles, pelo menos, no grego - embora conceda que algumas traduções nos sugiram isso)...

Na minha opinião, o problema ético não se resolve criando novas teorias - as quais partem quase sempre, e talvez inevitavelmente - de observações empíricas para, supostamente, deduzir observações ética... Que os conteúdos cognitivos são eticamente neutros pode confirmar-se pelo facto de que alguns dos piores horrores perpetrados pela humanidade foram efectuados e possibilitados por esses mesmos conteúdos cognitivos... A observação empírica de que todos os humanos sentem dor não foi menos útil aos arquitectos de vários horrores da civilização...
Hoje encontramo-nos numa considerável confusão ética com uma proliferação infindável de teorias prováveis opostas. Praticamente tudo já foi defendido por alguém que dá aulas numa qualquer universidade com prestígio - e se algo ainda não foi defendido podemos ter esperança que o virá a ser já num artigo a ser publicado na próxima semana. Qualquer iniciante no curso de Filosofia - aliás, qualquer comentador e até mesmo qualquer jornalista - se propõe encontrar uma nova ética, ou acha que o que falta é desenhar uma nova ética... Ora, como é evidente, qualquer nova teoria ética, por mais racional e razoável que seja, será apenas mais uma que se vem juntar à confusão: mais uma opinião racional e razoável a acrescentar às restantes! Isto porque, justamente devido ao facto de o âmbito do ético não pertencer ao âmbito cognitivo, não é de prever a ocorrência de uma evidência absoluta e apodíctica (se é que o próprio âmbito cognitivo).

Mas, afinal, como é que se extrai de uma observação empírica um postulado ético? Não será que isso só é possível se eu já tiver uma compreensão ética prévia em funcionamento? Como é que eu poderei alguma vez chegar ao postulado de que "devo agir eticamente" senão porque já possuo uma compreensão ética da vida humana? Ou: como chego ao postulado ético de "não devo matar" senão houver em mim certos pressupostos éticos? Como se chega à conclusão de que devemos respeitar o outro depois de dizer que ele também tem interesses? Quer dizer: afirmar que todos temos interesses não produz, per se, qualquer conclusão ética. 

Faça-se o teste: coloquem-se todas as proposições puramente descritivas da realidade que se queira em linha e veja-se se alguma vez resulta delas uma injunção ética. 

Proposição: todos os homens têm interesses.

Quando é que essa proposição produz um conteúdo ético? Quando é que surge o conteúdo ético segundo o qual devo considerar os interesses dos outros? (ou até mesmo o meu, mas não vou agora para aí - quer dizer, mesmo a minha preocupação relativamente aos meus interesses não tem a forma de uma conclusão lógica deduzida de premissas, como se a minha preocupação por mim resultasse da relação lógica entre determinadas premissas: a minha preocupação por mim parece ter a forma de algo previamente constituído)
Se eu não tiver qualquer outra preocupação senão o interesse por mim, então o interesse pelos interesses dos outros só poderá ser posto em função deste interesse por mim. Mas, claro, se formos honestos com isto penso que as conclusões serão repudiadas pela maioria de nós. Porque, então, por que não enganar os outros sempre que o possa fazer sem ser apanhado? Por que devo respeitar o interesse dos outros senão na exacta medida em que isso for do meu interesse na situação em apreço?

Há, ou não, em nós uma preocupação ética anterior a qualquer teorização ética? Se não há, parece-me que não poderá ser produzida de maneira nenhuma (como, aliás, se poderá ver pelos psicopatas). A haver, então ela provavelmente mobiliza-nos num certo sentido, e, provavelmente, se entramos na investigação ética de modo honesto, então não poderemos fazer mais do que procurar razões para justificar aquela que, afinal, já era a nossa preocupação original - ou seja, encontrar razões para levar outros a ter a mesma preocupação.
Ou, dito de outro modo: por que raio "eu" me preocupo com a crueldade exercida sobre o meu semelhante (ou sobre o dissemelhante, é indiferente para o caso)? Será que é porque um raciocínio me demonstrou que essa preocupação era racional (ou razoável - nem vou aqui entrar no pantanoso universo do razoável)?

E se, amanhã, um dos maiores filósofos do mundo, ou um conluio dos maiores filósofos do mundo (seja lá isso o que for), nos mostrasse que as suas cogitações lógicas, racionais, razoáveis, demonstravam que, afinal, o sentido da vida está no sofrimento e que toda a história da filosofia foi uma confusão categorial: a felicidade é o mal, e o sofrimento o bem que se deve querer por si mesmo e em função do qual tudo deve ser querido?
Será que eu me preocupo em ser feliz devido a um argumento? 
Se não há originariamente em mim outra preocupação a não ser a que vela por mim mesmo, então qualquer outra preocupação terá de ser deduzida dessa. Nesse caso, tudo o que a filosofia pode fazer é encontrar elos racionais entre essa preocupação por mim e a consideração pelos outros (do tipo: se cuidares dos outros outros também te serão favoráveis).
Na minha opinião, só faz sentido falar de um "âmbito ético" se houver, de facto, em nós uma "preocupação ética" que não possa ser reduzida ao interesse imediato por mim (nem às inclinações imediatamente dadas). 
Isto gera uma espécie de monstro: o ético para ser um âmbito próprio (e não apenas um desenvolvimento psicopata) terá de ser, por um lado, uma preocupação imediatamente dada - e, por outro, um interesse ainda não constituído... Tudo isto parece uma contradição nos termos - que, aliás, nós já não estamos em condições de compreender muito bem, porque o empreendimento cultural contemporâneo tem sido o de fazer identificar o âmbito do ético ao âmbito do imediatamente constituído (da satisfação dos interesses)... Mas esta compreensão predominante hoje não tem de ser assim - é uma teoria sobre o assunto, como outra qualquer, e não deve ser vista como se correspondesse "à realidade". Mas não se deveria perder de vista que durante grande parte da nossa história o ético constituiu, de facto, um âmbito próprio que tentou pensar esse "monstro", esse aparente paradoxo do ético. Foi com este monstro que se debateram filósofos tão diferentes como Aristóteles ou Kant, Nietzsche ou Kierkegaard. 
Para concluir: penso que hoje vivemos uma confusão ética que não pode ser resolvida criando uma nova ética que correspondesse aos novos tempos... Esta pretensão de criar uma nova ética parece-me ser, essencialmente, a negação do âmbito ético... Se criar uma nova ética é o que há a fazer, então o que dará mais legitimidade a uma ética como a de Singer do que a uma ética Nazi? Quer dizer: o que seria isso de criar uma nova ética senão pretender dizer o que, doravante, deve ser considerado "dever", ou "certo"? Mas, então, que critério neutro poderia haver para avaliar entre éticas? Mais: será que é admissível sequer exigir um critério neutro para avaliar entre éticas? O ético não é, justamente, a negação da neutralidade?

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Neoliberalismo, hoje?

A propósito de Social-democracia, Neoliberalismo e uma terceira via




Vê-se que o Neoliberalismo começa a gerar entre os intelectuais e especialistas um certo consenso: um continuado e crescente ab-rogar desta ideologia.

Isto é interessante. Cada vez mais, os intelectuais e estudiosos parecem pôr de parte as boas intenções do Neoliberalismo, por um lado, e a capacidade para cumprir aquilo que promete, por outro lado.

Isto significa que o consenso (não interessa se apenas aparente) entre os políticos da política real, e o povo (pois o povo tem continuamente validado com votos o neoliberalismo), não está a ser seguido, ou, pelo menos, já não está a ser seguido pela maioria dos que estudam e pensam a política, a economia e a democracia em particular.

A oposição entre neoliberalismo e social democracia é a oposição entre uma ideologia e outra ideologia - não é a oposição entre a realidade, por um lado, e uma utopia, por outro. Este aspecto é muito importante, e deve ser reconhecido por ambos os lados da disputa.


A Social-democracia foi uma ideologia surgida do Socialismo quando um conjunto de socialistas decidiu que, em vez de acabar com o capitalismo, queria utilizá-lo para promover melhorias sociais. Surgiu assim a divisão entre partidos comunistas, ligados ainda a uma certa ortodoxia socialista, e os partidos socialistas que queriam pôr em prática uma política social-democrata que usasse a prosperidade capitalista para produzir uma sociedade mais justa e igualitária. O Socialismo é uma ideologia que não implica formalmente uma democracia de tipo liberal. A URSS, a China e Cuba são exemplos de regimes socialistas não democráticos (segundo o padrão da democracia liberal enquanto pluralidade partidária). Pelo contrário, a Social-democracia implica pelas suas próprias premissas um regime democrático pluralista. Não há Social-democracia sem democracia, mas pode haver Socialismo sem democracia.


O Neoliberalismo surgiu quando a ideia de liberdade passou a ser restringida a um aspecto da vida social, a saber, à economia. O Liberalismo que defendia a espontaneidade social - que os indivíduos deveriam ser livres e só ser limitados pela liberdade dos outros - deu, assim, origem ao neoliberalismo, o qual defende que o decisivo é a liberdade do indivíduo enquanto detentor de propriedade ou de capital, deste modo reduzindo a noção de justiça a um conceito meramente mercantil.
O Neoliberalismo - ao contrário do Liberalismo - não é uma ideologia que esteja necessariamente associada a uma sociedade e a um regime político democrático. O Liberalismo correspondia a uma certa visão de como a democracia deveria funcionar - o Neoliberalismo é uma visão de como os mercados devem funcionar, mas é-lhe indiferente se esse funcionamento é imposto democrática ou ditatorialmente. Houve governos neoliberais em democracias liberais, e houve governos neoliberais em regimes ditatoriais. Mas nunca seria possível um governo liberal num regime ditatorial, pois o liberalismo é, pelos seus próprios termos, democrático. Não há Liberalismo sem democracia, mas pode haver Neoliberalismo sem democracia.

A dada altura, surgiu, pois, a disputa entre Social-democracia e Neoliberalismo.

A Social-democracia defendia a intervenção do Estado de modo a assegurar uma sociedade mais igualitária. Assim, a Social-democracia precisa de um Estado que cobre impostos e outras taxas para promover a redistribuição de capitais e recursos do topo da sociedade para a base, dos mais ricos para os mais pobres. A isto chamava-se Estado Social. O Estado tem, segundo a Social-democracia, uma função social.

O Neoliberalismo tinha como ideal o desaparecimento do Estado, pois este só poderia ter um efeito limitador e castrador da liberdade económica ao coarctar  a espontaneidade dos mercados. Assim, segundo o Neoliberalismo, os impostos deveriam ser reduzidos ao máximo, tanto quanto possível. O Estado deveria abdicar da sua função social. Idealmente, toda a intervenção do Estado deveria terminar. 

Ora, o Neoliberalismo venceu esta disputa porque os partidos da Social-democracia acabaram por interiorizar grande parte das premissas da narrativa neoliberal. Os social-democratas neoliberalizaram-se. A história da disputa entre Neoliberalismo e Social-democracia é a história da progressiva neoliberalização dos partidos social-democratas. 

Assim, a verdade é que não surgiu, verdadeiramente, uma terceira via. A terceira via - sobretudo apontada por alguns social-democratas, membros de partidos socialistas, não foi mais do que a criação de versões cada vez mais neoliberalizadas da Social-democracia.

Contudo, hoje assistimos, efectivamente, ao surgimento de uma terceira via.

A Social-democracia defendia a intervenção do Estado para transferir recursos do topo para a base da pirâmide. O Neoliberalismo defendia o fim de toda a intervenção estatal na vida económica. Hoje temos uma terceira via: defende-se a intervenção do Estado de modo a transferir recursos financeiros do meio da pirâmide para o topo. Esta terceira via não é Neoliberalismo, porque o Neoliberalismo defende a redução extrema de impostos e a não intervenção do Estado na economia; mas também não é Social-democracia, porque esta defendia a intervenção do Estado mas para auxiliar os mais pobres. Ora, a terceira via põe em prática outra coisa: aumenta e cria novos impostos para remunerar os detentores de capital; transfere dinheiro das classes mais alargadas para o topo da pirâmide; intervém activamente no mercado para assumir dívidas privadas.

Esta terceira via tem estado em prática de modos variados conforme os países. Em Portugal, a sua forma mais visível é o financiamento dos Bancos que, sem essa intervenção do Estado, teriam falido. Esta política contraria as premissas do Neoliberalismo, pois este defende que se um agente económico deve sobreviver no mercado por si e se não for capaz deve deixar-se desaparecer, tal como a natureza condena à extinção as espécies inadaptadas. Mas também contraria a Social-democracia, porque esta considera justos os impostos apenas se servir para reduzir a disparidade entre ricos e pobres, e defende a intervenção do Estado apenas nas áreas do Estado Social.

Nós temos hoje uma ideologia que considera justo aumentar a carga fiscal para remunerar o topo da sociedade, que considera que os danos provocados e sofridos pelos detentores de capital devem ser suportados pela sociedade em geral. Trata-se de algo novo em política. Pensa-se que o topo deve ser favorecido e protegido pelo Estado, mesmo se este tem de onerar as classes menos favorecidas.

Que esta terceira via existe, e que já está em prática - é algo que parece ainda passar despercebido. Os intelectuais e estudiosos continuam ainda a debater a disputa entre Social-democracia e Neoliberalismo. Embora se tenham apercebido da vitória deste último e estejam cada vez mais conscientes da perversidade dele, continuam a não se aperceber de que o Neoliberalismo já foi, também, ultrapassado. 

É importante perceber que esta terceira via existe. Tente-se, por exemplo, confrontar aquilo que Passos Coelho fez nestes quatro anos com aquelas duas ideologias: Passos concordará com a existência de impostos, com a legitimidade do Estado para aumentar a carga fiscal, etc., que é uma noção clássica da Social-democracia, isto é, da esquerda moderada; mas também concordará que os mercados se auto-regulam a si mesmos e que o Estado não deve aumentar os impostos sobre o capital, que era uma ideia neo-liberal. Quer dizer: torna-se muito difícil acusar esta política da terceira via se não estivermos conscientes de que já não é apenas um Neo-liberalismo. Curiosamente, quem tem percebido mais claramente esta deriva da direita tem sido a própria direita. Antigos defensores do Neo-liberalismo têm-se demarcado desta política. Mas a esquerda tem tido muitas dificuldades em perceber que já tem as suas armas descalibradas. O que faz om que, muitas vezes, quando a esquerda moderada pensa estar a dar tiros nesta nova política esteja a dar tiros nos próprios pés. Esteja a dar tiros mais nas suas próprias práticas, do que nesta prática que hoje configura uma terceira via.

Tudo isto ajuda a perceber a razão pela qual é difícil, hoje, distinguir PS e PSD - dada a aproximação da Social-democracia (PS) em Neoliberalismo (PSD). E, simultaneamente, a dificuldade que há em perceber exactamente o que distingue ideologicamente esta nova prática - em Portugal desde há quatro anos, mas há mais lá fora... Tudo isto tem criado um fenómeno interessante. Há, de facto, uma terceira via - que guarda aspectos das antíteses - mas que as antíteses têm muita dificuldade em visar.

Em resumo: é premente percebermos que o Neoliberalismo já foi ultrapassado. Se não continuamos a dar tiros nos próprios pés. E, insisto, são os históricos da direita que estão mais próximos de reconhecerem esta terceira via. A esquerda moderada continua a visar a um Neoliberalismo que já não existe na prática e que é ideologicamente igual a ela.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Ética e direitos

A propósito de Peter Singer

Quanto a Singer, a sua argumentação está sempre dependente de um conjunto básico de premissas. A sua resposta está determinada pela premissa que toma a senciência como critério para a identificação do sujeito de direitos. Portanto, com certeza que ele admite a legitimidade de se matarem crianças que não possuam tal critério - assim como não a admite em animais que possuam esse critério. 

O que me parece errado é considerar que a noção de certo ou errado, de bem ou mal, de moralmente aceitável ou não, esteja dependente do critério da senciência. Da mesma maneira - tenho muita pena, mas - considero que o seu conceito de interesse tem muito pouco de filosófico. Ou melhor: dizer que um porco tem interesses parece-me ser uma antropomorfização do porco - e não que é a consideração de que só o humano tem interesses que é um "especismo" indevido

Finalmente: do ponto de vista ético parece-me que só há deveres, isto é, o ético tem sempre a forma de uma injunção: quando vejo uma criança com fome sinto uma compulsão ética no sentido de a alimentar (ou não, no caso dos psicopatas, mas então também não adianta fazer-lhes um discurso racional porque o psicopata não se converterá à ideia de que os interesses dos outros valem tanto como o dele). 
A noção de direito tem que ver com um estabelecimento de um poder que garanta a sua protecção. Qualquer ideia de que há "direitos naturais", ou direitos previamente existentes em si mesmos, etc., é uma espécie de misticismo. Quando vejo um cão a ser agredido por miúdos com paus sou compelido (dever) a intervir e a evitar tal sofrimento. Quando vejo um touro a ser lidado na arena sou compelido a manifestar-me contra tal. Nada disso significa que o cão ou o touro tem direitos. Mas uma comunidade que converge relativamente a certos sentimentos morais, em que os indivíduos se sentem tomados por certos compromissos éticos, e que está organizada politicamente, pode então produzir normas legais que criem, definam e protejam certos direitos aos homens e aos animais não-humanos.

É aceitável mentir às crianças acerca do mal no mundo?

A propósito de um vídeo...







Flores protegem contra armas de fogo e bombas?

Bem, antes de ambandeirar em arco com qualquer lamechiche convém pensar um pouco.

Primeiro: penso que este pai não teria dito que sim, que as flores são para proteger contra os terroristas, se não estivesse naquela situação. Ele parece ser muito mais inteligente do que isso. Vê-se que o é ao dizer claramente ao filho que homens maus há-os em todo o lado! Teria sido tentador dizer à criança que "já passou", que "os maus serão vencidos", que "ficaremos em segurança", que "eu protejo-te"... Mas não: foi honesto e disse ao miúdo, e bem: há homens maus em todo o lado, por isso não vale a pena fugir!


Contudo, apanhado naquela situação, com a câmara mesmo ali, uma pessoa vacila e lá deixou ficar a ideia de que "as flores são para nos proteger". O que, como se sabe, é mentira: é mentira que as flores protejam contra bombas e é mentira que quem põe ali as flores seja para se proteger contra as bombas...

Quanto à primeira mentira: quem acha, com seriedade, que as flores protegem contra as armas e as bombas sugiro que faça o teste. A próxima vez que haja alguém a fazer reféns tente usar as flores como protecção para chegar perto dos maus e libertar os ditos reféns... Verá, para sua surpresa, que as flores não metem medo nenhum ao assaltante, ao raptor, ao terrorista que empunha uma metralhadora! Nem sequer as armas protegem contra as armas, quanto mais as flores!

Quanto à segunda mentira: se perguntarmos às pessoas que põem ali as flores poderemos ver que ninguém as ali está a pôr para se proteger das balas ou das bombas. Assim como também não pomos flores nos cemitérios para nos protegermos da morte. As flores não só não nos protegem dos terroristas como também não é para nos protegermos que usamos as flores! E o miúdo já sabia isso! Ora, enganar o miúdo - que já sabia que as flores não protegem ninguém - não ajuda ninguém, sobretudo, não ajudará o miúdo!

Naquela idade, as crianças tomam tudo literalmente. Não me parece ser a melhor estratégia lavá-las a acreditar que as flores protegem dos terroristas, das bombas, das balas.

Ora, nós não pomos flores para nos protegermos, mas sim para honrar os que morreram, para prestar homenagem e para mostrar respeito, bem como para assinalar o luto, o pesar que nos vai na alma. E, em segundo lugar, para com esse movimento sentirmos a pertença a uma comunidade e mostrarmos a nossa vontade de fazer parte dessa comunidade: a comunidade daqueles que estão unidos por certos sentimentos e certas crenças ou valores.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Em defesa da Fraternidade

A propósito da ideia de que há ideias intrinsecamente mais capazes de provocar a adesão dos sujeitos...


Quem acredita que a humanidade está irreversivelmente num processo de melhoramento moral - ou que, apesar de retrocessos pontuais, há um processo contínuo de paulatino aprimoramento moral da humanidade - está iludido...




Esta é uma das últimas crenças do ocidente e demorará, provavelmente, muito tempo até percebermos que, na realidade, não há nada intrínseco aos conteúdos que os tornem preferíveis a outros, como também não há nada intrínseco aos humanos que os tornem naturalmente mais propensos a aderirem a certos conteúdos em vez de outros...


Ao contrário do que possa parecer a quem ainda tem este tipo de ilusões, não se trata aqui de relativismo - muito menos de defender qualquer relativismo! Pelo contrário. O que está em causa é, justamente, que os humanos são capazes de aderir a qualquer coisa, de modo que qualquer coisa se pode tornar uma religião de massas: seja o capitalismo, seja o marxismo; seja o sacrifício infantil, seja a defesa da infância...

E a incapacidade para perceber isto - tal como a incapacidade para perceber que perceber isto não corresponde a nenhuma defesa do relativismo - significa a incapacidade para perceber que o processo de adesão se assemelha a uma manipulação. Ideias como a de que "há crenças racionais" e crenças "irracionais", que é possível estabelecer um processo de "iluminismo", "aclaramento" ou "esclarecimento" com base em "pressupostos imparciais, universais e impessoais" - são ideias que continuam a impedir-nos de ver que o nosso ponto de vista está sempre dependente de conteúdos linguísticos e conceptuais que são - e não podem deixar de ser - regionais, datados e localizados, fruto de um processo histórico e cultural... Nem há um ponto de vista puro, livre de conteúdos pressupostos, nem há conteúdos cuja estrutura intrínseca os tornem mais ou menos capazes de provocar a adesão... não há nada na noção de "igualdade", nem na de "fraternidade", por exemplo, que as tornem mais resistentes ao processo histórico, que as tornem intrinsecamente mais capazes de provocar a adesão... Isto não significa que a noção de "fraternidade" seja equivalente, do ponto de vista moral, à noção de "vingança" - pelo contrário: significa que aqueles que efectivamente se vêem a si mesmos por esta ideia e unidos por esta ideia têm de pôr as mãos à obra, praticar a "fraternidade" e procurar difundi-la por todos os meios próprios à própria ideia de fraternidade em vez de acreditar num milagroso deus ex machina que fará com que a fraternidade acabe por ganhar à vingança!



Mas isto deve, também, lembrar-nos que a Fraternidade não ganhará se andarmos a gritar a palavra aos oito ventos, a cunharmos nas moedas, a projectarmos nos monumentos mas praticarmos activamente a Vingança.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Contingência

A propósito de ironia...

"o tipo de pessoa que encara frontalmente a contingência das suas próprias crenças e dos seus próprios desejos mais centrais" ...


"pessoas capazes de reconhecer a contingência do vocabulário no qual formulam as suas mais elevadas esperanças – a contingência de suas próprias consciências – e que ainda assim permanecem fiéis a essa consciência”


Rorty, Contingency, Irony and Solidarity.


Lipovetsky: indiferença e motivação

A propósito de indiferença...

"A indiferença não se identifica com a ausência de motivação". Lipovetsky, A Era do Vazio


Uma confusão comum é trocar "indiferença" com "motivação", mas correspondem a categorias diferentes. Lipovetsky viu isto muito bem: a indiferença pode andar associada até mesmo a um "sobre-investimento" do indivíduo. Ora: é justamente este o nosso caso, na nossa sociedade, nesta era do vazio.


Por isso, pode ser difícil reconhecer a indiferença contemporânea - e é muito fácil confundir fenómenos semelhantes. A indiferença actual é um fenómeno transversal e banal. Não é uma indiferença regional.


De facto, por vezes tem-se a tentação de justificar o nosso tempo dizendo que não é verdadeiramente indiferente na medida em que se tornou indiferente, sim, em relação a valores do passado, ao mesmo tempo que inventou e se fixou noutros.


Mas tudo isso é ilusão de óptica. Como Kierkegaard viu muito bem - e Lipovetsky parece que também - não se trata apenas de a maioria das pessoas não se fixar já a categorias éticas e religiosas, as quais, noutros tempos, parecem ter sido as que orientavam e julgavam a vida. Não se trata só disso. Pois poderia suceder que os sujeitos se desligassem das categorias éticas e religiosas e se fixassem em categorias estéticas. Na verdade, é disso que o homem contemporâneo gosta de se elogiar a si mesmo: da sua seriedade relativamente a categorias estéticas. O próprio Kierkegaard dá, por vezes, a ideia de estar a dizer que o homem natural se fixa em categorias estéticas - por oposição ao homem ético e ao religioso que se fixam em categorias ético-religiosas... Mas o ponto é que o homem natural - portanto, no estado propriamente estético - vive na indiferença, e esta indiferença é, afinal, a forma mais marcante da sua existência, independentemente das categorias pelas quais julga estar a viver.


A seriedade do homem contemporâneo - de nós, de nós na sociedade de massas - e, segundo Kierkegaard, do homem de todos os paganismos, do homem tal como ele sempre foi de início e na maioria das vezes - a seriedade do homem tal como ele é naturalmente é flirt, puro flirt com categorias... e o que é próprio da nossa era, do nosso tempo é que o flirt se tornou objecto de seriedade... Não há apenas um flirt que tem aparência de seriedade, o que ainda não seria tão mau porque bastaria, então, mostrar ao sujeito que a seriedade é outra coisa... A nossa situação é mais grave: o flirt é aquilo a que nós nos apegámos. Nós fixámo-nos no flirt. Hoje em dia um sujeito que não tenha visto os cinco continentes e mais a Lua, não tenha experimentado uma infinidade de aventuras, não tenha assumido um sem-numero de identidades e que, no intervalo de 15 minutos de uma das mil telenovelas não tenha feito zapping por entre 500 canais diferentes - esse sujeito é considerado desinteressante, quase ameaçador, um perfeito violador da ética da diversão e da fun morality!


A indiferença não se opõe à motivação. Não se opõe ao empenhamento. Nós, hoje, somos a prova de que uma motivação pulverizada e um empenhamento vazio podem exacerbar-se ao cúmulo do exagero enquanto se afundam na indiferença mais abjecta.


A nossa indiferença é tão grave que nem sequer se pode falar de "excesso" de indiferença... Também isto Lipovetsky viu muito bem: o deserto contemporâneo não padece de excesso de indiferença, mas sim de um "defeito de indiferença". Uma indiferença standard que constitui o estado em que estamos por defeito - mas nem sequer em excesso. Olhamos à nossa volta e não vemos casos extremos de indiferença: as pessoas continuam a movimentar-se, a correr pelos seus desejos, a buscar satisfação como um corpo morto que, já sem alma, continuasse a executar os seus movimentos.

Lipovetsky

A propósito de indiferença...





"A indiferença não se identifica com a ausência de motivação"


"O homem indiferente não se apega a nada, não tem uma certeza absoluta, está preparado para tudo e as suas opiniões são susceptíveis de modificações rápidas"


Lipovetsky, A Era do Vazio

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Imperativo Categórico e suas aporias

A propósito de Imperativo Categórico e suas aporias...



Portanto, quando normalmente se acusa Kant de ter transformado o Dever numa coisa fria e sem sentimento não se percebeu nada do que ele diz. Pelo contrário: o Dever é uma paixão, um interesse, um amor incondicional.

O problema é que Kant não conseguiu demonstrar que a razão possa produzir qualquer coisa como um Dever, um constrangimento a agir. Ou seja, mesmo que seja verdade que a razão produz regras objectivas (e isto também não é imediatamente claro, nem parece que Kant o tenha demonstrado) - mas, mesmo que a razão produza regras objectivas, Kant não conseguiu de modo nenhum mostrar que a razão possa, por si mesma, dar-lhes a forma de constrangimento...


Como ele próprio admite, aquilo que não se consegue explicar é como pode uma regra racional tornar-se prática, como pode algo objectivo tornar-se subjectivo, como pode a razão compelir a agir, como pode a actividade racional produzir interesse por si mesma... tal como também não se consegue perceber como é que um sujeito pode - porque a experiência mostra que ele o pode - preterir um imperativo categórico e preferir um imperativo apenas condicional, quando o imperativo categórico é aquilo que é representado como objectivamente válido. Em resumo: não se consegue perceber como é que pode surgir tal coisa como o Dever - e depois também não se percebe de modo nenhum como é possível ao sujeito não cumprir o seu próprio Dever sem se suicidar a seguir...

Dever e Amor, em Kant

A propósito de amor e dever...


Outra ideia absurda é a de que, para Kant, a ética é destituída de amor... Esta ideia só pode existir na cabeça de quem não perceba que há formas de amor para além do "amor patológico" e do "amor prático" - que são formas de amor que Kant exclui por não poderem constituir, devido à sua própria forma (condicional), um dever. Ou seja: também no Dever há amor - mas tem de ser incondicional. "Incondicional" no sentido de Kant - e não no sentido em que qualquer sujeito pode gabar-se de supostamente amar incondicionalmente o seu filho.


Ou seja, o facto de alguém dizer que ama incondicionalmente o seu filho não prova nada. Ver-se-ia até que ponto ele o ama incondicionalmente se, de repente, tudo aquilo que imediatamente o liga ao seu filho - na forma de "amor patológico" (inclinação imediata) - desaparecesse... Ou seja, o amor é incondicional quando, evidentemente, se dirige até mesmo ao sujeito desconhecido, até mesmo ao inimigo - e não apenas sob a condição de ser o "meu filho" que eu amo na condição de ter um "sentimento imediato" por ele...

Kant e o desejo

A propósito do interesse ético...



Segundo Kant - e contra todas as wikipédias e manuais que, com certeza, não o leram - a acção envolve sempre um "fim" e um "desejo" por esse fim, e envolve ainda uma representação do "fim" acompanhada do "sentimento de prazer", sendo que se há "desprazer", então não há desejo, mas sim aversão.
O ponto de Kant é que esta apresentação formal da acção pode desformalizar-se de muitas maneiras. Assim, não há apenas desejos "empíricos" ou "inclinações", ou seja, segundo Kant, não há apenas uma origem para os nossos desejos e não compreender isto é não perceber o que ele está a dizer, de modo que tudo o que ele diz passa a parecer abstracto. 
Assumir que todos os desejos são inclinações é negar desde início todo o esforço de Kant para sustentar a ética na razão.


O decisivo é compreender que, segundo Kant, há um interesse meramente racional: os desejos podem resultar exclusivamente da actividade da razão pura, de modo que esta constrange por si mesma o indivíduo, produzindo formas imperativas. Assim, a razão pura torna-se prática.




Distintas confusões daquilo que Kant diz acerca do dever prejudicam a compreensão vulgar da sua teoria ética. Uma das mais divulgadas - apesar de Kant se lhe opor explicitamente por diversas ocasiões - é a ideia ridícula de que, para Kant, uma acção autenticamente ética não pode ser acompanhada nem de sentimento, nem de desejo... Pelo contrário, Kant desunha-se para mostrar que toda a acção envolve a representação de um "fim" e de um "interesse" por esse fim, de modo que aquilo que é característico da acção ética é que há um interesse por um fim específico, que é o próprio Dever. Ou seja, Kant esforça-se ao máximo por mostrar que, em termos éticos, a categoria "Dever" é tudo quanto deve ser desejado.


"Um imperativo é uma regra prática pela qual uma acção em si mesma contingente é tornada necessária. Um imperativo difere de uma lei prática em que uma lei efectivamente representa uma acção como necessária, mas não considera se essa acção já é inerente por força de uma necessidade interna ao sujeito agente (como num ser santo) ou se é contingente (como no ser humano), pois quando ocorre o primeiro desses casos não há imperativo. Por conseguinte, um imperativo é uma regra cuja representação torna necessária uma acção que é subjectivamente contingente e assim representa o sujeito como aquele que tem de ser constrangido (compelido) a conformar-se à regra. Um imperativo é categórico quando representa uma acção como objectivamente necessária [...] através da mera representação dessa própria acção (sua forma)".

Kant, Metafísica dos Costumes

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Cristãos honestos



A propósito de cristãos honestos...




"Os ateus insultarem um deus no qual não acreditam é amadorismo; é preciso um crente religioso para fazer o trabalho bem feito e insultar um deus que ele pensa ser real."
"a única coisa que garantidamente é comum a todas as religiões é a inevitabilidade de desfigurarem a imagem de Deus em palavras e acções"

Malcolm Heath, Eccumenical Paradoxes







"a piedade do homem é pura blasfémia contra Deus e o maior pecado que o homem comete. Assim, as maneiras agora em voga no mundo - as formas que o mundo considera como adoração a Deus e como piedade - são piores aos olhos de Deus do que qualquer outro pecado"

Lutero, The Catholic Epistles




A religião "é a necessidade humana na qual o poder do pecado exercido sobre o homem está claramente demonstrado"

Karl Barth, [commentary on] The Epistle to the Romans




"a religião é falta de fé; a religião é uma preocupação - de facto, temos mesmo de dizer que é a preocupação - dos homens sem fé" ... "[digo isto] não apenas para os membros das outras religiões, mas sim, antes de mais, para nós mesmos enquanto membros da religião cristã"

Karl Barth, On Religion: The Revelation of God as the Sublimation [Aufhebung] of Religion

Ética e Sittlichkeit

A propósito de ética e superação...

Segundo Kierkegaard há duas imposturas - entre outras - que devem ser ultrapassadas quando se trata de ética.

1) A ideia de que o ético corresponde aos costumes, aos hábitos e às leis de uma certa comunidade ou de um determinado povo (a Sittlichkeit de Hegel). 

2) A ideia mais geral de que a ética consiste num conjunto de regras (Kant)

terça-feira, 21 de julho de 2015

Actualizar a religião aos tempos...

A propósito da diferença infinita entre temporal e eterno...


Quando se diz que o catolicismo tem de se adaptar ao mundo de hoje o crucial é colocar os pontos nos is: ou bem que se acredita que o catolicismo é uma Religião e está de acordo com o dever para com Deus; ou bem que não. Eu não acredito: mas que um católico peça que a sua religião se actualize é uma profunda contradição! Agora, se um católico faz notar que neste e naquele ponto a "instituição católica" não está a reflectir aquilo que está nos evangelhos - então tem todo o direito de o dizer. Pelo contrário, aquele que quer que o catolicismo se actualize tem uma impressão tão fraca da sua próprio religião que a confunde com um jornal!

O critério de decisão é o Bem

A propósito de critério...




Normalmente, é assim que um sujeito se relaciona com as categorias ético-religiosas:

"eu quero o Bem, ou quero Deus, mas também quero ser eu a decidir o que é o Bem e o que é o Deus!"

E, contudo, das duas uma: ou não se quer saber de ética nem de Deus para nada, e então não há qualquer questão de prioridade; ou se quer o Bem e se acredita em Deus, e então a prioridade é a preocupação com o Bem e na relação a Deus.

Se há uma preocupação sincera com uma determinação (seja a do Bem, seja a de Deus, seja a de outra qualquer), então o decisivo é que essa determinação é o critério, a medida, a fonte de validação e eu não tenho poder para decidir sobre o que a medida é... Isto é tão evidente que até o mais iletrado dos homens o sabe, pois jamais lhe passará pela cabeça pesar a sua vaca senão por uma medida fixa.

Ser católico ou ser papagaio!

A propósito de prioridades...




Das duas uma: ou não se acredita em Deus, e então não há qualquer questão de prioridade; ou se acredita em Deus, e então a prioridade é a relação a Deus.

Pensar-se-ia que isto é evidente... Mas não é: pelo contrário, é absolutamente comum ouvir alguém que se diz católico dizer que "não tem tempo para ser praticante", que "não tem tempo para ir à missa", que volta e meia "cumpre quando arranja um tempinho entre tantas tarefas"...

E, contudo, das duas uma: ou se é efectivamente crente, e então é a relação com o divino que configura a sua existência; ou então dizer-se católico tem o mesmo significado para si que têm as palavras ditas por um papagaio para o próprio papagaio.


Ou se serve um senhor, ou se serve o outro. Os dois é que não dá.

Se há um Deus, então há um Deus

A propósito da prioridade da relação a Deus...



Eu entendo que alguém me diga que não acredita em Deus, ou que alguém me diga que acredita em Deus.

Mas que alguém me diga que Deus existe e, de seguida, negue a prioridade da relação a Deus - isso é uma contradição.

Das duas uma: ou não se acredita em Deus, e então não há qualquer questão de prioridade; ou se acredita em Deus, e então a prioridade é a relação a Deus.

Abraão (e Isaac)

A propósito da Akedah...


Os cananeus sacrificavam crianças.
Os judeus sacrificavam cordeiros.

Se o deus de Abraão tivesse ordenado a um cananeu que sacrificasse o seu filho, que sacrifício seria esse?

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Nietzsche e Kierkegaard - e a morte dos valores

A propósito de cadáveres.

Um dos erros espantosamente comuns nas análises e comentários a Nietzsche é supor que ele nega a existência de valores. 


A atitude que nega a existência de valores é aquilo a que ele chama Niilismo, mas esta negação é aquilo que teme acima de tudo. Nietzsche nega, sim, o valor daqueles ideais que não estão em condições de preservar um sujeito do Niilismo.


Portanto, Nietzsche também não é niilista. O que ele diz é que há ideais a que damos valor que, na verdade, não têm valor. Ou seja, nós tendemos a usar como valor algo que apenas aparentemente é valor. Por isso, é preciso mostrar que aquilo a que normalmente chamamos valor não passa de uma construção aparente de valor. É isso que Nietzsche faz. Ora, como normalmente nós pensamos que essas coisas são valores, e Nietzsche nos mostra que não são, tendemos a pensar que Nietzsche está a dizer que não há valores - mas, na verdade, ele está apenas a dizer que aquilo que nós julgamos serem valores não são.




Assim, Nietzsche é, de facto, um destruidor de valores - no sentido em que Jeremias era o profeta da destruição de Jerusalém: o que Nietzsche pretende é salvar a capacidade do humano para avaliar, julgar e valorizar. Para isso é necessário destruir os falsos valores.


Nietzsche mostra, livro atrás de livro, que nós estamos num estado de indiferença tal que já nenhum valor nos causa impressão, nenhum valor nos diz nada. Ainda falamos desses valores que outrora foram importantes, mas falamos deles da mesma forma que os papagaios: já nada significam para nós. Não há ligação íntima entre aquilo de que falamos e o modo como nos sentimos - e há ainda menos ligação entre aquilo que pensamos e aquilo que somos.


Esta crítica foi também feita por Kierkegaard. Segundo Kierkegaard, continuamos a falar de valores que surgiram em determinadas épocas e em certas sociedades, mas já não há qualquer nexo espiritual que lhe doe validade. Nas suas palavras, é como se tivéssemos à nossa frente um cadáver, um corpo sem alma, mas esperássemos dele que ainda se movimentasse e cumprisse as funções de um vivente.


Há um conjunto de determinações éticas que foram evidentes durante séculos, que estruturaram e deram forma ao mundo ao longo de centenas de anos - mas das quais só retemos os nomes, as palavras, de modo que já não fazem parte da evidência vital que temos hoje... Embora nós continuemos a usar os termos antigos, a evidência vital de outros tempos é apenas simbólica, oca, vazia, morta - de modo que já só se move por inércia.


As semelhanças na expressão de Nietzsche e Kierkegaard são imensas. 


Ambos teimam em que mantemos casmurramente uma linguagem supostamente ética, supostamente valorativa, mas de tal modo que já nenhuma categoria ética lhe corresponde: mantemos uma tradição morta: já não temos a visão-de-vida, as preocupações, os interesses ou as paixões que deram vida à terminologia ética que ainda usamos.


Os dois anteciparam aquilo que Anscombe e MacIntyre também vieram a dizer... 


Mas Anscombe e MacIntyre parecem ter chegado atrasados, não porque pretendem ter descoberto algo que já foi dito, de forma mais clara e veemente, um século antes, mas sim porque a situação já é diferente... Nietzsche e Kierkegaard tinham razão ao descreverem uma situação que existia no seu tempo, e talvez há séculos, mas entretanto foi ultrapassada (e já parecia ultrapassada em 1968 - vide Modern Moral Philosophy)...


O que se passa hoje já não é apenas a vigência de determinações como sendo doadoras de sentido mas que já não doam efectivamente sentido - o que se passa hoje é que essas determinações foram absolutamente abandonadas e se aderiu ao seu contrário

A nossa situação de hoje já não é aquela a que Kierkegaard e Nietzsche faziam referência, mas sim uma intensificação dela: a evidência vital que durante séculos configurou o mundo e que, durante outros tantos séculos, se manteve simbolicamente como um cadáver, já está definitivamente enterrada, foi abandonada definitivamente e adoptou-se a evidência contrária.

Nietzsche e "O Cristão"

A propósito da categoria nietzscheana de o cristão...

Como se sabe, Nietzsche passou o tempo a escrever contra uma criatura a que chamava o cristão. Acontece, porém, que é preciso atentar a que categoria Nietzsche se está a referir. O que pretende ele dizer quando fala de o cristão?

Quando Nietzsche se refere ao cristão, normalmente, refere-se a um determinado tipo de humano que não põe em acto aquilo que diz ser.

Ou seja, para Nietzsche, o oposto de ser cristão significa exercer uma prática continuada de um determinado juízo de valor.


Assim, o que Nietzsche está a dizer é que aqueles sujeitos que normalmente se dizem cristãos não são autenticamente cristãos. Não são autenticamente coisa nenhuma: são uma ilusão para si mesmos pois, na medida em que se julgam já cristãos, não só não fazem por vir a ser cristãos, como não fazem por vir a ser autenticamente o que quer que seja. Só é autêntico aquele em que o juízo de valor se torne acto. E o cristão é aquele que fala, discursa, dá sermões ou reza missas, mas não é cristão.

O cristão de Nietzsche é aquele que não é quem pensa ser; pensa ser algo que não é; julga-se a si mesmo em conformidade a um ideal do qual não tem nada.


Neste sentido, Nietzsche não difere de Kierkegaard: assim como Kierkegaard distingue entre a Cristandade e o Cristianismo, Nietzsche distingue entre o cristão e o cristão autêntico.


a palavra «cristianismo» já é um equívoco: no fundo, houve apenas um cristão, e esse morreu na cruz. [...] É falso até ao absurdo ver numa dada «crença», porventura a crença na redenção por Cristo, o distintivo do cristão: somente a prática cristã, uma vida tal como a viveu aquele que morreu na cruz, é que é cristianismo... Ainda hoje, uma vida semelhante é possível, para certas pessoas até é necessária: o cristianismo autêntico, originário, será possível em todas as épocas. Não um crer, mas um fazer, ...

Nietzsche, O Anticristo, §39

terça-feira, 14 de julho de 2015

A Democracia Totalitarista

A propósito de,

Zippelius, no Teoria Geral do Estado, refere que o estilo burocrático pode muito bem transformar uma democracia (formal) num Estado totalitário, semelhante a um aparelho que dirige e controla tudo e todos os sectores. Nós estamos a ver a emergência de uma confederação formal que se torna numa federação de facto, semelhante a um aparelho técnico que, a coberto de supostos ditames técnicos e legais, impõe uma determinada ideologia, uma determinada visão de como deve ser o mundo, e a impõe a Estados eles mesmos já transformados em aparelhos burocráticos e técnicos, nos quais o regime pluralista está cativo dos aparelhos dos partidos... Quem já teve oportunidade de estudar o funcionamento do Estado Nazi não pode deixar de reconhecer nisto uma nazificação da União Europeia. Uma nazificação que parte de um "hardcore" tipo directório soviético... Se qualquer dia começarem a exterminar os inválidos e deficientes, ou a criar regimes de escravatura para os "inúteis", desempregados e associais, eu não me admiraria nada.

Sobre o suposto "acordo" da Grécia e da UE, a 13-07-2015

A propósito de "acordo"

Acordo? Qual acordo? Os gregos - os antigos - tinham um vocabulário expressivo, e na sua vastidão encontra-se este verbo: συμφράζομαι (synfrázomai). Um verbo interessantíssimo porque vem do termo φρήν (frén), ainda hoje compondo vários termos em várias línguas, como é o caso de "FREnético". A palavra φρήν designava o órgão da respiração, mas num sentido originário, como quando ainda hoje dizemos que "faltou-me o ar quando ele disse aquilo", ou que a "atmosfera ficou irrespirável quando ele entrou na sala". Normalmente, traduz-se por "coração", porque nós hoje associamos ao coração esta função disposicional... O prefixo "συμ-", ainda hoje usado em palavras como "SINergia" ou "SINtonia", significa "em conjunto", "com". Ora, συμφράζομαι significa "tomar conselho com", "tomar parte em conjunto com", "considerar em conjunto"; "conjugar esforços"; mas também "dizer em conjunto", "condizer". Quer dizer, para os gregos - antigos - chegar a acordo, concordar, envolve o coração, uma relação de sinergia em que os sujeitos se envolvem de coração, respirando em conjunto, em sintonia. Da mesma forma, o termo "a-cordo" vem do latim, da palavra "cor", que significa "coração".

Não. Não houve qualquer acordo. Os líderes europeus já não sabem o que significa ter coração. Por isso, não podem saber o que significa "acordo", não podem compreender qual era o "projecto europeu".

segunda-feira, 13 de julho de 2015

despojar-se da maneira habitual de pensar



"suplico ao leitor para se exercitar, primeiramente, em despojar-se de uma parte da sua maneira habitual de pensar. De outro modo, o problema [...], será, para ele, nulo e não resolvido - e, coisa curiosa, justamente porque já o resolveu há muito"

Kierkegaard, Dois Pequenos Tratados Ético-Religiosos

domingo, 12 de julho de 2015

aquilo que é necessário para alguém ser cristão...

A propósito de ser-se cristão...

Há uma pergunta que nos podemos fazer: será que ser-se cristão pode levar um sujeito a tornar-se fundamentalista? Será que queimar humanos é cristão?

Ora, vamos por partes.


Mas parece ser esta, justamente, a questão. O que é ser cristão? É ter fé? E o que significa ter fé? Será que ter fé é aderir a um conjunto de teses? Ou é uma determinada prática? Não me parece que a fé consista na mera adopção de um determinado ideal enquanto adesão a determinados conteúdos teóricos, como se ter fé correspondesse à defesa de uma tese de doutoramento. A fé - se é fé - há-de verificar-se na expressão existencial dela, se há fé tem de haver prática do ideal, tem de haver reduplicação na existência da categoria a que o sujeito se fixa. Então, ser-se cristão há-de ser qualquer coisa como a expressão existencial de um ideal concreto, o viver de acordo com um determinado modelo que, para o cristão, parece que só pode ser o de Jesus. Não se trata, portanto, de aderir à tese de que Jesus é encarnação de um ente omnipotente que criou o universo e tal. Estas coisas talvez sejam relevantes numa tese de teologia, mas não me parecem ser aquilo que é necessário para se ser cristão.

Uma pessoa que escreve uma tese de doutoramento a defender que o mais provável é que Deus exista e tenha encarnado num sujeito que viveu há 2000 anos, mas cuja vida reflecte uma perfeita indiferença perante o modelo que Jesus é e, simultaneamente, a sua fixação aos valores do mundo, talvez não devesse ser considerada cristã.

O critério para que alguém seja cristão não pode ser o de ele se julgar cristão - a não ser se não estiver em causa, justamente, cumprir com requisitos definidos por Deus... Quer dizer, se o sujeito é cristão com certeza que não dirá que é ele próprio que define o que é ser cristão - a não ser que se esteja a pôr no lugar de Deus. Se um sujeito é cristão, então parece-me que deve ter começado por reconhecer um ideal - que não foi definido por si - e depois por ter-se fixado a tarefa de reduplicar na existência esse ideal.

Portanto, o problema principal parece-me ser, justamente, o de saber "aquilo que é necessário para alguém ser cristão" - e se reconhecemos isto então também reconhecemos que é possível que alguém julgue ser cristão sem o ser. Eu sou ateu, mas compreendo isto muito bem: se se trata de ser religioso, então é natural que o sujeito que quer ser religioso compreenda que não é ele que define aquilo em que ele se deve tornar. E então é natural que a cristandade possa andar arredada do seu próprio ideal... Não se trata aqui de um sujeito pensar que ser cristão é isto, e outro aquilo... Trata-se do facto de um sujeito ser capaz de se esquecer do seu ideal no quotidiano da existência, por muito que bata no peito ao Domingo.


Então, se se trata de cumprir com os requisitos dos quais o sujeito reconhece depender o sentido da sua vida e que reconhece não terem sido definidos por si - se se trata de reduplicar na sua existência a sua fidelidade ao exemplo de Jesus, então com certeza que aquele que mata por Jesus, e até mesmo aquele que mata César por Jesus não é cristão, visto que nada no exemplo de Jesus pode fazer pensar que alguém que mata, queima ou tortura está a reduplicar na sua existência a sua fidelidade ao exemplo de Jesus.




Parece-me, pois, evidente que não é verdade que o Cristianismo trouxe mal ao mundo, ou que levou os homens a praticar o mal.

O que me parece evidente é que os homens praticam o mal.

O facto de um sujeito dizer que mata por ser cristão não prova mais que assim o é do que alguém dizer que mata por eu lho ordenar quando é verdade que nunca lho ordenei.

O facto de ter havido pessoas que se diziam cristãs e que queimaram outras com a justificação do Cristianismo não prova que o fizeram por serem cristãs, ou que o fizeram devido ao Cristianismo, a não ser que se encontre no exemplo de Jesus um dever de matar em seu nome e em tais circunstâncias... Os homens matam, violam, etc. Esta é uma evidência. E fazem-no dizendo que o fazem em nome de muitas coisas, mas no caso do Cristianismo nós temos um exemplo, e se o sujeito acredita que a sua existência deve ser qualificada pela medida da sua fidelidade ao exemplo estabelecido por Deus, então - digamos assim - se ele é honesto, não dirá que é cristão quando está nos antípodas do modelo que Jesus deveria ser para si.

Assim, um terrorista cristão não é mais cristão do que um cristão não praticante, e este não é mais cristão do que um advogado que não cumpriu os requisitos da Ordem é advogado.

Ser-se cristão é, com certeza, ser fiel ao exemplo de Jesus - e não escrever uma tese a defender que Jesus é a encarnação do criador do mundo e vizinhanças, nem matar para defender Jesus e a sua verdade (pois o exemplo de Jesus foi que se deixou ele próprio matar pela verdade).

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Kierkegaard e Nietzsche

A propósito de multidão e indivíduo...

Segundo Nietzsche, as massas devem conformar-se à moralidade enquanto conjunto de normas instituídas - apenas alguns indivíduos conseguem guiar-se pelas leis da própria subjectividade. Kierkegaard concorda. Mas o ponto de Kierkegaard é que todos os indivíduos são capazes de se tornar indivíduos - enquanto Nietzsche parece convencido que só alguns são realmente capazes de não ser multidão. 


Ou seja, quer Kierkegaard quer Nietzsche concordam que a maioria da gente é multidão e que só raramente surgem indivíduos realmente singulares. Mas Nietzsche pensa que isto é assim porque tem e deve ser assim. Já Kierkegaard esforça-se por mostrar que qualquer um pode vir a ser um indivíduo. 

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Referendo e Impressão de Si

A propósito de impressão de si... no referendo de 05-07-2015, na Grécia

Tudo depende da impressão que um indivíduo, ou um povo, tem de si. O Grego mostrou que tem uma impressão forte de si, uma impressão "nós valemos mais do que os cifrões". Ora, a maior parte dos povos da Europa parece ter uma impressão bem mais pequena de si, pois acha-se bem menos importante que os bancos, os cifrões, etc. Na Europa tem-se uma grande impressão das férias, das praias, do sol, do futebol, dos bancos e até mesmo do gado - mas tem-se uma impressão tão insignificante de si...

O Flirt na Política contemporânea

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A propósito de flirt


Claro que ficamos surpreendidos com o auto-despedimento de Varoufakis. Para nós isto é coisa de outro mundo. Nós estamos habituados aos senhores que não se demitem nunca, que assumem as suas responsabilidades dizendo em horário nobre "Assumo a responsabilidade". 

Ora, quando assumir as responsabilidades significa fazer uma declaração ao telejornal das 20h, torna-se completamente incompreensível que Varoufakis se demita mesmo tendo ganho o NÃO. É que a postura de Varoufakis parece querer dizer que ele está mais interessado em servir o ideal que é o seu, do que em servir-se de um qualquer ideal. E isto é coisa que já ninguém, em boa verdade, entende na Europa.


Houve um tempo em que homens como Sócrates ou Jesus acabavam invariavelmente condenados à morte ou simplesmente assassinados. Porque nesses tempos as pessoas não se permitiam ficar indecididamente perante certos ideais que lhes batiam fundo na alma. 

Hoje vivemos num tempo completamente diferente: as pessoas estão tão distantes do ideal que Sócrates e Jesus poderiam muito bem vir à terra que ninguém despenderia um dia de praia, ou um minuto de um jogo de futebol por eles - nem por eles, nem contra eles.

Note-se: nós temos ideais - veja-se que o panteão continua a encher-se. Nós temos ideais, mas temos ideais rastejantes e, consequentemente, temos uma consciência rastejante deles. Ou seja: somos colectivamente na existência um mercado de valores - ou, como dizia Kierkegaard - um entreposto comercial, um pau-andante.



Quanto nos choca uma Grécia - um povo de gregos que, apesar dos bancos fechados, apesar do terror da falta, vai votar NÃO? Quanto nos indigna que eles tenham coragem?


Na verdade - e é aqui que reside toda a absurda hipocrisia, toda a imundície da pseudo-política de hoje, toda a inexistência de uma consciência política - CHOCA-NOS apenas imaginariamente. O horror, o choque que os jornalistas, os comentadores, os cidadãos pretendem sentir é orvalho num verão de praia antes do começo do campeonato de futebol; toda a raiva dos pseudo-políticos é flirt; toda a indignação dos economistas é ausência de consciência.

Sou plenamente a favor de que se acabe de vez com esta parvoíce das eleições e dos referendos. Crie-se um directório de tecnocratas que decida quem deve e quando deve integrar os governos nacionais. Crie-se um directório de tecnocratas que decida os programas a levar a cabo onde, quando e porquê.
Mas acabe-se de vez com este flirt com a democracia e com os mercados. Ou bem que temos uma tecnocracia, ou bem que temos uma democracia. O flirt com as duas é que não.


Perguntemo-nos o que queremos - e que esse seja o nosso ideal - e depois assumamo-lo sem hipocrisias.

Ou bem que se quer uma mulher, ou bem que se quer a outra. Andar no flirt com as duas é que não!

Ou pão e circo e palhaços OU o espírito grego

A propósito do Referendo grego de 05-06-2015



Os gregos assumiram colectivamente um papel que há muito se perdeu na Europa. E fazem muito bem, pois que foram eles que o inventaram: o papel da Política.

Há muito que na Europa não há nem Política nem políticos, mas apenas pão e circo e palhaços.

Ninguém sabe o que isto vai dar - mas sabemos, se somos honestos, que os Gregos fizeram aquilo que nos competia a todos fazer. Sabemos, se somos honestos, que não há verdadeiramente uma Democracia contra 18... Sabemos, se somos honestos, que há agora uma vontade popular - contra 18 governos-zombie de 18 povos-zombie numa Europa-zombie.

Os Gregos - e o seu papel na Europa

A propósito do Referendo Grego de 05-07-2015



Ouve-se e lê-se há uns tempos para cá um chavão que se pretende iluminado e que afirma que os gregos de hoje são uma sombra de uma sombra dos gregos gigantes do passado.

Quando ouço este chavão insisto sempre que não é assim. Pelo contrário: tal como o Sócrates da Hélade antiga foi gigante e foi condenado à morte pelos seus contemporâneos, devemos estar preparados para aceitar a possibilidade de sermos nós que somos demasiado pequenos para perceber a grandiosidade dos gregos de hoje.

Sobre o REFERENDO Grego - um momento da História Europeia

A propósito de "peixe e cana de pesca"...





Os Gregos estão a mostrar algo que está muito além da mera dicotomia "dar peixe/dar cana de pesca". É toda uma visão de como deve ser a Europa, de como a Europa deve ser para com os seus estados-membros... É toda uma concepção sobre os ideais que servem ao projecto Europeu - uma concepção que nega absolutamente que "primeiro os negócios, depois a política", que nega absolutamente que "aquilo que não admite excepções" seja a lei da finança...

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Utilitarismo e Nazismo

A propósito de Utilitarismo

"Os pressupostos nazis são exclusivamente utilitaristas. O nazismo é um modo de utilitarismo, uma espécie de utilitarismo intensificado. 

O nazi é um utilitarista, a única diferença é que o nazi é honesto. O utilitarismo é nazismo em potência - está sempre na possibilidade de se tornar nazismo na medida em que seja honesto com os seus próprios pressupostos. A única coisa que impede um utilitarista de ser completamente nazi é a tendência humana para a hipocrisia."



É possível rebater esta crítica ao Utilitarismo?

O dinheiro como medida do humano

A propósito do artigo de Habermas

A "dissolução da política na conformidade com os mercados" (Habermas) da Europa, o "primeiro os negócios, depois a política" de Paulo Portas - são apenas aspectos de algo radicalmente impresso na contemporaneidade: o desaparecimento da ética. A completa e absoluta dissolução do humano na economia. Hoje, se há princípios, são os da economia; se há consciência, é uma preocupação económica; se há valores, são os monetários; se há uma medida do humano é o seu sucesso financeiro.
Um sujeito mede-se pelos seus cifrões.
A dissolução da ética nos negócios acarreta como consequência a dissolução da política nos mercados.


Houve tempos em que se dizia que "uma vida não examinada não serve ao humano". Mas hoje o homem comeu do fruto do conhecimento e descobriu que "uma vida sem lucros não merece ser vivida". A validade do sentido da vida é comensurável com o dinheiro que se tem e movimenta.

sábado, 20 de junho de 2015

O MAL

A propósito de Bem e Mal

"Deve-se fazer o Bem e evitar o mal"

- este princípio é evidente em si mesmo, não pode ser produzido de forma alguma e a sua suspensão é o Mal. Não se pode provar que se deve fazer o Bem, pois a noção de Bem significa, justamente, que se deve fazer.


Seja como for que as coisas se passem, sempre que um sujeito toma consciência de si perante a injunção ética, há uma contradição que se impõe na disjunção "ou o Bem, ou o mal", mas isto é de tal forma que a injunção já sempre põe o Bem como "o que se deve fazer prontamente", e o mal como "o que se deve evitar" – e qualquer suspensão disto - incluindo para perguntar "o que é o Bem?" - é o Mal em sentido próprio.

A ética em Fichte



"Defende-se que a mente humana se encontra a si mesma absolutamente compelida a fazer certas coisas independentemente de qualquer fim externo, mas pura e simplesmente para as fazer, e a evitar fazer outras coisas de modo igualmente independente de quaisquer fins externos, pura e simplesmente para as deixar por fazer. Na medida em que tal compulsão se manifeste necessariamente nos seres humanos apenas por serem seres humanos, constitui aquilo a que se chama natureza moral ou ética dos seres humanos enquanto tal."

Fichte, O sistema da ética

O ABSOLUTO são os negócios

A propósito da VERDADE




A verdade está nos pormenores. Em certo sentido, é verdade.

Há dias o Paulo Portas disse numa visita a uma qualquer feira de empresários que "Primeiro os negócios, depois a política".

Aqui está a grande ideologia que não se vê como ideologia:
"PRIMEIRO OS NEGÓCIOS, depois o resto.


Outro dia disse o Cavaco que "há coisas que não admitem excepção". E depois concretizou: essas coisas "são as regras económicas".

Pois, o que não admite excepção, o que realmente é a coisa principal é os negócios, a economia.

Repare-se: há quem diz que o principal é o humano, e a lei feita para o servir. Há quem diz que aquilo que não admite excepção são os nossos deveres éticos, e o respeito pela humanidade de cada humano.

Hoje não: a dignidade de cada um enquanto humano, os deveres éticos de cada um, o humano, a ética, a política - tudo isto é um "depois", algo "secundário", que "logo se vê", no qual pensa "mais tarde". O principal, o Absoluto que não admite excepção, com o qual não se brinca, cujo nome nem se pode pronunciar sem esboçar uma cara de sério é o quê?

OS NEGÓCIOS

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Kant e o mal e a culpa inatos

A propósito de mal radical...



Segundo Kant há o mal inato e radical (de raiz, originário), e há também uma culpa inata... E a tentação é lermos estes termos e interpretarmos o resto que ele diz por estes termos... Mas Kant não está a dizer em lado algum que há um mal no homem desde que nasce que o leva a cometer o mal, nem que já se nasce culpado...

O que Kant diz é mais ou menos isto:
Originariamente no humano há duas propensões, independentemente de quando o sujeito venha a tomar consciência delas... porque nós nascemos ainda bebés e tal...


Mas lá estão, originariamente, como constituintes do humano, duas propensões. Uma delas é o amor de si mesmo que tende para a felicidade e essas coisas que nós sabemos que a natureza quer. Desde cedo o sujeito parece entregue a este elemento da sua natureza. A outra é a propensão para o bem.

Bem, até aqui temos a consciência ingénua. Não temos propriamente mal, e também não há propriamente bem. Há duas propensões.

Então, estas duas propensões chocam. Não podem ser ambas satisfeitas. Surge a contradição para si. Surge, propriamente falando, a consciência moral... Note-se: sem o choque não havia contradição, sem contradição não havia mal nem bem... Ou seja, havia dois elementos que eram contrários em si mesmos, mas que só quando são postos no mesmo medium - a consciência - se tornam contrários para o sujeito e, então, é preciso decidir. Portanto, é pela constituição da contradição que o elemento do amor de si se torna mal porque está posto como contrário do bem, e vice-versa. E ao constituir-se a consciência enquanto contradição entre possibilidade de bem e possibilidade de mal o sujeito torna-se consciente de que é livre... Neste sentido constitui-se também a culpa inata...

Quer dizer, o sujeito não nasceu culpado, mas acontece que no momento em que se torna consciente -no sentido de consciência moral -, no momento em que se constitui a contradição, surge o mal como possibilidade e, por isso, como tentação e, neste sentido, o sentimento de culpa que a pessoa já sente só porque se sente tentado...

Assim, o mal é radical... é radical à liberdade porque desde que o sujeito toma consciência de ser livre encontra-se já sempre confrontado com a possibilidade do mal... e é por isso que há propriamente DEVER. Em Kant a santidade e a divindade - a existirem - não têm nenhum dever, nem nenhum imperativo, e isto é assim porque o seu querer já coincide per si mesmo com a lei... isto é, o seu querer não está cindido, não tem que fazer nenhum esforço para o bem. E isso quer dizer, também, que não há propriamente uma consciência... A santidade é uma espécie de genialidade que faz o bem naturalmente. Não há propriamente mérito nisso, nem há uma vontade boa no santo.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O intolerável não é um argumento

A propósito de Paris

O terror levou as pessoas a terem de falar, a comentar. O modo rápido e expedito como toda a gente se sentiu na obrigação de falar indicia que se tratou de falatório, porque a rapidez com que se comentou tornou evidente que não houve, verdadeiramente, qualquer reflexão profunda ou séria sobre o assunto. De repente, toda a gente soube qual é o verdadeiro problema e o que há a fazer. Não sei se sabem de facto ou não, mas a rapidez com que se falou mostra que se limitaram a aplicar ao que aconteceu os velhos cânones. Assim, interpreta-se o acontecimento novo com a mesma grelha de chavões e padrões de sempre, não importa o grau de choque que se sofreu. Não é de admirar, por isso, que ainda hoje se possam ouvir as mesmas confusões. A direita tenta compreender o que se passou na mesma lógica de sempre do outro v/s nós, do emigrante/nacional, do fechamento das fronteiras e exclusão. Deixa completamente de lado o facto de os terroristas serem franceses, nacionais franceses. A esquerda tenta compreender tudo na mesma lógica da integração, da falta de condições de vida, da falta de emprego. Fica completamente de fora o facto de este tipo de terrorismo - tal como o do 11 de Setembro - apresentar como traço verdadeiramente distintivo, precisamente, a integração, a capacidade de desaparecer na paisagem - bem como a detenção de capitais, de mão de obra qualificada, de formação académica. A nova estrutura terrorista tem estudos, tem dinheiro, tem até capacidade de manipular os mercados, e sabe usar as suas capacidades, sabe integrar-se, sabe passar despercebida, como um psicopata.

Os mal-entendidos são abstrusos. Perante o atentado, desatou-se a defender a liberdade de expressão, a actividade dos cartonistas, etc. Como se aqueles que morreram tivessem menos direito à vida se, porventura, não se dedicassem a uma actividade nobre em democracia. Ora, discutir a liberdade de expressão no contexto de um atentado terrorista só significa que se considerou o atentado terrorista como um argumento contra a liberdade de expressão.

A violência não é um argumento. Pode ter e tem efeitos reais, mas não porque é um argumento. Aliás, a maioria dos argumentos, como se sabe, não tem efeitos reais - ao contrário da violência. Mas o atentado não é um argumento contra a liberdade de expressão, não há nada para discutir neste aspecto: e se o discutimos só estamos a dar razão aos terroristas, pois estamos a admitir que, perante a violência, levantamos a questão, dando-lhes a sensação de que talvez um dia consigam que nós respondamos de modo diferente. Contudo, não se deve pensar que a "liberdade de expressão" não é discutível. É-o. Porém, não o é devido ao atentado.No contexto do atentado não se deve discutir a liberdade de expressão. A liberdade de expressão deve ser discutida, SIM, mas sempre livre deste tipo de coacção (ou te calas ou mato-te). Podemos discutir se o Charlie deve ferir susceptibilidades da maneira como o faz. Podemos discutir se a lei o deve permitir. Etc. Mas isto deve ser discutido SEM QUALQUER RELAÇÃO e SEM QUALQUER PRESSÃO vinda do terrorismo: o facto de a pessoa ferida na sua susceptibilidade resolver matar não é um argumento contra nem a favor da liberdade de ofender susceptibilidades. Caso contrário, ficaríamos na situação estranha de permitirmos que se ferissem as susceptibilidades de todos aqueles excepto de quem estivesse disposto a matar.

É normal que as pessoas elogiem o trabalho daqueles que morreram. Mas associar o atentado a este elogio, pretendendo mostrar que a grandeza do trabalho daqueles que morreram agrava o acto de violência, é absurdo. Imagine-se que alguém tem crenças fortes contra a prostituição e desata a matar prostitutas. Significa isto que devemos saltar em êxtase a defender a prostituição? Significa isto que o assassínio de prostitutas é menos grave do que o assassínio de cartonistas que pugnam pela liberdade e lutam contra o preconceito? NÃO e NÃO. No entanto, toda a gente desatou a gritar "Je suis Charlie". O que quer isto dizer? Que estamos a defender o que o Charlie faz? Mas nenhum argumento foi dito sobre isso. O que há é um acto de terror que foi praticado e que DEVE SER CONDENADO INDEPENDENTEMENTE de ter sido praticado contra o Charlie ou contra uma prostituta, ou contra um qualquer outro indiscriminado. (Para evitar equívocos, devo dizer que sou totalmente defensor da ironia aguda do Charlie - o ponto é que isto é irrelevante: mesmo que se tratasse da pior espécie de jornalismo, o terrorismo seria condenável. Mas isto também não quer dizer que a liberdade de expressão deva ser absoluta: será que deveríamos tolerar um jornal que defendesse o terrorismo?).

O que nos deveria preocupar é saber em que medida seremos capazes de resistir à tentação de erguer barreiras, de condenar o Islão como um todo, de atacar os islâmicos só por serem islâmicos, de nos tornarmos, nós próprios, naquilo que condenamos. O perigo não é que o ataque terrorista nos leve a reduzir a liberdade dos jornais, mas sim que nos leve a reduzir a liberdade em geral sob a pressão para a segurança. O perigo é que o atentado produza de facto medo e que CEDAMOS ao medo, cortando a liberdade, a democracia, e passemos a discriminar, a controlar abusivamente. O perigo é que o medo nos leve a instalar um estado ditatorial. É aí que o terror vence. Se não resistirmos à tentação de condenar o outro, de erguer fronteiras, de excluir.

Um último ponto: tem-se dito que deve haver colaboração internacional entre serviços de informação, e tem-se insistido na ideia de que deve ser apertado o controlo de informação por parte dos serviços secretos. Ora, aqui está a tendência para ceder ao medo, para criar um estado securitário em detrimento da democracia, para sacrificar a liberdade em nome da segurança. É um facto que se tem de pensar no assunto. Contudo, não é evidente que o problema tenha residido numa falta de informação. Na verdade, parece que os terroristas estavam referenciados e nada se fez. Não faltou informação. Faltou outra coisa. E não foi um problema de fronteiras em si, nem de imigração, nem de integração.

Mas há um aspecto disto que deve ser tido em conta: se alguém decide ir para o Estado Islâmico, lá onde se cortam cabeças e queimam pessoas vivas, e depois regressa, alguma coisa tem de mudar no modo como lhe é permitido estar cá. Quer dizer, isto, pelo menos, deve estar mais ou menos claro: decidir integrar o Estado Islâmico não é o mesmo que decidir jogar PC, ou xadrez. A decisão de integrar o Estado Islâmico não é uma decisão revogável, da qual se possa voltar para trás. Pode acontecer, de facto, que alguém se arrependa, mas isto não impede esta constatação: a decisão de se tornar parte de algo como o Estado Islâmico envolve uma nível de convicção, de esforço, de compromisso com algo que é de tal modo extremo, intolerável, inumano, que tem de ter consequências. Não se pode simplesmente aceitar que alguém que foi para o Estado Islâmico estagiar possa simplesmente voltar como se tudo não tivesse passar de um sonho - pois, caso contrário, arriscamo-nos a ser acordados da pior maneira.










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