quinta-feira, 31 de maio de 2012

"Sobrenatural", a série

A propósito do "que interessa"...

Na sexta temporada de Sobrenatural, Sam não possui alma - encontra-se sem alma e não sabe muito bem o que ele próprio é.

Fisicamente, ele permanece igual ao que sempre foi. Entretanto, o seu raciocínio e manejo conceptual desenvolveu-se forma exponencial. Na verdade, ele é agora exímio na caça, não apresentando os problemas morais de outrora.

Independentemente das nossas crenças enquanto espectadores, interessa perceber o papel da alma na série. Não quero dizer que a alma existe na realidade, nem que, se de facto existe, tem a função ou o papel desempenhado na série. Não. Estou a reportar-me exclusivamente à série.

Sam não tem alma. Na série isso significa que ele é incapaz de reconhecer o bem e o mal e conceder-lhe uma importância objectiva. Na verdade, a ideia da série é que Sam possui apenas a capacidade racional. Ora, não interessa vermos se a série é radicalmente fiel a este aspecto, pois parece-me que é feito um esforço sincero para colocar em cena uma personagem a-moral. Por isso, há de facto comportamentos e raciocínios que Sam faz que só poderia fazer se, e apenas se tivesse uma qualquer noção de bem e de mal. Mas não sejamos tão minuciosos, pois o fundamental está em perceber as diferenças que radicalmente distinguem Sam, sem alma, de Dean e de todos nós em geral.


Num episódio, Dean é raptado. Sam não encontra nada ao seu alcance que possa ser feito, por isso vai para a cama com uma rapariga bem bonita. Entretanto, Dean consegue regressar e encontra Sam na cama com a rapariga.

Dean tenta, pois, explicar a Sam que não é compreensível dedicar-se à prática do sexo quando o seu irmão (ele, Dean) foi raptado por sabe-se lá que entes estranhos... Mas Sam não percebe o argumento: pois, se nada há que se possa fazer, de que adiantaria ficar em casa a chorar o facto de ter ficado sem o irmão? Dean diz-lhe que a sua atitude mostra que ele não se preocupa com nada.

Sam, de forma muito reveladora, pergunta: "Mas devo preocupar-me exactamente com o quê?"

Esta questão é muito importante, e se a colocarmos de facto, de forma intelectualmente sincera, ela pode dar-nos dores de cabeça bem sérias. Estou a falar de colocar a questão a sério. Não vale responder-lhe apenas: "devemos preocupar-nos com a família" - pois então teríamos ainda de perguntar (se sermos honestos for nosso objectivo): "porquê?"

Então iremos perceber que, seja qual for a nossa resposta, poderemos sempre perguntar: "porquê?" Talvez assim se entenda que Aristóteles tenha dito que nós não deliberamos sobre os fins, mas tão só sobre os meios para os fins.

Normalmente, os filósofos mais ou menos honestamente procuram estabelecer uma rede de questionamento racional sobre este assunto. Ou, pelo menos, alguns filósofos foram suficientemente sinceros para admitirmos que tentaram. Bem, não foram tantos como isso, mas podemos referir Nietzsche e Aristóteles - embora com uma complexidade que não interessa aqui desvendar.

Enfim, os filósofos que empreenderam esta tarefa, não raramente, acabam chocando na "felicidade" ou em "Deus". Há muitas formas diferentes de acabar em Deus ou na Felicidade, mas o que quero dizer é que, normalmente, no fim da cadeia de questionamento, de sucessivos porquê's, os filósofos espetam com Deus ou com a felicidade, na tentativa última e desesperada de validar toda a série de respostas.

Quando à colocação de Deus no final da série, existe uma questão que evidentemente se poderia colocar: mesmo que esta seja a vontade de Deus, por que razão eu devo segui-la, mesmo quando a sua vontade não seria o meu desejo? Esta pergunta impõe-se por ela mesma: nem sempre eu concordo com aquilo que é a vontade de Deus. Os crentes modernos eliminam esta questão afirmando que, na verdade, ninguém sabe o que Deus pensa. Assim, sempre que a religião, ou a Igreja afirmam qualquer coisa com a qual o crente moderno não concorda, este defende-se dizendo que a Igreja deve estar errada. No fundo, aquilo que o crente afirma é: eu penso que X está errado, logo Deus deve pensar como eu!

Existe uma presunção imensa nesta pensamento, mas o que aqui nos interessa é outro aspecto: mesmo quando se aceita que X é a vontade de Deus, um humano pode discordar seriamente. O livro de Job constitui uma boa oportunidade de reflectirmos sobre esta importante observação: eu posso discordar de Deus. Logo, a série de respostas à sucessão de porquê's não deve terminar em Deus. A afirmação de que Deus existe não constitui uma legitimação, por si mesma, para aquilo que seja a Sua vontade, mesmo que admitindo que nos seja possível saber qual seja a sua vontade.


Quando à colocação da Felicidade no final da série, normalmente o leitor toma o problema por resolvido. É mais ou menos consensual que todos queremos ser felizes. Esta observação é uma constatação de tal forma generalizada que obscurece um outro facto muito importante: nenhuma constatação tem, por si mesma, qualquer significado existencial próprio. Ou seja, a constatação de que o ADN humano é muito semelhante ao de um chimpanzé não tem significado existencial nenhum. Não significa um mais nem um menos naquilo que o humano, enquanto tal, é. Claro que a constatação parece impor uma determinada interpretação, mas na verdade é a nossa compreensão, com base naquilo que previamente sabíamos, que agora interpreta a nova constatação. Ou seja, o facto de haver uma nova constatação cria a ilusão de que se faz uma nova interpretação, quando na verdade é o mesmo sistema compreensivo que estabelece uma interpretação para o novo dado, sem realmente avaliar as consequências que este dado deveria ter, ou não ter, sobre o sistema compreensivo anterior à sua descoberta.

Enfim, o que isto tudo quer dizer é tão simples como o seguinte: o facto de que todos desejam ser felizes (e, para efeitos desta análise, assumimos aqui que isso possa ser verdade e assumimos que é verdade) não mostra, mas sobretudo não prova que o humano deva ser feliz, nem mostra, mas sobretudo não prova que o humano deve preferir aquilo que o fará feliz àquilo que o fará infeliz. Claro que há uma preferência sensível daquilo que me faz sentir bem, tal como há uma preferência sensível entre o que me sabe bem, e o que me sabe mal, mas isso não significa que o doce seja preferível ao amargo. O facto de X ter mais probabilidades de me vir a tornar feliz não faz do facto X um facto preferível a qualquer outro. Pois, quando eu digo que prefiro X a Y, porque X me faz feliz, estou a presumir que ser feliz é aquilo que importa: mas, precisamente, é aquilo que importa que estava em questão. Ou seja, porquê?, por que é que eu devo preferir aquilo que me faz feliz?


Curiosamente, Sam, livre de qualquer preceito moral, vê como evidente que aquilo que o faz sentir bem é preferível. Isto, se podemos assim falar de uma série televisiva, mostra uma coisa, mas apenas isto: que nós temos uma balança interior, íntima, profunda, radical, que pesa, avalia as coisas segundo a forma que elas nos dispõem. Contudo, como já disse, isso não mostra, mas sobretudo não prova que essa balança é a balança correcta. O livro do Ecclesiastes constitui uma boa oportunidade para colocarmos este problema. O facto de algo nos alegrar, nos fazer sentir bem, enfim, de, em última análise, nos fazer felizes, significa que isso é bom, é correcto, é preferível? E, ainda mais fundo do que isso devemos perguntar (e se o fizermos de forma honesta, sem subterfúgios em definições, em conceitos que apenas conseguem ocultar a possibilidade desta pergunta, então veremos que nos dará dores de cabeça): ainda que se aceite um conjunto de máximas como definindo o que é BOM/BEM, ou correcto, ainda que soubéssemos, sem conflitos internos, aquilo que é verdadeiramente BOM/BEM, por que é que deveríamos fazer isso em vez de alguma coisa qualquer? Se alguém nos disser: "eu sei que é correcto não roubar, mas vou roubar na mesma" - qual é a ponte que liga uma observação, ainda que moral, ainda que no domínio dos conceitos, à acção? Porque há sempre um salto.

Há portanto dois questionamentos fundamentais nesta série de episódios de "Sobrenatural":

1.º Seja o que for que se diga que é o Bem, ou o Mal, o Bom, ou o Mau, o que é que me permite dizer que isso é o Mal, o Bom, ou o Mau? Porquê é errado matar? - por exemplo?


2.º Seja o que for que se diga que é o Bem, ou o Mal, o Bom, ou o Mau, o que é que me permite dizer que é isso que tenho que fazer? Por que é que o devo deve ser interpretado como um tenho que fazer?

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