quarta-feira, 21 de março de 2012

Ésquilo, fragmento 353 Nauck

A propósito de morte...

ὡς οὐ δικαίως θάνατον ἔχθουσιν βροτοί, / ὅσπερ μέγιστον ῥῦμα τῶν πολλῶν κακῶν » Ésquilo, frag. 353 Nauck 

Tradução: "Então não justamente odeiam a morte os homens mortais, pois é a maior defesa dos seus muitos males".

Esta sentença pode significar simplesmente que os homens odeiam sem razão a morte: não fazem justiça à morte ao odiarem-na pois ela é a maior defesa contra os muitos males dos mortais; a morte é a defesa suprema contra os males que podem acometer os mortais; quando a travessia se torna insuportável o humano encontra na morte a sua última esperança de poder acabar com tudo isso.

Nesta explicação faz todo o sentido o fragmento 90 Nauck: βίου πονηροῦ θάνατος εὐκλεέστερος - "a morte tem melhor reputação que uma vida penosa". De uma vida de dificuldades, de trabalhos, laboriosa (πονηρός pode significar ou não, já em Ésquilo, , perversa) há menos relatos favoráveis que da morte: fala-se melhor da morte que de uma vida penosa.

O fragmento 90 explica o fragmento 353. Há menos mal a dizer da morte que de uma vida sofredora, em que toda a espécie de males assola o humano enquanto a atravessa. Compreende-se, então, que a morte seja a maior defesa contra uma vida de dificuldades, seja a maior defesa contra os muitos males que se abatem sobre os humanos

Há outra forma de ler o fragmento 353. A maioria dos homens receia a morte, e este receio leva-os a precaver-se contra os males. Deve entender-se que males são tanto os seus vícios próprios, como as calamidades que de fora sobre eles se despenham. Os mortais, na fuga da morte, evitam os males que, afinal, são morte. Portanto, se os mortais levam uma vida de algum modo boa, à morte o devem. Devido à morte vivem uma vida digna. Note-se que a questão não está em aumentar o tempo de vida em dias, por assim dizer contabilisticamente, mas em fazer valer cada dia de vida (no sentido em que se pode dizer, com Raul Brandão, que mais vale um minuto na vida, que cem anos de vida).

Finalmente, há ainda (pelo menos) uma terceira leitura possível e que é a seguinte. O ser mortal é-o porque é para a morte, a morte não é um acidente, não é uma característica que um dia se lhe virá a juntar. Não. A morte é, no ser do que pode morrer, a sua mais íntima e definidora forma. A forma da vida que, em si mesma, é de tal maneira que pode sempre morrer não pode cortar a morte do seu ser. O seu ser é, precisamente, capaz de morte. Esta permanência da morte nos mortais espicaça-os a cada momento para a certeza dessa possibilidade: acabar. Acabar não é uma possibilidade qualquer, não é uma possibilidade que se possa, por exemplo, protelar indefinidamente: mas também não é isso que está aqui em causa. Simplesmente, isso mostra que a morte não é uma possibilidade como as outras possibilidades que diariamente se abrem. Na travessia da vida a possibilidade da morte está sempre aberta, de antemão disponível. Contudo, nem sempre se mostra como tal. De qualquer forma, quer se mostre quer não se mostre, a morte é a possibilidade sempre possível, certa e inalienável.

A possibilidade da impossibilidade de todas as possibilidades é a morte e, enquanto tal, a morte é a possibilidade que em cada momento nos mantém no fio da navalha: os imortais não têm momentos críticos, a sua existência não passa por momentos decisivos, pois só um ser que pode morrer pode encontrar-se na urgência de ter que decidir-se. Por conseguinte, não há razão para se odiar a morte, pois é ela que lança o mortal no gume afiado do ter de ser ele mesmo: uma urgência que, na verdade é vital. O fazer propriamente vida (abrir, criar, escolher possibilidades, separar o trigo do joio, fazer florescer o momento oportuno) é qualquer coisa que, em última análise, é colhida da permanente acção da morte, da urgência que há em ser vida.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Breve análise filosófica d' "O feitiço do tempo"


A propósito de tempo...

No filme "o feitiço do tempo", Phil Connors é uma personagem arrogante que fica retida no dia 2 de Fevereiro... Por volta das seis da manhã acorda, invariavelmente, no mesmo dia.

No início do filme, Phil é uma personagem com qual poucos de nós quereríamos ter algo que ver. Insensível, convencido, snob, Phil repele quem com ele convive. Pensa apenas no seu umbigo e está-se nas tintas para os outros.

Retido no mesmo dia, acordando vezes sem conta no mesmo dia, Phil começa a acordar para a vida. O primeiro embate é chocante. O tempo surge-lhe como incomodativo e sente-se intempestivo, escorraçado, como se o dia em que ficou preso não fosse o seu habitat.

De início reage mal. Chega a suicidar-se. Mas nem a morte o salva da situação em que se encontra. A sua única esperança - suicidar-se - não é mais uma esperança e isso é para si o supremo desespero. "A sua vontade própria é destruir-se, mas é o que ela não pode fazer, e a sua própria impotência é uma segunda forma da sua destruição, na qual o desespero pela segunda vez erra o seu alvo, na destruição do eu."[i]

Esse desespero de não “poder libertar-se” não se mostra inicialmente senão como repulsa perante algo que vem de fora: a repetição incessante do mesmo dia. Curiosamente, a repetição do mesmo dia não implica necessariamente a repetição do mesmo em absoluto. Há variações, ele pode variar o que faz.

Enquanto ele tinha confiança na vida, ou melhor, no curso habitual da vida, essa confiança não deixava que se levantasse o problema do desespero. A vida corria e ele corria ao sabor da vida, sem que surgisse qualquer necessidade óbvia de questionar o modo como a sua vida era levada, precisamente por ele mesmo.

O que vem ao de cima então, quando Phil se encontra preso na sua vida – efectivamente, num dia da sua vida – é que há um problema nisso mesmo que é o levar em diante a vida. Precisamente, há muitas formas, muitos modos, muitas maneiras de estar na vida. Percebe-se então que quando a confiança na vida se quebrou, a sua esperança virou-se para a própria morte. O desespero para com a vida tornou-se desespero para consigo mesmo: a morte, o fim de tudo, tornou-se a sua esperança. O desespero cresceu então ainda mais quando nem sequer pôde morrer. Mas este desespero tem uma diferença que não é meramente quantitativa: é um desespero inevitável – sendo a única esperança, e não sendo possível, o desespero é total.

Então Phil percebe uma coisa muito importante: perante o mal extremo e inevitável há ainda várias atitudes que são possíveis. Tal como, apesar de viver o mesmo dia vezes sem conta pode ainda viver cada repetição de uma maneira diferente, também, apesar de ser inevitável o encontro com a sua própria vida e consigo mesmo, pode relacionar-se de várias maneiras possíveis consigo e com a sua vida. A sua vida e ele próprio para si mesmo, são algo com o qual se pode relacionar. E é esta distância de si à sua vida que lhe permite tomar a sua vida nas próprias mãos.

Phil percebe então que, já que tem que viver e não tem outra forma de estar senão vivendo, deve fazer com que cada momento conte. É o que se empenha em fazer: que cada momento seja decisivo. As suas decisões vêm a partir de agora de toda uma diferente forma de ver a vida e de se compreender a si mesmo na vida. A vida já não é apenas qualquer coisa garantida, adiável. Não pode adiar a sua vida porque não pode passar em diante sem viver o dia. O dia em que está é a vida que tem, e de repente aquilo que verdadeiramente interessa torna-se-lhe urgente. Diferente das urgências vagamente cómodas e adquiridas pela forma do curso da vida – as urgências que agora o confrontam impõem-se-lhe pela necessidade urgente de viver a sua vida.

Esta urgência é simbolizada no facto de perceber que estava apaixonado pela rapariga que o acompanhava na sua profissão. Mas mais importante do que isso, percebeu que a sua vida é um cuidar permanente, um cuidar de si mesmo que não pode ser trocado ou despedido. Isso não significa, como ele pensava antes, que devesse levar uma vida egoísta e egocêntrica. No mundo e na vida, Phil é inevitavelmente na vida e no mundo com outros.

A preciosidade da vida revela-se-lhe. E nesta revelação revela-se-lhe ainda a preciosidade dos outros e do trato com os outros. O modo como leva a sua vida alterou-se: quer que cada momento conte, conte com tudo, fazendo das tripas coração, tornando cada instante excelente: o melhor que podia ser. E percebe que, pelo menos para si, isso implica fazer coisas pelos outros: coisas que ele sabe que são o seu destino, como coisas que só ele pode fazer.

Inicialmente, esta forma de ver o mundo e a vida é ainda atabalhoada e sente-se capaz de ser tudo. Chegou mesmo a salvar um senhor de uma morte inesperada por engasgamento… Como sabia que isso iria acontecer pôde chegar a tempo de o salvar. Assim como podia ajudar muitas pessoas pois em todas as vezes que viveu o mesmo dia encontrou muita gente a precisar de ajuda, de ajuda que ele podia dar. Mas ser o melhor que se pode ser não significa ser omnipotente. É o que vem a compreender de forma aguda quando tenta ajudar um sem-abrigo que acaba por morrer no hospital. Os próximos dias (as próximas repetições do mesmo dia) são então passados a tentar salvar esse sem-abrigo. Mas a morte revela-se-lhe a possibilidade inadiável: tentou de tudo, mas o sem abrigo morreu sempre… Até que compreendeu que não tinha um poder ilimitado, não dispunha de possibilidades ilimitadas: na verdade não só não podia salvar ninguém da própria morte (em sentido absoluto), como não estava nas suas mãos definir o que estava disponível para usar nesse dia a que estava confinado.

Até aqui Phil já fizera um percurso imenso: no início pensava que tudo estava bem na sua vida; quando ficou preso no mesmo dia pensou que tudo estava mal na sua vida; pensou então que uma vez que por mais que tentasse não sairia daquele dia, nada valia a pena, nem sequer viver, pois nada na vida mudaria isso de estar preso ali, naquele dia, naquela vila, para sempre; se tudo iria dar no mesmo resultado, se tudo teria um resultado idêntico, tudo era igual, tudo era nada, e nada valia a pena; ao descobrir que nem a morte o salvaria da sua vida, o desespero levou-o a descobrir que, se estava limitado àquilo que lhe calhara em sorte, então o que mais valia era dar o melhor uso possível às possibilidades que estavam disponíveis naquele dia, naquela vila, com aquelas pessoas; finalmente percebeu que ele não controlava aquilo que lhe era oferecido, que não podia de facto mudar o quinhão de vida que lhe restava, mas que podia fazer com isso a excelência. Ser excelente em cada decisão, em cada momento, com cada possibilidade que tinha – esse foi o rasgo de iluminação que, como um relâmpago, o envolveu.

“Tu que existes exposto ao que os dias te trazem, o que é ser/ Alguém? O que é não ser Ninguém? O humano é o sonho de/ uma sombra./ Mas quando chega o esplendor dispensado por um deus, há/ uma luz brilhante entre os homens e a vida torna-se doce.”[ii] O ser humano está exposto ao que os dias lhe trazem, e perante esta inevitabilidade tem a consistência de um sonho de uma sombra. Não é que o humano seja uma sombra: é o sonho de uma sombra. Um sonho, um projecto, algo que ainda não é, algo que sempre ainda não é o que tem para ser. Mas, de vez em quando, um esplendor que ele não controla ilumina tudo: a sombra, claro está, torna-se mais consistente, mais sólida. Quando há mais sol também as sombras são mais espessas: pelo contraste. Contudo, parece que assim se fica sem margem de manobra, que tudo está fora das nossas possibilidades. O que Phil compreendeu foi que, apesar de estar inevitavelmente exposto ao que a vida lhe trazia, o que interessava era a identificação e a constituição de uma postura perante a vida que lhe permitisse não ser dominado por isso e que, resignando-se ao inevitável, não fugisse disso, mas abraçasse com todas as forças o projecto de fazer da sua vida o melhor possível.

Phil tornou-se assim um ser humano consciente das suas decisões – já não passivamente exposto à procura do prazer e à fuga do sofrimento, mas activamente empenhado em viver na justa medida da sua excelência.

Pitágoras disse uma vez: "Ὁ βίος βραχὺς, ἡ δὲ τέχνη μακρὴ” – ou seja: a vida é curta, a técnica é longa. De facto, a vida é curta, tão curta que a tendência inicial é vivê-la o mais depressa possível, sem paragens, sem jamais questionar o que seja viver. O ser curta dificulta a constituição daquilo que Pitágoras chama τέχνη [tekhné]. Este termo grego foi traduzido para o latino ars, ou seja, arte. O que está aí em causa, na τέχνη, na ars, é um saber-fazer adequado a cada região da produção e do manuseamento: o sapateiro sabe uma arte na qual pode ser mais ou menos exímio. Neste sentido, há também uma τέχνη da vida. O problema parece ser então a curteza da vida. É o próprio ser curta da vida que na maioria das vezes impede a constituição de um olhar técnico sobre a vida: na sua curteza, a vida impele o vivente a correr de uma ocupação para outra. Mas este carácter, a curteza da vida, responsável pela correria, é também a maior razão que se tem para que se pare para pensar como deve ser vivido esse tempo que nos é dispensado. Contudo, Pitágoras realça precisamente que pode acontecer que a vida seja demasiado curta para que uma τέχνη adequada possa ser desenvolvida. Pode acontecer que o tempo necessário para saber viver adequadamente extravase a curteza da vida humana.

O que aconteceu a Phil representa o que acontece com todos nós: tal como ele só em casos extremos (aliás, muitas vezes só tarde de mais) paramos para pensar; corremos na vida sem pensarmos no significa de facto viver; temos um tempo de vida limitado que não depende de nós e nesse tempo estamos expostos ao que o dia que é a vida nos traz; isso incomoda-nos e tentamos fugir de enfrentar essa realidade; primeiro fugimos simplesmente não abrindo os olhos para ver o que todos os dias se manifesta; depois, quando a vida encalha, fugimos de forma extrema, maldizemos a vida e no limite confiamos no suicídio. Contudo, Phil foi confrontado com algo que não acontece connosco: viver diversas vezes a mesma situação até acertar. É que connosco, como diz Pitágora, a oportunidade é estreita (“ὁ δὲ καιρὸς ὀξὺς”). Não temos segundas hipóteses: vivemos uma vida curta que nos impele a correr nela, a corrê-la, a consumi-la, e em cada trago vai-se um momento irrecuperável onde jamais voltaremos para tentarmos outra vez. É que só se vive uma vez cada momento que, na maioria das vezes, vem até nós a correr, na nossa pressa de viver a vida que é curta. Por isso a experiência é difícil, escorregadia, perigosa (“ἡ δὲ πεῖρα σφαλερὴ”) e a escolha tão difícil (“ἡ δὲ κρίσις χαλεπή”)[iii].

É que todos nós somos capazes de perceber que a compreensão final de Phil é a mais correcta, provavelmente a mais adequada. Mas também percebemos que essa maneira de ter a vida só é possível mediante uma decisão nossa, uma decisão que, precisamente, é difícil de tomar. A autenticidade é difícil.


[i] Vide KIERKEGAARD, Søren. O Desespero Humano, Martin Claret, São Paulo, 2002, trad. Alex Martins, p. 24.
[ii] Vide PÍNDARO. Odes. Quetzal, Lisboa, 2010, trad. António C. Caeiro, p. 64.
[iii] Vide Hp. Aph. 1.1.


quarta-feira, 14 de março de 2012

Breve análise filosófica do filme "A invenção de Hugo"


A propósito de máquinas, autómatos e de uns estranhos entes chamados seres humanos...



"τὸν γὰρ ὡς ἀληθῶς ἀγαθὸν καὶ ἔμφρονα πάσας οἰόμεθα τὰς τύχας εὐσχημόνως φέρειν καὶ ἐκ τῶν ὑπαρχόντων ἀεὶ τὰ κάλλιστα πράττειν". Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1101a1-3: "Pensamos por isso que aquele que for verdadeiramente bom e avisado suportará toda a espécie de fortuna dignamente e a partir do que dispõe agirá sempre da melhor maneira".

O filme de Martin Scorsese A invenção de Hugo, ou simplesmente Hugo, baseado no livro de Brian Selznic, A invenção de Hugo Cabret, foi para mim uma descoberta impressionante.

Com Ben Kingsley, Sacha Baron Cohen, Asa Butterfield, Chloë Grace Moretz, … o próprio Scorsese participa por breves segundos…

Não me interessam os efeitos especiais. Interessa-me a estória. E neste filme os efeitos especiais são aplicados para realçar aspectos que embelezam o que se está a contar. Como um sublinhado.

É o relato de um trecho da vida de um rapaz, Hugo Cabret, que vive dentro das paredes de uma estação de comboios. Esse é o seu horizonte de familiaridade, o seu lar. Mas algo impede Hugo de se confundir com as paredes que habita e que, de certa forma, lhe oferecem alguma segurança. Perpassa-o um constante receio de ser descoberto, de ser arrancado ao seu mundo, das paredes da gare.

Hugo cuida dos relógios e de um curioso autómato que está com ele. E tudo tem uma história, um passado, um caminho que abriu a situação em que Hugo agora se encontra. O que nos chega como situação presente é envolvida pelo lastro do que passou em flashback. Este recurso, a analepse, traz ao espectador o fio condutor que explica o carinho que Hugo tem pelo autómato, a preocupação com que se dedica a cuidar dele, a procurar dar-lhe arranjo para que possa, finalmente, cumprir aquilo para que foi feito. Mas algo falta no autómato: algumas peças cuja especificidade torna raras e difíceis de encontrar; uma chave em forma de coração. Note-se o pormenor importante: em forma de coração. O coração é o lugar onde se sediam as afecções, onde bate a pulsação da vida, onde o mundo vibra e se deixa sentir, onde as paixões arrebatam e por vezes capturam os indivíduos. E é uma chave em forma de coração que falta, que é de facto a chave para resolver a dificuldade de pôr em marcha o autómato.

Um autómato. O autómato tem uma finalidade, houve um propósito que presidiu à sua construção. Posto em movimento ele cumprirá aquilo para que foi feito, confundindo-se com isso. Nenhuma distância entre o autómato e o propósito da sua existência lhe levantará um problema existencial. O propósito estava na mente do seu criador, de quem o fez. O autómato limita-se a cumprir, a executar. Com os humanos que surgem na tela as coisas são diferentes. O inspector da gare, o velho que vende velharias mecânicas, a neta do velho, Hugo – enfim, cada um enfrenta as dificuldades que são as da sua vida e que, de algum modo, notificam de que com eles essa identificação, de que falámos relativamente ao autómato e à sua finalidade, não ocorre. Cada um tem uma ocupação que o identifica perante o espectador, mas essa ocupação não os resume, não os absorve totalmente. Não diz tudo. O inspector ama a rapariga que vende flores, e tem uma perna que ficou na guerra e cuja ausência ele sofre como uma incapacidade. O velho parece distante da sua loja de velharias, está ali como um autómato. Mas precisamente, nesse estar ali como um autómato evidencia-se a distância que há entre o humano (que se sente para ali esquecido pela sua própria vida, que está jogado fora, como um resto, vivendo e respirando como um autómato) e o autómato, que no seu movimento automatizado cumpre precisamente o exacto fim para que ali está.

Os relógios. Assim que comecei a ver o filme e a sua incidência nos relógios, nas máquinas, nos mecanismos, veio-me à cabeça a expressão deus ex machina. Esta expressão latina surgiu como tradução de expressões gregas que surgem em alguns textos, nomeadamente, sobre as tragédias. Os tragediógrafos usavam por vezes um artifício estranho ao drama para resolver a peça: um deus, preso por uma corda, descia em cena e atava (literalmente) as pontas soltas da trama. Ao engenho pelo qual se faziam descer os deuses chamava-se μηχανή [mekhané]. Um exemplo de intervenção deste género é uma variante do êxodo da peça Ifigénia Áulida[i], no qual Artémis interfere trocando Ifigénia por uma serva – e assim salvando a primeira. Aristóteles pronuncia-se contra este tipo de artifício na Poética[ii]. A expressão grega usada é ἀπὸ μηχανῆς [θεός], isto é, [o deus] do artifício. Ou, como o escreve Menander[iii]: ἀπὸ μηχανῆς θεὸς ἐπεφάνης, isto é, o deus surgido do artifício. Este deus externo à peça intervinha para provocar acontecimentos que não estavam justificados pelos acontecimentos em si mesmos. Em muitos casos esse deus surgia, de facto, de um artifício: desse engenho mecânico que o fazia descer em palco – por isso tratava-se literalmente de um deus que chegava através de um mecanismo. Ora, o termo μηχανή é o antepassado de termos actuais como mecânica e máquina ou maquinar. A forma como esta expressão, deus ex machina, está relacionada com o filme é, portanto, equívoca.
Primeiro: o filme insiste em presentear o espectador com belas imagens de mecanismos complexos, que funcionam pautadamente, reforçando a ideia de ritmo, sequencialidade e causalidade. Ora, Aristóteles pretende, precisamente, afirmar que numa estória os acontecimentos internos devem justificar o desenlace – na verdade, cada acontecimento deverá estar justificado pelo antecedente, com a necessária excepção dos acontecimentos que são narrados ou apresentados sob a condição de acontecimentos passados (analepse), ou nos que são apresentados como futuros (prolepse). Portanto, o filme, ao insistir nas ideias de regularidade, mecanicidade, causalidade – parece estar a concordar com o Estagirista no sentido: o movimento de cada peça provoca o movimento da próxima e assim sucessivamente, desta forma funcionam os relógios e os mecanismos em geral.
Depois: ao longo do filme avolumam-se os mistérios e temos a sensação de que será realmente necessária a intervenção de um deus ex machina para atar todas as pontas soltas. Que relação haverá entre Hugo, o pai, o velho da loja, o autómato?

As máquinas e os autómatos. O termo máquina perdeu um sentido importante que estava presente no grego. Mas que ainda está presente no verbo maquinar. Quando maquinamos, desenvolvemos artifícios, artimanhas: criamos engenhos, engenhocas. Intervimos no mundo de forma a tornar disponíveis possibilidades que estavam indisponíveis. É essa a função de uma alavanca, de uma máquina afinal: abrir novas possibilidades. Portanto, o decisivo é inventar; a máquina é uma invenção, um fruto artificial da capacidade de maquinação humana. Ora, o filme mostra-nos esta faceta das máquinas, da maquinação: a possibilitação da concretização de sonhos. O espectador é levado a reconhecer a figura de Melier, um realizador proscrito, na figura do melancólico velho da loja de velharias. Noutros tempos, este velho foi esse realizador. Devemos aqui notar que na palavra realizador se move a acção de realizar. Melier no passado viu no cinema uma máquina de realizar sonhos. O seu ímpeto, a sua força anímica, por sua vez, influenciou outros espíritos, inclusivamente pai de Hugo. E também aqui vemos uma sucessão de acontecimentos que surgem uns dos outros: Melier influenciou Cabret, o qual influenciou o próprio filho…
As máquinas são criação que criam possibilidades. São dispensadoras de aberturas e, nesse sentido estão intimamente ligadas à inventibilidade humana. Ao contrário do que tendemos a perceber pelo termo mecânica, na verdade a mecânica dos sonhos tem muito de criatividade. De possibilidades de realização. As máquinas criadas pelos seres humanos podem ser de diversos tipos: os relógios levam os humanos a deixarem-se controlar por elas; outras, como as máquinas de filmar, são possibilidades de realizar os sonhos que se têm; algumas são autómatos. Os autómatos antropomórficos, como aquele de que Hugo cuida, imitam desempenhos humanos. Este autómato que é peça fundamental do filme imita um actividade específica: faz desenhos. Imita uma das actividades mais conotadas com a criatividade. Mas o vigor do termo autómato está no ser capaz de funcionar por si só: por isso é automatizado, move-se a si mesmo. Contudo, um novo equívoco se esconde aqui: o autómato, tal como os sonhos, precisa de ser cuidado, tratado. É o trabalho humano que faz o autómato, e sem cuidado humano, sem amor humano, até os autómatos fenecem, perdem peças, degradam-se e deixam de cumprir a função para que foram feitos.

As máquinas, os autómatos e os humanos. Ao contrário das máquinas e dos autómatos, o humano não coincide com o sentido do seu estar aqui. Mas Hugo tem uma teoria sobre o assunto. O mundo é como uma máquina: vem sem peças a mais; cada peça é necessária para o grande propósito de tudo; ninguém está a mais no mundo, todos são parte de uma grande máquina. Esta é uma ideia antiga e, na verdade, recorrente – na qual todos gostariam de acreditar. O filme, por seu lado, mostra aqui e ali que o humano é, sobretudo, heterogéneo face ao mundo. Ao contrário do autómato. O autómato executando o propósito para que foi feito fará o que estava destinado a fazer, sem dúvidas ou dificuldades. O desenho que faz é imediatamente percebido como obra, não do autómato, mas do seu criador. Quando o autómato, depois de arranjado e posto a funcionar com a chave em forma de coração, desenha, Hugo sabe, como toda a gente, que o criador do autómato é o autor de tal desenho. Porque só um ser heterogéneo pode ter uma necessidade de sentido; só um ser para quem o sentido pode ser um problema pode dar sentido; só um ser que, da forma mais radical, não é mundo pode intervir no mundo. O autómato não intervém, faz o que faz: não intervém. É para Hugo que o sentido das coisas urge. A urgência fá-lo mover-se, questionar-se, fazer das tripas coração. É Hugo que vê uma semelhança fundamental entre os autómatos e as pessoas: quando não são capazes de cumprir o que têm para ser, é porque estão quebradas; tal como o seu autómato, também Melier, o velho, está quebrado. Também Melier precisa de concerto, na sua vida faltam peças – tal como na vida do inspector da gare faltava a peça fundamental que era a rapariga que vendia flores.
Em última análise, podemos dizer que é Hugo que vê no autómato quebrado a imagem de um ser humano encalhado. O autómato segue sempre sendo o que é. Não existe verdadeiramente. Porque no autómato não há nenhuma distância de si ao mundo, de si a si, não há verdadeiramente nenhum “si”. Só o humano é uma dobra, uma reflexão de si sobre si: uma distância que é tudo, e que por isso mesmo pode ser nada quando falta a peça decisiva, quando falta a chave em forma de coração que é a verdadeira chave do coração de cada um. Seja a rapariga que vende flores, o maquinar, o realizar filmes, enfim: a chave é o sonho, ou melhor, é a possibilidade de realizar sonhos, ou melhor ainda, é a realização do sonho que a cada um orienta. Porque cada um anda aí pelo mundo, não como um autómato, mas como quem anseia realizar-se.

Conclusão. O autómato, uma vez concluído, está feito. Está aí todo, com todas as suas peças: cumpre a sua função. Quebrado ou não quebrado, está feito e acabado. O humano encontra-se sempre inacabado. Não tem uma função imediata, sem distância relativamente ao seu existir: existir é para o humano cumprir-se no sentido em que não está ainda realizado. Falta-lhe algo. Radicalmente. Mas há uma certa semelhança entre o humano e os autómatos: ambos podem estar quebrados. O humano, contudo, tem um relacionamento específico com o seu modo de estar quebrado ou em concerto com a vida. Um relacionamento que, mais uma vez, o distingue dos autómatos.
Quando o filme termina todas as pontas foram unidas sem recurso a um deus ex machina. No desenlace reconhecemos o que até aí representava dificuldades. O que parecia caótico era-o apenas por ignorância nossa. O final é feliz, a mensagem é optimista – mas não de um optimismo pobre. Pelo contrário. Este é um filme profundo sobre o sentido da vida, sobre a força que é preciso ter-se para acreditar. É um filme sobre a resistência sem a qual não se pode fazer vigorar nenhum sentido. Hugo mostra-nos que o sentido é uma obra, talvez a mais fundamental, porque sem resistência para isso, e sem coragem para o fazer eclodir, nada mais chega alguma vez a importar. É um filme que mostra que o questionamento pelo sentido da existência é o mais importante porque está sempre lá, mesmo quando não vem à tona, mesmo quando somos esquecidos pelos nossos pensamentos. Porque só se esquece a pergunta pelo sentido da existência quando a existência parece ter sentido: e é aqui que Hugo nos faz questionar se não nos faltará uma peça, se não nos estaremos a deixar ficar para trás na ânsia de ir para a frente.
A invenção de Hugo – ou a maquinação/máquina de Hugo, recuperando o sentido grego – é um filme sobre a possibilidade de tornar disponível o indisponível, o inexistente em existente, o sonho em vida. Porque inventar é criar dispositivos, é disponibilizar aberturas de realização de si mesmo: é a possibilidade de ser; é inventar-se a si mesmo. A invenção de Hugo, afinal, é a sua própria vida. Daí o cuidado que essa invenção lhe exige: "mais valia um minuto na vida, que cem anos de vida.”[iv]

O filme é delicioso.


[i] Vide: Eliano, Hist. Anim., VII, 39. Texto grego disponível aqui. Tradução latina aqui.
[ii] Cf. Poética, 1454a 28 – 1454b 8. Um dos exemplos dados por Aristóteles é provavelmente o episódio relativo a Ifigénia Áulida – o texto grego é debatido pelos entendidos: a hipótese que granjeia mais concordância parece ser a de que Aristóteles se referia à Ilíada (ἐν τῇ Ἰλιάδι), II, 155ss. (neste passo Hera incita Atenas a intervir junto de Ulisses no sentido de que este retenha os marinheiros, convocando-os a não regressar a casa e a permanecerem na guerra contra Tróia); no entanto, Else sugere que a referência é a Ifigénia Áulida (ἐν τῇ <ἐν> Αὐλίδι) – vide ELSE, Gerald F., Aristotle’s Poetics: The Argument, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 19632, p. 472. De qualquer forma, tratam-se de exemplos em que um deus intervém na trama. No caso relativo a Ifigénia essa intervenção acontece propriamente no desenlace de uma tragédia.
[iii] Vide Menander, Θεοφορουμένη, Fr. 5.
[iv] Citado de Raul Brandão, Húmus, frenesi, Lisboa, 2000, Dezembro 5, p. 66.



terça-feira, 13 de março de 2012

Káiros, kairós

A propósito de tempo e oportunidade...


Καιρός / καῖρος – tempo oportuno, momento favorável; oportunidade, ocasião; momento propício, tempo como na expressão “é tempo de fazer a colheita”. Os antigos tinham vários termos que usavam para se referirem àquilo que os nossos contemporâneos referem pelo termo tempo. Por outras palavras, distinguiam diferentes tempos. Ver, por exemplo: ELIADE, Mircea, Tratado de História das Religiões, Asa Editores, Rio Tinto, 2004, 5ª edição, p. 481 s. O termo καιρός designa aquela noção muitas vezes identificada no termo do sânscrito ksana (vide idem, Imagens e Símbolos, Martins Fontes, São Paulo, 1996, 1ª ed., 2ª tiragem, pp. 76-79, 166-172. Nesta noção estão em jogo as ideias de momento favorável a uma execução, tempo próprio de uma actividade, tempo dedicado, vocacionado, destinado, doador de sentido. O momento oportuno é a hora propícia, tempo de plenitude, de realização, de consumação. O momento favorável não é repetível, acontece e, ou é capturado, cumprido, ou desperdiçado – com consequências tremendas para quem recebeu e para quem deixou escapar a oportunidade. Não se trata, portanto, de um tempo cronológico, de um continuum de momentos vazios preenchidos com o que de cada vez é o caso. Não. Neste sentido, o καιρός não é um tempo histórico, mas as consequências que advêm da forma como é aberto são avassaladoras para aquilo que doravante será o caso. O tempo cairótico não é um tempo banalizado, vulgar, à-mão de semear: pelo contrário, exige ao humano um modo próprio de como se acercar dele. Sendo um tempo de cumprir, é um instante de plenitude, doador de sentido, que enforma tudo o que se foi e o como do que se vai ser. É um momento de revelação, de aclaramento, de esclarecimento do ser consigo mesmo: um momento doado, uma luz dispensada que chega e, como um relâmpago, se espraia pela vida enquanto totalidade. Perder o momento é, neste sentido, perder a vez de ser o que se tinha desde sempre, e para sempre, para ser. Significa que no καιρός o sujeito tem a oportunidade de se cumprir, de ser em conformidade consigo mesmo, tanto quanto possível, sendo que esta conformidade extravasa o próprio tempo cronológico. Desta forma pode dizer-se que o tempo cairótico é atemporal: fonte de sentido, de compreensão, espraia-se e toca o mundo da vida, faz vibrar a vida num vibração querida, sempre desejada. Não interessa se (tentando falar do momento cairótico como se fala do tempo cronológico) essa conformação, essa homogeneidade entre sujeito e mundo, passa. Pois no momento em que é cumprindo-se a si mesmo o sujeito cumpre-se na vida, realiza-se, faz vida: ilumina o caminho percorrido e a percorrer. Neste sentido, καιρός é instante de iluminação, momento pelo qual vez luz ao mundo, tempo de ganho. Mas na noção de καιρός está patente essa amplitude que vai do ganho absoluto à perda total: do resgate, à falência de si; da iluminação, da salvação, à escuridão, à condenação. Porque o tempo cairótico exige um trato adequado, uma apropriação do que está em causa naquilo a que diz respeito. Ora, a utilização comum do termo καιρός respeita, precisamente, ao tempo próprio de uma determinada coisa, o qual exige um manuseamento. Nas colheitas, como na vida, há um tempo propícia destinado a cada tarefa. E este tempo é oportunidade, é abertura, é portanto transporte: que se pode apanhar ou não, que se pode saber abrir ou não. Na noção de καιρός está compreendido este sentido de medida adequada, trato devido, devida proporção, porção bem medida, aptidão. Na verdade, o momento oportuno exige o conhecimento da natureza daquilo a que diz respeito. Cada coisa tem o seu tempo, e cada coisa deve ser cuidada de uma maneira própria. Importante para perceber o termo καιρός é o uso que dele foi feito na medicina. Na lida em vista ao tratamento de uma doença mortal há um momento crítico em que está indeciso o que virá a ser o caso: a morte ou a cura. Esse momento é o momento certo, irrepetível, em que um tratamento específico, por exemplo uma certa solução, deve ser ministrada com vista a obviar a doença. Perder esse momento ou, de qualquer forma, não executar os procedimentos propícios da devida maneira, implicará a morte do paciente. A vida do paciente está em jogo, indecisa, dependente do trato adequado, do manuseamento devido. Esse momento é único, mas também fugaz: urge. A urgência do καιρός era um aspecto sobejamente reconhecido pelos gregos, mas deixamos aqui apenas uma citação (Píndaro, Odes Píticas, IV, 286): “Ὁ γὰρ καιρὸς πρὸς ἀνθρώπων βραχὺ μέτρον ἔχει” (o momento oportuno é, para o humano, uma medida curta). Quem sabe não adia uma decisão, não protela uma acção, mas também não precipita um projecto, não antecipa um agendamento. Adiar e precipitar são modos de deitar a perder a oportunidade.

Citações, traduções - excertos e fragmentos. Os gregos: citações

A propósito de citações:


δοκῶ γὰρ οὐδὲ διάδαλόν [κ᾿] ἦμεν, ποῖον ἀγαθὸν καὶ ποῖον κακόν, αἰ τὸ αὐτὸ καὶ μὴ ἄλλο ἑκάτερον εἴη· »» Dissoi Logoi, I, 11
»» De facto, parece-me não ser manifesto o que é o bem e o que é o mal, se são o mesmo e não diferentes entre si.

[Σωκράτης:] καὶ τόνδε δὲ αὖ σκόπει εἰ ἔτι μένει ἡμῖν ἢ οὔ, ὅτι οὐ τὸ ζῆν περὶ πλείστου ποιητέον ἀλλὰ τὸ εὖ ζῆν. »»  Platão, Críton, 48 b
»» Sócrates: e revê se continua a manter-se para nós, ou não, que não é viver que é mais necessário, mas viver bem.


ὀρθῶς γάρ ἐστι τῶν νέων πρῶτον ἐπιμεληθῆναι ὅπως ἔσονται ὅτι ἄριστοι, ὥσπερ γεωργὸν ἀγαθὸν τῶν νέων φυτῶν εἰκὸς πρῶτον ἐπιμεληθῆναι, μετὰ δὲ τοῦτο καὶ τῶν ἄλλων. »» Platão,  Êutifron , 2d
»» pois certamente é correcto primeiro cuidar dos jovens de maneira que venham a ser os melhores, tal como um bom lavrador justamente cuidará primeiro das plantas jovens, e depois disso também das outras.


καὶ πρῶτον μὲν ψεύδεσθαι ὡς δίκαιόν ἐστι λεξῶ καὶ ἐξαπατᾶν.»» Dissoi Logoi, III,2
»» E primeiro direi que mentir e enganar é justo.

τῷ δὲ διεφθαρμένῳ δι᾽ ἡδονὴν ἢ λύπην εὐθὺς οὐ φαίνεται ἀρχή, οὐδὲ δεῖν τούτου ἕνεκεν οὐδὲ διὰ τοῦθ᾽ αἱρεῖσθαι πάντα καὶ πράττειν: »» Ética a Nicómaco, 1140b16-19
»» Mas, àquele cuja clareza esteja corrompida pelo prazer ou pelo sofrimento não aparece um princípio, e nem percebe que deve escolher e fazer tudo em vista desse fim e para ele.



τῶν μὲν γὰρ πραγμάτων ᾗ ἔχει ἔσφαλμαι, καὶ οὐκ οἶδ᾽ ὅπῃ ἐστί. […]καίτοι τί μεῖζον ἀμαθίας τεκμήριον ἢ ἐπειδάν τις σοφοῖς ἀνδράσι διαφέρηται; ἓν δὲ τοῦτο θαυμάσιον ἔχω ἀγαθόν, ὅ με σῴζει: οὐ γὰρ αἰσχύνομαι μανθάνων, ἀλλὰ πυνθάνομαι καὶ ἐρωτῶ καὶ χάριν πολλὴν ἔχω τῷ ἀποκρινομένῳ, καὶ οὐδένα πώποτε ἀπεστέρησα χάριτος. […] σὺ οὖν χάρισαι καὶ μὴ φθονήσῃς ἰάσασθαι τὴν ψυχήν μου: πολὺ γάρ τοι μεῖζόν με ἀγαθὸν ἐργάσῃ ἀμαθίας παύσας τὴν ψυχὴν ἢ νόσου τὸ σῶμα. »» Platão, Hípias Menor, 372b – 373a
»» Pois no que ao que se passa diz respeito eu falho, sem saber que caminho tomar. […] E ainda assim que maior indício de estupidez pode haver do que quando se trilha um caminho diferente do dos homens sábios? Mas possuo este bem incomum, o qual me poupa: não me envergonho por aprender, mas aprecio apender, pergunto e agradeço muito àqueles que me respondem, e a nenhum deles alguma vez espoliei de gratidão! […] Portanto, faz-me um favor e não recuses curar a minha alma: porque um muito maior bem me fazes dando fim à estupidez da minha alma do que a uma doença do corpo.



Πρό τω προθύρωη τω αύτοΰ γράψας ύπήρχε Πλάτωη
Μηδείς άγεωμέτρητος είσίτω μου τήν στέγην
Τουτέστιν, άδικος μηδείς παρεισερχέσθω τήδε 
Ίσότης γάρ καί δίκαιόν έστι γεωμετρία. »» Tzetzes, Chiliades, VIII, 974 - 7
»» Na sua porta de entrada Platão tinha escrito
Ninguém que não seja geómetra entre para minha casa,
Ou seja, ninguém injusto entre para aqui,
Pois, a Geometria é Igualdade e Justiça.



[Ζεύς] δῆσε δ᾽ ἀλυκτοπέδῃσι Προμηθέα ποικιλόβουλον
δεσμοῖς ἀργαλέοισι μέσον διὰ κίον᾽ ἐλάσσας:
καί οἱ ἐπ᾽ αἰετὸν ὦρσε τανύπτερον: αὐτὰρ ὅ γ᾽ ἧπαρ
ἤσθιεν ἀθάνατον, τὸ δ᾽ ἀέξετο ἶσον ἁπάντη
νυκτός ὅσον πρόπαν ἦμαρ ἔδοι τανυσίπτερος ὄρνις. » Hesíodo, Teogonia, 521-525
»» [Zeus] prendeu com correntes Prometeu astuto,
Amarras dolorosas apertadas a meio de uma coluna;
E sobre ele lançou uma águia de longas asas: o seu fígado
Imortal comia, mas este crescia outro tanto novamente
À noite quanto todo o dia o devorasse a ave de longas asas.


δοιοὶ γάρ τε πίθοι κατακείαται ἐν Διὸς οὔδει
δώρων οἷα δίδωσι κακῶν, ἕτερος δὲ ἑάων: » Homero, Ilíada, XXIV, 527-528
»» Pois duas jarras jazem no chão de Zeus,
     De uma ele nos concede dádivas, da outra as pragas.”



ἔοικε δή, […], ἄνθρωπος εἶναι ἀρχὴ τῶν πράξεων » Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1112b30
»» Parece pois, ser o humano princípio das acções.

οὐ γὰρ ἂν εἴη βουλευτὸν τὸ τέλος ἀλλὰ τὰ πρὸς τὰ τέλη »  Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1112b30
»» Certamente o fim não é deliberado, mas tão somente os meios para os fins.

εἰ δὲ ἀεὶ βουλεύσεται, εἰς ἄπειρον ἥξει. »  Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1113a1
»» Se sempre se deliberar, no infinito ficaremos.
»» Se se deliberar sempre, progredir-se-á indefinidamente.

σωφρονεῖν ἀρετὴ μεγίστη » Heraclito, frag. B 112 (parcial)
»» Conhecer com o coração é a maior excelência.
»» Ser sensato é a maior excelência.


Γελᾷ δ' ὁ μωρός, κἄν τι μὴ γέλοιον ᾖ » Menander, Sententia Mono, 1, 108
»» Os estúpidos riem, mesmo quando não há nada de que rir.

καὶ τοῦ πεινῶντος καὶ διψῶντος σφόδρα μέν, ὁμοίως δέ, καὶ τῶν ἐδωδίμων καὶ ποτῶν ἴσον ἀπέχοντος· καὶ γὰρ τοῦτον ἠρεμεῖν ἀναγκαῖον » Aristóteles, De Caelo, 295 b 32-34
»» E aquele que tem fome e sede em excesso, mas homogeneamente, e da comida e da bebida está igualmente afastado: certamente também será forçado a ficar parado

ὦ φίλοι ἀνέρες ἔστε καὶ ἄλκιμον ἦτορ ἕλεσθε » Homero, Ilíada, V, 529
»» Amigos, sede homens e tomai o bravo coração.
»» Amigos, sede homens e conquistai o coração guerreiro.

Ὁ γὰρ καιρὸς πρὸς ἀνθρώπων βραχὺ μέτρον ἔχει » Píndaro, Odes Píticas, IV, 286
»» O momento oportuno é, para o humano, uma medida curta.
»» Aos olhos do humano, o momento oportuno é curto.


ἡ θνητὴ φύσις ζητεῖ κατὰ τὸ δυνατὸν ἀεί τε εἷναι καὶ ἀθάνατος » Platão, Symposium/Banquete, 207d1
»» a natureza mortal busca, conforme o seu poder, ser para sempre e imortal.
»» a natureza que morre busca, segundo a sua força, ser para sempre e sem morte.
»» a natureza capaz de morrer busca em conformidade às suas possibilidades ser para sempre e livre de morte.


πάντες ἄνθρωποι τοῦ εἰδέναι ὀρέγονται φύσει » Aristóteles, Metafísica, 980a21
»» Todos os humanos anseiam conhecer por natureza.

»» Todos os humanos naturalmente desejam conhecer.

μετὰ φόβου καὶ τρόμου τὴν ἑαυτῶν σωτηρίαν κατεργάζεσθε » Paulo, Epístola aos Filipenses, II, 12
»» Trabalhai na vossa salvação com temor e tremor.
»» Obrai a vossa própria preservação com medo e tremor.


ὡς οὐ δικαίως θάνατον ἔχθουσιν βροτοί, / ὅσπερ μέγιστον ῥῦμα τῶν πολλῶν κακῶν » Ésquilo, frag. 353 Nauck
»» Então não justamente odeiam a morte os homens mortais, pois é a maior defesa dos seus muitos males.
»» Os mortais odeiam a morte injustamente, pois ela é maior defesa contra os seus muitos vícios.


βίου πονηροῦ θάνατος εὐκλεέστερος » Ésquilo, 90 Nauck
»» A morte tem melhor fama que uma vida de trabalhos.
»» A morte tem melhor reputação que uma vida penosa.



χρόνος γὰρ εὐμαρὴς θεός » Sófocles, Electra, 179
»» O tempo é o deus facilitador.
»» O tempo é o deus que tudo amaina.

Ὁ βίος βραχὺς, ἡ δὲ τέχνη μακρὴ, ὁ δὲ καιρὸς ὀξὺς, ἡ δὲ πεῖρα σφαλερὴ, ἡ δὲ κρίσις χαλεπή » Pitágoras, Aforismas, I, 1
»» A vida é curta, a ciência é longa, a oportunidade é estreita, a experiência é íngreme, a escolha é difícil.


ἦθος ἀνθρώπωι δαίμων » Heraclito, 119 Diels
»» O carácter é o destino do humano.

τὸν γὰρ ὡς ἀληθῶς ἀγαθὸν καὶ ἔμφρονα πάσας οἰόμεθα τὰς τύχας εὐσχημόνως φέρειν καὶ ἐκ τῶν ὑπαρχόντων ἀεὶ τὰ κάλλιστα πράττειν » Ética a Nicómaco, 1101a1-3
»» Pensamos por isso que aquele que for verdadeiramente bom e avisado suportará toda a espécie de fortuna dignamente e a partir do que dispõe agirá sempre da melhor maneira.

ζόης πονηρᾶς θάνατος αἱρετώτερος » Ésquilo, 401 Nauck
»» É preferível a morte a uma vida de trabalhos.
»» Está-se mais disposto a escolher a morte que uma vida penosa.
»» É preferível a morte a viver penosamente.

ζόης πονηρᾶς θάνατος εὐπορώτερος » Ésquilo, 401 Nauck, Stob.
»» É mais fácil suportar a morte que uma vida de trabalhos.
»» É mais fácil suportar a morte que uma vida penosa.
»» É mais fácil suportar a morte que viver penosamente.

πᾶς γὰρ ὁ βίος τοῦ ἀνθρώπου εὐρυθμίας τε καὶ εὐαρμοστίας δεῖται » Platão, Protágoras, 326b
»» Tudo na vida do humano precisa de bom-ritmo e boa-harmonia.

δόξειε δ᾽ ἂν τὸ νοοῦν ἕκαστος εἶναι ἢ μάλιστα. συνδιάγειν τε ὁ τοιοῦτος ἑαυτῷ βούλεται: ἡδέως γὰρ αὐτὸ ποιεῖ: » Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1166a.22-24
»» Iria parecer que o compreender é cada um, ou principalmente. Deseja atravessar em conjunto consigo mesmo: fá-lo verdadeiramente com prazer.
»» Então parece que o compreender é o si mesmo de cada um, ou pelo menos a sua maior parte. Deseja viver sentindo-se consigo e sente verdadeiro prazer nisso.


Todas as traduções aqui colocadas são de Luís Mendes

segunda-feira, 12 de março de 2012

Do Riso e da Loucura, (Pseudo-)Hipócrates

A propósito de Loucura...

                                           A doença que a todos acomete... paradoxo? talvez não.


Do Riso e da Loucura

Autor: (Pseudo-)Hipócrates
1ª edição, Lisboa, Julho de 2009: Padrões Culturais Editora
Tradução: Largebooks; Prefácio: José Manuel Jara


Do Riso e da Loucura trata-se de um conjunto de textos, escritos como se fossem cartas, uma dirigida a Hipócrates, sete enviadas por Hipócrates.
Este pequeno livro é mais profundo do que aparenta à primeira vista. O pretexto para a redacção das cartas é a suposta doença (νόσος) de Demócrito. A descrição dos sinais de doença envolve indícios preocupantes de loucura (μανία) e melancolia (μελαγχολία): Demócrito esquece-se de “tudo e até dele mesmo”, “permanece agora acordado noite e dia, descobrindo em qualquer coisa grande ou pequena motivo para rir, e julgando que a vida não tem qualquer valor”. “Levanta-se frequentemente à noite, e sozinho parece cantar suavemente”.
Enfim, Demócrito dá sinais de misantropia, alienação, apatia, sarcasmo. O Senado da cidade Abdera decide por isso solicitar auxílio ao grande Hipócrates, conhecido pela sua perícia no tratamento adequado das más-disposições. Os abderitas temem por aquele que dá renome à cidade e por isso querem o seu sábio saudável. Na verdade, suspeitam que Demócrito tenha enlouquecido devido à sua grande sabedoria e receiam que a sua demência se espalhe a toda a cidade.
Curiosamente, Hipócrates não fica convencido acerca da doença de Demócrito. Todavia, Hipócrates não menospreza o mal-estar que poderá estar na origem do comportamento dessituado de Demócrito, pelo contrário, coloca a hipótese de tal mal-estar se justificar precisamente por aquilo que o sábio julga saber. A questão é, portanto, averiguar em que medida aquilo que Demócrito julga saber tem legitimidade: tratar-se-á de sabedoria ou de loucura? É que, ao contrário do que supõe o Senado de Abdera, a excelência nunca é prejudicial, “o excesso de virtude nada tem de pernicioso”. Portanto, Hipócrates passa a considerar um cenário possível segundo aquilo que lhe parece – esse cenário é a possibilidade de a enfermidade de Demócrito ser uma ilusão nos olhos dos abderitas.
A loucura do sábio pode muito bem ser um equívoco nos olhos de quem, padecendo de falta de sabedoria julga a alheia como supérflua. Pode muito bem ser o caso de que os abderitas sejam maioritariamente loucos, ou pelo menos de alguma forma doentes sem o saberem. O ponto é então descortinar de que lado está a razão.
A hipótese considerada é importantíssima: pode acontecer que “o mundo inteiro esteja doente sem o saber”; se esse é o caso, então, na sua insensatez, na sua loucura, os homens vulgares não estão devidamente enraizados em chão seguro que lhes permita deter um ponto de vista adequado sobre o que de facto seja a loucura ou a virtude. Por outras palavras, supõem colher frutos maduros onde há podridão, colhem tormentos onde suspeitam haver boa fortuna, parecendo-lhe que o mar amaina lançam-se em águas tumultuosas. Estão perdidos e pensam saber quem são. Portanto, se a hipótese lançada por Hipócrates estiver correcta, Demócrito pode muito bem não estar louco: serão os seus concidadãos que, na incapacidade de identificar aquilo que de facto é o caso, tomam o sábio por louco; “condenam aquele que lhes seria de maior proveito”.
Estará, então, Demócrito louco? Ou estarão os abderitas equivocados? A dúvida é ainda mais irónica pelo facto de o adjectivo “abderita” ser usado na Antiguidade, em sentido pejorativo, como sinónimo de limitado, ingénuo, parvo, estupido. Assim, trata-se de saber se é Demócrito o louco, ou se são os loucos que são incapazes de reconhecer a sabedoria. Mas se o mundo inteiro está doente, o que é que distinguirá a loucura corrente dos abderitas relativamente à situação de Demócrito? Demócrito poderá não estar doente nem louco da maneira que os abderitas supunham, mas isso significa que ele está são, ou apenas que não está mais louco ou doente que os restantes?
Na verdade há uma diferença no ponto de vista de Demócrito: a desocultação do aspecto louco da vida quotidiana do homem vulgar. Demócrito está ciente da necessidade de adquirir uma recta técnica de viver que permita ao humano viver na justa medida das suas possibilidades de ser. Mas a “verdade exacta, ninguém a conhece, ninguém a testemunha”. Com estas palavras Demócrito deixa em aberto o caminho da procura que é sempre tempo de fazer, porque nunca se está na posse definitiva.

O livro editado em português indica Hipócrates como seu autor, mas na verdade é mais provável que estas cartas tenham sido redigidas por Pangetus. De qualquer modo, com toda a probabilidade, não pertencem a Hipócrates, nem ao seu tempo. Escrito nos inícios do Império Romano, é habitual chamar ao seu autor Pseudo-Hipócrates. Infelizmente, a versão portuguesa parece ter sido feita a partir da tradução francesa de Yves Hersant, Sur le Rire et la Folie, Rivages, 1989. A selecção não contém todos os escritos relevantes do Corpus Hippocraticum sobre a loucura ou a melancolia, mas apenas as cartas relativas ao caso de Demócrito. Além disso não contém a carta do próprio Demócrito.
Para ler o texto grego e comparar com uma tradução francesa (segundo edição de Littré), clique AQUI.

quinta-feira, 8 de março de 2012

COMO UMA SOMBRA, OS DIAS..., de AV Carvalho

COMO UMA SOMBRA, OS DIAS...

A vida é tão frágil... uma ténue espuma, uma pétala colorida, uma nuvem branca. A vida é frágil e por isso é bela.

A fragilidade é bela, como é frágil a beleza e difícil a resiliência e constante a dificuldade em manter a vida firme, hirta, robusta - viva!

Não vive um homem mais que uma saudade. Todo ele é névoa, céu, abraço! Um sonho, um suspiro, uma vigília nocturna, um morto ambulante... assim vai homem, ledo, inseguro, pretensioso, cego.

Ver e não ver; não ver e ver. Ver ou não ver: eis a questão oh mortos da vida airada! Que fostes vós, quem fostes vós, homens? Pudestes ser deuses e fostes só homens; pudestes ser homens e tornaste-vos feras: selvagens, sem arado, incultas, estéreis como os vossos filhos.

A. V. Carvalho
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