quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Notas à Análise filosófica do filme "Melancolia", de Lars von Trier

Notas por Luís Filipe Fernandes Mendes


[i] O motivo do casamento repete-se: a primeira parte passa-se após o casamento, durante a festa, mas o mesmo motivo é desde logo sugerido pela música de início do filme – trata-se de Tristão e Isolda, de Richard Wagner; uma das obras de pintura mostradas no filme é o quadro Ophelia, de John Millais. Quer o Tristão e Isolda, quer o Ophelia remetem para histórias tristes de amor e morte. Isolda morre de tristeza pela morte de Tristão envenenado (mas que, na verdade, morreu de desespero); Ofélia é a amada e a amante de Hamlet, o príncipe dinamarquês que sobrevive a uma estória de morte e tragédia – Ofélia suicida-se no decurso do drama Hamlet, na sequência do assassinato do seu pai às mãos de Hamlet que pensara estar a matar o assassino do próprio pai. O quadro de Millais é quase perfeitamente reproduzido pela imagem de Justine que passa ainda na introdução do filme, e que foi utilizada para publicitar o mesmo. Comparar Ophelia e Justine.
[ii] Encontramos aqui, claramente, uma simbologia forte, importante para a dialética do filme: o castelo/palácio simboliza o passado do qual é representante, mas sobretudo as tradições ainda presentes e das quais é um ídolo. A sobriedade das suas linhas, corresponde à sensatez de John e Claire. O cunhado de Justine mostra-se desde início como o homem integrado nos negócios, bem sucedido nos negócios da vida quotidiana, dado ao cálculo do dinheiro. Tudo isto é o que Justine desprezará, negará.
[iii] Isto não significa, obviamente, que não existam muitas semelhanças entre a angústia e a melancolia, enquanto disposições fundamentais. E, na verdade, a apresentação do fenómeno da melancolia numa forma de vida melancólica, envolve necessariamente momentos equívocos e momentos de passagem entre disposições. Além disso, melancolia, tédio e angústia, sendo disposições fundamentais, não podem ser simplesmente despedidas. Deve dizer-se que há também uma certa angústia em Justine, não só momentos angustiados, mas mesmo uma angústia profunda da qual o próprio tédio é mero indício. O que aqui queremos dizer é simplesmente que o filme visa expor a vida de uma personagem melancólica – é essa a sua regência.
[iv] Cf. SartreLa Nausée, Edition Gallimard 1938, pág. 174. Apresentamos a nossa tradução: “Que faço aqui? Que me deu para me pôr a discorrer sobre o humanismo? Por que está esta gente aqui? Por que comem estas pessoas? É verdade que não sabem que elas próprias existem. Tenho vontade de partir, de ir para qualquer parte onde eu estivesse verdadeiramente no meu lugar, onde me encaixasse… Mas o meu lugar é em parte nenhuma; eu estou a mais.” O itálico é do autor. No original está je suis de trop: o verbo être é o verbo ser/estar. Em francês, portanto, diz-se eu estou/sou a mais ou de mais. Percebemos que estas poderiam ser as palavras de Justine: sente-se uma expatriada, desterrada, sem-casa. Possui uma relação falhada com a vida: a sua frustração é evidente, sobretudo nesta primeira parte do filme, durante a qual afirma, ou tenta afirmar perante os outros o seu amor a Michael, o seu desejo de comemorar, a sua vontade de estar alegre, enfim, o seu amor ao mundo. O ser de mais no mundo em que não se integra não é qualquer coisa de circunstancial: não se trata de uma qualquer reação ao casamento, ou a qualquer outra situação em particular; Justine está a mais, o seu lugar é em parte nenhuma. Na segunda parte, realça-se outra vertente da melancolia que, entregue a si mesma, ama o mundo amando-se a si mesma. Comparar com Bernardo Soares em O livro do Desassossego, trecho 293: “Sofrer muito pode dar a ilusão de ser o eleito da Dor.” Ou seja, um carácter distintivo da melancolia é o amor castrado, ou melhor, o amor que não pode ser correspondido –não há sequer essa possibilidade. O paradoxo amar a vidaser infeliz na vida é apenas aparente, como é evidente. O melancólico ama isso de que está longe, ama isso pelo que chora, pelo que anseia. Assim se explica que Justine, na segunda parte, seja mais uma vez frustrada ao provar o rolo de carne que lhe sabe a cinzas. Frustrada porque ela ama isso que está cancelado.
[v] Mas Justine não quer fazer cenas. Desculpa-se perante a irmã: “I smille and smille and smille.” O seu sorrizo soa a falso, parece trair todo o ambiente festivo, enganar quem ali está por ela. Em vão tenta manter-se unida, organizada: “I have to put myself together”, afirma deitada na cama enquanto Claire procura resgatá-la ao cansaço. Há em Justine um esforço de preservação e saudades de ser como sempre foi: “[Stealbreacker] is exactly who I am” – diz ao seu sobrinho.
[vi] O seu mundo devém um caos. Por oposição a κόσμος [kosmos], o χάος [kháos] é a desordenação, a própria desordem de tudo. O caos é a deformação, a destruição das formas, é desfiguração do rosto de tudo quanto há.
[vii] Por oposição ao que existe em ordem a isto ou àquilo. No caos destruiu-se o nexo que liga cada momento ao momento seguinte – na verdade, a própria cadeia significativa que permite atravessar o tempo, justificar os momentos, foi destruída. Justine age de forma desordenada, mesmo desordeiramente, pois a ordem foi destruída, o modo habitual de ligar o que a cada vez se faz foi submergida. Assim, o seu comportamento choca as expectativas dos convidados, de Michael, mas também do espectador. O que Justine faz não é o que seria de esperar na situação em que ela se encontra. Compreenderíamos que ela agisse de forma desconexa se já soubesse que o mundo iria acabar em breve. Mas ela ainda não o sabe.
[viii] Cf. HölderlinElegias, Assírio & Alvim, Lisboa, Abril de 2000, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, pág. 39: “Por isso ando errante e é forçoso que viva como/ As sombras e tudo o mais há muito perdeu o sentido.” Justine erra pela vida, num abandono triste. Ela sente-se abandonada, num mundo abandonado, que de facto foi abandonado por ela, pois não mais habita nele. Olha o mundo e não se vê mais aí – o mundo sem vida mostra-se friamente dessacralizado, o que antes de mais nada significa sem valor. Nas palavras de Hölderlin: “… tudo o que é divino me falta./ É este o meu mal, sei-o, uma maldição paralisa-me/ Os tendões e abate-me ao menor movimento,/ …./ Ai! E inútil e vazio como paredes de uma prisão o céu/ É um peso excessivo que paira sobre a minha cabeça!” O valor é o sentido das coisas enquanto elas fazem algum sentido para o sujeito. E sempre dizem alguma coisa, ainda que, como aqui, o seu dizer seja mudo – num mundo em que nada há digno de nota, nada há a dizer. O dizer alguma coisa é o modo delas tocarem no sujeito a sua disposição, é o seu modo de jogarem com ele, com as suas modulações, ainda que, como aqui, o que vibra seja o nada. Ou melhor, o “coisa nenhuma” do vazio preenche as coisas e abate-se com todo o seu peso excessivo sobre Justine. A relação da protagonista com o mundo é uma relação impregnada do sentimento paradoxalmente apaixonado e indolente, horrivelmente aborrecido de pena de ter nascido. Um arrependimento que corrói mais devido ao facto de se dirigir a um acontecimento em que não se tomou parte, quando afinal se era precisamente a parte mais interessada. Portanto, em Justine manifesta-se uma desarmonia profunda relativamente ao mundo, à vida: não relativamente a uma certa combinação das coisas, nem a um determinado curso da vida, mas sim relativamente ao mundo e à vida na sua totalidade. Daí o paradoxo: uma tempestade de significado em tudo, que por todo o lado se impõe, tiraniza, mas o significado que desta forma tiraniza é a negação do valor de tudo. Assim, Justine vive uma vida que não tem valor, que, em propriedade, está morta. Cf. SeptuagintaGénesis, 2,17: “η δ´ αν ημερα φαγητε απ´ αυτου θανατω αποθανεισθε” – como se vê, a fórmula grega θανάτ ποθανεσθε repete a ideia de morte: morrer de morte – de morte irás morrer. A Vulgata verte para: “in quocumque enim die comederis ex eo morte morieris”. Também aqui há um reforço da ideia de morte em morte morierismorrerás de morte. Lutero traduz assim: “denn welches Tages du davon ißt, wirst du des Todes sterben”. Ora, sterben significa morrer, e Tode é a morte, ou seja: morrer de morte. A The King James Bible apresenta: “for in the day that thou eatest thereof thou shalt surely die”, em que o θανάτ ποθανεσθε foi substituído pelo reforço em “surely”, sendo esta também a tendência em português: “No dia em que comerdes dele, ficas condenado a morrer”, Bíblia Sagrada, Difusora Bíblica, Franciscanos Capuchinhos, Lisboa, 1993, tradução interconfissional; “porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás”, Bíblia Sagrada na Internet, Difusora Bíblica, em http://www.capuchinhos.org/biblia/index.php?title=Gn_2, acedido a 03-02-2012. Mas o que está no original, do qual a própria Septuaginta é tradução, é: “תָּמוּת מוֹת”, http://www.mechon-mamre.org/p/pt/pt0102.htm#16, acedido a 03-02-2012. E no hebraico מוֹת é morte e תָּמוּת é morrer. A expressão não diz que Adão quando comer da maçã, se o fizer, morrerá de imediato como que fulminado: indica sim qualquer coisa que parece vir a acontecer, estar por e para acontecer: morrer. Contudo o estar por, no entanto para, é uma situação em que o sujeito fica desde logo – não se diz que, por comer da maçã, num futuro longínquo Adão irá morrer, mas sim que, ao comer da maçã, ele fica nessa situação de morrer de morte. E é na situação em que Adão se colocou ao comer da maçã que cada um dos seus descendentes se encontra desde que nasce. O morrer não é qualquer coisa de vago e distante, mas algo em que já sempre se está. Por outro lado, aquilo de que se morrerá é identificado como morte. Não é que Adão fosse imortal até àquele momento em que comeu a maçã e, a partir daí, morresse ou se tornasse mortal – na verdade, seria o fruto da árvore da vida que daria a vida para sempre, e Adão nem sequer sabia da sua existência. Na expressão anuncia-se um estar-enquanto-se-morre, um estar-a-morrer-de-morte. É o que acontece com Justine: encontra-se a si mesma na circunstância de estar expulsa de casa, do paraíso, do seu verdadeiro lugar – o que se passa consigo é o cancelamento das possibilidades de vida, uma desvitalização de todas as possibilidades, uma vida desvitalizada, um morrer de morte, como muito bem diz o autor dos Diapsalmata (A, pseudónimo de Kierkegaard), Assírio & Alvim, coleção teofanias, Lisboa, abril, 2011, tradução de Bárbara Silva, M. Jorge de Carvalho, Nuno Ferro, Sara Carvalhais, pág.s 41-43: “A minha alma perdeu a possibilidade”, “vivo como um morto”.
[ix] Cf. Chateaubriand, François-René, René, Paris, Gallimard, 1971, pág. 160: “ Hélas ! j'étais seul, seul sur la terre ! Une langueur secrète s'emparait de mon corps. Ce dégoût de la vie que j'avais ressenti dès mon enfance revenait avec une force nouvelle. Bientôt mon cœur ne fournit plus d'aliment à ma pensée, et je ne m'apercevais de mon existence que par un profond sentiment d'ennui.” Ou seja: “Ai de mim! Estou só, só sobre a terra! Uma languidez secreta tomou posse do meu corpo. Este desgosto da vida que eu sentia desde a minha infância retornou com uma força nova. Logo, o meu coração não fornece mais alimento ao meu pensamento, e não me apercebia da minha existência senão por um profundo sentimento de tédio.” O termo ennui significa tédio, ausência de interesse, cancelamento do chamamento das coisas sobre o sujeito.
[x] Cf. O Livro do Desassossego, Bernardo Soares, trecho 247: “A vida prática sempre me pareceu o menos cómodo dos suicídios.” Se tudo é igual, se na verdade qualquer forma de vida é suicídio, então não faz sentido enveredar por uma vida prática, cujas condições de possibilidade estão canceladas. Como diz Bernardo Soares no trecho 310: “Todo o esforço é um crime, porque todo o gesto é um sonho morto.” Não é que o melancólico não tenha sonhos, mas está convencido da sua nulidade. Contudo, esta nulidade é mortal, fatal para a ação. Ora, em causa não está um simples saber académico, puramente teórico acerca da validade e do valor de toda a ação, mas sim a instalação de si numa disposição tal que dispõe o mundo como estando, em última instância, reduzido a cinzas. Em causa está sobretudo um acorde da alma – voltemos ao trecho 310: “Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia.” Numa disposição totalitária deste género, cada ação, cada pessoa é compreendida tipologicamente. John, Claire, Leon, etc., são personagens tipo, são símbolos, cada um deles representado, em última análise, uma forma de vida e todas elas estão por sua vez subsumidas no tudo é nada. Tudo é irrelevante, tudo é arrependimento, tudo é morte, tudo é suicídio. Nesta forma de ver as coisas, cada esforço de realização surge afinal como morte de um sonho e, na verdade, como mais uma forma de suicídio. Cf. Queirós, Eça, A Cidade e as Serras, editora Ulisseia, 1998 (5ª ed.), pág. 122: “Sendo tudo inútil, e não conduzindo senão a maior desilusão, que podia importar a mais rutilante actividade ou a mais desgostada inércia?” Assim, fazer esforço é apenas uma forma menos cómoda que outras possíveis de não fazer nada de significativo. Dormir, estar parado, é uma forma mais cómoda, menos trabalhosa de fazer aquilo que não se pode evitar fazer: nada. Cf. Diapsalmata, pág. 36: “Se me oferecessem todas as glórias do mundo ou todas as agonias do mundo, tanto me faria, eu não me viraria para o outro lado nem para as alcançar nem para fugir delas.” Pág. 30: “É, de facto, precisa uma grande ingenuidade para acreditar que, no mundo, servirá de alguma coisa clamar ou gritar – como se, com isso, o destino de uma pessoa mudasse.” Pág. 21: “Para que é que eu presto?”, “Quando me levanto de manhã, volto imediatamente outra vez para a cama.” Enfim, não há razão para seguir desejos ou fugir de mágoas, porque na verdade a vida está toda ela magoada. O que magoa Justine é a vida, e nada de entre o possível lhe oferece a oportunidade de alterar isso que é o decisivo. Não vale sequer a pena gritar, suplicar, reclamar seja do que for. O destino não muda, e isso a que ela está destinada é nada. A hipótese de escapar disso não é, na realidade, uma verdadeira possibilidade – essa é a forma como Justine sente o mundo e se sente a si própria: o mundo não oferece oportunidades, ela não tem possibilidade. Desejar mudar de vida, ou mudar qualquer coisa na vida é apenas fluir na ilusão de que se pode sair da condição irremediável em que se está. Cf. Baudelaire, Le Spleen de Paris: “Cette vie est un hôpital où chaque malade est possédé du désir de changer de lit. Celui-ci voudrait souffrir en face du poêle, et celui-là croit qu'il guérirait à côté de la fenêtre.” (“Esta vida é um hospital onde cada doença está possuída do desejo de mudar de leito. Este preferiria sofrer junto ao fogão, e aquele crê que recuperaria ao lado da janela.”) Mas afinal o que salvaria o melancólico seria encontrar-se "N'importe où! n'importe où! pourvu que ce soit hors de ce monde!" (“Não importa onde! não importa onde! desde seja fora deste mundo.” – texto original em http://baudelaire.litteratura.com/le_spleen_de_paris.php?rub=oeuvre&srub=pop&id=186, verificado em 03-02-2012). O reconhecimento de que nada no mundo pode consubstanciar uma alteração significativa da condição do sujeito é profundo e totalitário, nada escapa a esta nadificação. E é este nada que é a forma da tristeza, porque na verdade o melancólico continua a desejar, continua a querer, continua a amar. O cancelamento ocorre sobre a relação, ou seja, o melancólico dá consigo no estádio original de ser desejo, mas sem a possibilidade de se realizar enquanto tal. Ver a este respeito a letra da canção de António Variações, Estou Além: nesta letra reconhece-se a forma humana de ser em constante ansiedade (“Não consigo dominar/ Este estado de ansiedade”), uma constante pressa de chegar, na verdade uma constante pressa de sentir ao chegar; a vontade de partir compreende-se a partir da pressa de sentir ao chegar; ora, o que acontece com Justine não é que deixe de ser insatisfeita, deixe de se sentir ansiosa, ou deixe de sentir que está a perder; pelo contrário, essa forma de insatisfação, de ansiedade, de sentir que está a perder torna-se mais gritante, mais evidente pelo facto de antecipar que não há nada para sentir, ou melhor, que há sempre o mesmo para se sentir, sendo que isso que há sempre para se sentir, independentemente de se partir em novas aventuras, ou de se ficar a dormir, é o sentimento de se estar a perder¸é a insatisfação permanente, é ansiedade por ir sempre além, por ter sempre mais, ou por ir sempre onde ainda se não foi, ter o que ainda se não tem, possuir o que não se possui, apesar de nada haver a possuir, a ter ou a gozar que possa satisfazer de facto e plenamente o sentimento de estar a perder; a satisfação é transitória entre estados de insatisfação, na realidade é ilusória; o constante, permanente, real é o estado de ansiedade, ou seja, isso de que se foge e de que na maioria das vezes, senão sempre, não se sabe bem o que seja (“Não sei de que é que eu fujo/ Será desta solidão”); o melancólico não deixa de, como diz Variações, “continuar a procurar o meu mundo, o meu lugar”, mas tal como Antoine Roquentin (em La Nausée – ver supra), reconhece que “o meu lugar é em parte nenhuma”. Pode dizer-se que há uma ânsia de que as coisas fossem todas de outra forma. Justine deseja que as coisas fossem diferentes, que o mundo fosse outro, ou que ela fosse outra: é isso que ela reconhece languidamente a Michael no final da noite do seu casamento. Este reconhecimento marca em Justine a aceitação disso, do destino de que se fala nos Diapsalmata e que apenas se tem que aceitar não valendo a pena discutir sobre o assunto (pág. 30: “Aceite-se o destino tal como é oferecido e evitem-se todas as prolixidades”). Deixemos aqui falar Werther, entrada de 21 de junho de 1771: “É extraordinário isto! Quando aqui vim, ao contemplar do alto da colina este delicioso vale, sentia-me atraído. Ali, o bosque! Se eu pudesse juntar a minha às suas sombras! Além, aquele monte! Quem me dera lá estar […]. Como seria encantador perder-se a gente ali! E eu voava para lá, voltava novamente sem encontrar nunca o que procurava./ Acontece com a distância o mesmo que com o futuro. Cobre-nos a alma uma enorme escuridão; o pensamento mergulha nela e ilude-nos como o nosso olhar: sentimos o desejo ardente de sacrificar toda a existência, para nos absorvermos, com inefável alegria, no sentimento do infinito! Mas… quando lá chegarmos, quando o longínquo se aproxima de nós, tudo nos aparece no mesmo estado; conservamo-nos em igual miséria; rodeia-nos idêntica tristeza e a nossa alma sedenta suspira baldadamente o bálsamo pela aventura que acaba de lhe fugir.” (a tradução aqui utilizada é de João Teodoro Monteiro, retirada da edição 2000 Abril/Controljornal, Biblioteca Visão, julho de 2000, pág.s 30-31).
[xi] Na verdade, Justine não pensa apenas que é a sua vida que não tem sentido, mas sim que a vida humana como tal não tem sentido. Não acontece – como também poderia acontecer – que Justine tenha caído numa disposição, por força de um acontecimento sucedido ou desejado, de tal modo que essa disposição alterasse a sua forma de ver o mundo, mas sempre em função disso que aconteceu ou não aconteceu, como se esse acontecimento ou a sua ausência fosse o responsável. Se fosse esse o caso, então tratar-se-ia de uma afeção circunscrita, possivelmente passageira, imposta de fora, imposta por esse acontecimento. Então a compreensão do mundo fazer-se-ia ela mesma devedora desse acontecimento: se isso não tivesse acontecido, ou se acontecesse isto ou aquilo, as coisas seriam diferentes. É o que acontece no caso de alguém que se entedia quando o comboio está duas horas atrasado – neste caso o sujeito compreende as coisas da seguinte forma: quando o comboio chegar, ou se ele tivesse chegado a horas, não me encontraria entediado. No caso de Justine, a disposição em que se encontra envolve a compreensão total das coisas. Não interessa aqui decidir se foi uma compreensão acerca do sentido de tudo que, por ser interiorizada, apropriada pelo sujeito, gerou o seu estado disposicional melancólico, ou se foi a queda num estado disposicional melancólico que gerou uma compreensão acerca do sentido de tudo. O que interessa aqui é perceber a abrangência total e totalitária da disposição compreensiva da melancolia: sente e compreende tudo ao modo melancólico.
[xii] O termo serventia ainda hoje, nos meios rurais, se usa como substantivo com o sentido de caminho para chegar a uma propriedade. Assim se diz que se dá serventia, ou que, pelo contrário, se nega a serventia. A serventia que se oferece disponibiliza o acesso a algo que é de quem atravessa o caminho que serve de serventia. A serventia é um caminho, mas um caminho por terras que não são de quem a faz e atravessa. É decisivo que a existência de serventia esteja dependente da oferta por parte de alguém que detém o poder de a negar ou oferecer. Esse que detém esse poder ao disponibilizar um caminho viável serve quem precisa de fazer o caminho. A serventia serve os intentos de alguém que não decide se a serventia é, ou não, disponibilizada. Negar a serventia é cancelar a possibilidade de fazer caminho para chegar à propriedade. No limite, uma propriedade não tem nenhuma utilidade se nenhuma serventia está disponível. Da mesma forma, o sentido pelo qual se faz a travessia da vida é inútil se não há, nos modos possíveis de fazer a vida, um modo de a atravessar que leve à realização do sentido. Por outro lado, a disponibilidade de um tal caminho decide-se em instâncias que, sejam elas quais forem, não são o caminhante. O caminhante não decide da disponibilidade da serventia. Ora, só faz sentido pedir serventia se, e apenas se, há uma propriedade a que chegar – se não há um sentido doador de nexo à corrente da vida, esta deixa de fazer sentido, porque não o recebe de lado algum, enquanto caminho. Finalmente, encontrar-se a fazer caminho é o ponto de partida humano – o humano faz caminho enquanto existe e existir é fazer caminho, mesmo que esse caminho não sirva para levar a lado algum que de facto importe. Neste sentido, para Justine a vida que ela tem não é serventia e, precisamente por isso, não serve para nada.
[xiii] O livro em que Kierkegaard (Anti-Climacus) se dedica ao conceito de desespero (Fortvivlelse) chama-se, precisamente, Sygdommen til Døden, que pode ser traduzido para alemão por Krankheit zum Tode, para inglês por Sickness Unto Death, o que dá em português qualquer coisa como doença para a morte. Nesse livro Kierkegaard considera que o desespero é morrer a morte, pois morrer a morte significa viver a morte: eternamente morrer, porque viver a morte um só instante é vivê-la eternamente. A vontade de quem desespera é destruir-se, destruir-se absolutamente, e isso é precisamente o que não pode fazer. Não pode não existir – e acabar com a vida física não é o mesmo que destruir-se absolutamente. Em última análise, o desespero é isso: nem sequer poder morrer. Quando a vida não permite esperança e a última esperança é morrer, a impossibilidade de morrer é desesperança. “So to be sick unto death is, not to be able to die -- yet not as though there were hope of life; no the hopelessness in this case is that even the last hope, death, is not available” – Kierkegaard, Søren, The Sickness Unto Death, Princeton University Press, Princeton, New Jersey, 1941, pág. 15, disponível em http://www.naturalthinker.net/trl/texts/Kierkegaard,Soren/TheSicknessUntoDeath.pdf, verificado em 08-02-2012. Bem vistas as coisas, Justine desespera de si mesma: o que é intolerável para si é que ela não possa ver-se livre de si mesma. Mas deixemos falar Aurélio Agostinho (tradução de Arnaldo do Espírito Santo, das Confissões, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2001) que se expressa assim após a morte de um amigo: pág. 75-76, “trazia a minha alma despedaçada e ensanguentada, incapaz de ser levada por mim, e não encontrava onde colocá-la. Não encontrava repouso nos bosques amenos, nem nos jogos e no canto, nem nos lugares perfumados […]. [A minha alma] pesava sobre mim como um enorme fardo de infelicidade. […] e eu ficara a ser para mim mesmo um lugar infeliz onde não podia estar nem de onde me podia ir embora. Para onde fugiria de mim mesmo o meu coração? Para onde fugiria eu de mim mesmo?”. Agostinho encontra-se numa disposição circunstancial, na medida em que foi um acontecimento que espoletou a disposição que se abateu sobre ele. Embora se trate de uma disposição total, na medida em que muda o rosto do mundo todo, em si mesma não alterou a interpretação fundamental acerca de como são as coisas. A associação ao acontecimento, a morte de um amigo, mantém causa da dor circunscrita e, apesar de a morte do amigo não ser reversível, pode dar-se um afastamento dela, é possível a distração porque de facto a compreensão geral da vida não sofreu alterações decisivas. A dor pode ser suavizada, mitigada, de alguma forma esbatida pelo tempo, pelo convívio com os amigos, pelas ocupações que, entretanto, solicitarão o seu cuidado – e a vida continua. O caso de Justine é mais profundo: é da sua própria vida, essa mesma que continua sempre, que ela pretende livrar-se, pois na verdade foi ela própria que morreu. Morta, como morta está Ofélia.
[xiv] Cf. Eça de Queirós, A Cidade e as Serras, pág. 118-121: “– Valente Jacinto… Então como tens vivido?/ Ele respondeu, muito serenamente:/ – Como um morto. […] E o meu pobre Jacinto reproduziu a comédia pouco divertida de um Melancólico que perpetuamente raciocina a sua Melancolia! Nesse raciocínio, ele partia sempre do facto irrecusável e maciço – que a sua vida especial de Jacinto continha todos os interesses e todas as facilidades, possíveis no século XIX […]. Apesar do apetite embotado por doze anos de champanhes e molhos ricos ele conservava a sua rijeza de pinheiro bravo; na luz da sua inteligência não apareceu nem tremor nem morrão; a boa terra de Portugal, e algumas companhias maciças, pontualmente lhe forneciam a sua doce centena de contos; sempre activas e sempre fiéis o cercavam as simpatias de uma Cidade inconstante e chasqueadora; o 202 estourava de confortos; nenhuma amargura de coração o atormentava; – e todavia era um Triste. Porquê? … E daqui saltava, com certeza fulgurante, à conclusão de que a sua tristeza, esse cinzento burel em que a sua alma andava amortalhada, não provinha da sua individualidade de Jacinto – mas da Vida, do lamentável, do desastroso facto de Viver. […] Sofrer portanto era inseparável de Viver. Sofrimentos diferentes nos destinos da Vida. Na turba dos humanos é a angustiada luta pelo pão, pelo tecto, pelo lume; numa casta, agitada por necessidades mais altas, é a amargura das desilusões, o mal da imaginação insatisfeita, o orgulho chocando contra o obstáculo; nele, que tinha os bens todos e desejos nenhuns, era o tédio.” A principal ocupação de Jacinto era bocejar. O aspeto decisivo desta descrição é o facto de não existir qualquer razão aparente para a melancolia. É fácil de ver que não há nenhuma incompatibilidade entre melancolia e abundância. É o que Jacinto confirma nos seus livros, desde o Ecclesiastes, a Schopenhauer: “Já há quatro mil anos, na remota Jerusalém, a Vida, mesmo nas suas delícias mais triunfais, se resumia a Ilusão.” Na verdade “não há nada de novo sob o Sol, e a eterna repetição das coisas é a eterna repetição dos males. Quanto mais se sabe mais se pena”. “Tudo tende ao pó efémero”. E assim conclui que – “Tudo é indiferente, Zé Fernandes!” Refira-se que um dos quadros que Justine abre no escritório é Schlaraffenland, de Pieter Breughel o Velho: este quadro representa um país imaginário, símbolo da abundância.
[xv] Por exemplo, não faria sentido estudar para o exame de matemática se se soubesse que o mundo iria acabar no dia anterior ao exame. As possibilidades futuras, precisamente enquanto futuras, são o rosto do momento em que se está. O local em que se está abre-se diretamente a partir das possibilidades futuras que enformam e dão sentido ao que se passa, ao que se faz, ao que se faz enquanto o tempo passa. As possibilidades futuras, são as possibilidades pelas quais se envidam esforços, para as quais se labuta. A vida corre para elas e por elas. A realização dessas aspirações puxa o sujeito e prende-o ao sentido dessas possibilidades futuras – as quais são a identidade do momento em que se está. As possibilidades futuras não são meras conjeturas, meras hipóteses vazias de sentido, cenários puramente teóricos. Não. São possibilidades vitais pelas quais a vida adquire o sentido que tem agora. O cancelamento do futuro, a ausência de possibilidades futuras fecha a porta do sentido da situação em que agora se está. Não é necessário que o cancelamento da possibilidade futura seja física: Justine é evidência disso. Mas a impossibilidade física de haver amanhã representa para o sujeito que vive lançado no amanhã físico a impossibilidade de habitar o momento presente, o lugar em que está, o presente: John suicida-se – ele que menosprezara os sinais de desespero, ou os tiques de desespero de Claire que temia o cancelamento físico do futuro.
[xvi] O quadro de Millais, Ophelia, traduz esta morte: não só Ophelia representa a personagem para quem o mundo já não tem nada a oferecer, como também ela é a amada que já não está presente no mundo. Desta forma, o quadro invoca um mundo onde não há possibilidade de realização para o sujeito, um mundo onde a possibilidade de execução autêntica do sujeito não está disponível. Da mesma forma, Tristão e Isolda invoca um mundo onde o fim de tudo o que se pode amar é a morte, um mundo onde não há possibilidade de verdadeira vida, onde tudo leva à tristeza.
[xvii] Enquanto disposição fundamental a melancolia não surge num momento a partir do qual se está nela, antes a melancolia é uma disposição em que sempre se está, em que desde sempre se está. Portanto, não inicia propriamente. Na maioria das vezes, contudo, o sujeito está cego para ela, ou ela está oculta na fuga dela em que o sujeito se lança. No entanto, pode impor-se a qualquer momento, em qualquer lugar, por tudo e por nada. A melancolia estava já lá, mas adormecida.
[xviii] O termo tonalidade é fundamental para compreender a noção de disposição. Em alemão diz-se Stimmung, em Dinamarquês Stemning. Estes termos têm um significado musical de tom, afinação. Em alemão, Stimme é voz, stimmen é afinar, estar afinado. Trata-se de um tom ou timbre em que se está, de estar num certo tom. Transmite a ideia de estar de acordo comao modo de, tal como afinar é colocar num determinado tom. É ainda a atmosfera, tal como em português se diz que o ar ficou irrespirável quando a atmosfera foi poluída com uma presença que nos é desagradável. Finalmente, refere-se diretamente à disposição afetiva, ao modo como cada um se sente. A disposição é uma tonalidade afetiva neste sentido: o tom em que alguém se encontra disposto, a forma como é consigo, como está afinado ou desafinado com a vida. Portanto, por disposição refere-se o humor, the mood em que alguém se encontra a si mesmo instalado na vida. É decisivo que aí o sujeito sempre ache a indicação de como está instalado, se bem ou se mal instalado.
[xix] É nisto, presume-se, que consiste a própria tristeza melancólica: o sujeito não é puxado por nada, nenhuma ocupação o prende ou atrai, sente-se incapaz de se empenhar no que quer que seja. Esclareça-se este aspeto: o sujeito vê as possibilidades, de forma lógica e lúcida, bastante lúcida mesmo. Mas vê meras possibilidades, desenxabidas, insipidas, sem sal. Nesse sentido não há possibilidades no seu mundo: não porque o melancólico não as reconheça, mas precisamente porque as reconhece e elas não o puxam, a única coisa que todas lhe dizem é desgosto. Isto é assim de tal modo que o melancólico vive a sua vida como se a empurrasse, qual Sísifo. O melancólico é incapaz de se deixar levar pela vida naturalmente: empurrar a vida é um esforço, viver é uma tortura, cada passo é dado num ritmo de vida parado, em que a vontade estagna e não há nenhuma solicitação que chegue até ele vinda do mundo. Em certo sentido, não lhe faltam possibilidades, na medida em que as vê, mas falta-lhe a paixão, a absorção, o chamamento. Pode dizer-se com toda a propriedade que o melancólico sofre de total ausência de vocação. Não tem vocação nenhuma, para nada, sobretudo não tem vocação para viver. Ou seja, é mais do que um ser indiferente a esta ou àquela possibilidade, como quem está indiferente perante uma ou outra profissão e decide seguir o curso mais fácil. Para o melancólico todas as possibilidades são penosas.
[xx] Na verdade o melancólico ama o mundo e ama mesmo o mundo da vida do qual se sente expulso. Pode mesmo acontecer, como de facto se passa com Justine ao longo da primeira parte, uma tentativa, da parte do melancólico, de restituição do mundo da vida – tenta mesmo sentir o apelo do trabalho, por momentos, no escritório. O ponto de vista melancólico é paradoxal e isso pode ver-se de inúmeras formas: a melancolia é uma disposição sofredora e triste que ama a própria tristeza dolorosa de tudo. Não só a tentativa de restituição de um paraíso perdido é um aspeto paradoxal, na medida em que reconhece primeiramente a vacuidade de tudo isso que procura restituir, mas também a própria vontade de restituir o estado de ausência de lucidez relativamente a essa mesma vacuidade. Justine deseja estar realmente feliz na festa, estar de facto contente com o seu casamento. Contudo, paradoxalmente, há um certo prazer precisamente no reconhecimento da vacuidade da vida que os outros levam e que ela dissecou. Um sentimento de superioridade, a bem dizer, de acuidade acompanha a tristeza e a dor. Expulso do mundo, o melancólico contempla o mundo e ama-o à distância. Este aspeto assume diversas formas: Justine ama a beleza e admira-a em diversos passos do filme, o que mostra o caracter eminentemente estético do seu ponto de vista; mas também ama a própria exposição do nada, a própria dissecação da vulgaridade, da normalidade. A este respeito podemos, mais uma vez, acompanhar a leitura do filme com a Cidade e as Serrasibidem: “Foi então que o meu príncipe começou a ler apaixonadamente, desde o Ecclesiastes até Schopenhauer, todos os líricos e todos os teóricos do Pessimismo. […] Esse foi o período esplêndido e soberbamente divertido do seu tédio. Jacinto encontrara enfim na vida uma ocupação grata – maldizer a Vida. E para que a pudesse maldizer em todas as suas formas, as mais ricas, as mais intelectuais, as mais puras, sobrecarregou a sua vida própria de novo luxo de interesses novos de espírito, e até de fervores humanitários, e até de curiosidades supernaturais. […] E a cada um destes esforços da elegância, do humanitarismo, da sociabilidade, e da inteligência indagadora, voltava para mim, de braços alegres, com um grito vitorioso: – «Vês tu, Zé Fernandes? Uma maçada!»” Desta forma, a própria tentativa de restaurar a forma perdida do mundo resulta sendo mais uma maneira de confirmar a forma atual e, na perspetiva do melancólico, verdadeira do mundo. Uma observação à última citação: o texto refere o tédio, e de facto Jacinto cai no tédio (pág. 121: “Já não esperava da Vida contentamento – nem mesmo se lastimava que ela lhe trouxesse tédio ou pena.”), mais profundo que a melancolia, tal como Justine na segunda parte. Mas na citação em causa trata-se mais de melancolia que de tédio. Na verdade, entre tédio e melancolia existem muitas determinações comuns – de tal forma que é comum a confusão entre elas: passa-se de uma a outra em continuidade, e também isto é uma determinação do tédio e da própria melancolia. Quer na melancolia quer no tédio o sujeito está exilado do mundo, subjugado ao peso das coisas inertes e sem sentido, tomado pela inércia e pela incapacidade de se deixar envolver pelo mundo, pelas incumbências diárias e mundanas. A própria angústia acusa tudo isso de alguma forma, incluindo a nadificação de tudo, o tudo ser nada. Mas a melancolia caracteriza-se por um lado poético, mais obviamente paradoxal: o sujeito canta os seus males, e há nisso um gozo, um disfrutar da própria dor. Por outro lado, no tédio há sobretudo náusea de tudo, incluindo do próprio tédio. Quer para a melancolia, quer para o tédio tudo é igualmente sem sentido, mas há essa diferença subtil entre ainda sentir prazer nisso e enjoar isso. Claro que também o entediado ainda ama, e claro que o mundo também aborrece o melancólico, mas comparando-os o aspeto decisivo do primeiro é a indiferença (o enjoo), e o aspeto decisivo do segundo é a tristeza que trai, precisamente, o seu olhar (ainda) amoroso. Contudo, não vamos aqui aprofundar a diferença entre ambas, tanto mais que o entediado é um melancólico, e o melancólico também se entedia. Aliás, é difícil distinguir entre ambos, e depende ainda dos autores em que nos apoiemos. De resto, a “doença do tédio é a mesma que a da melancolia” – ver a respeito disto, por exemplo, Ferro, Nuno, Kierkegaard e o TédioIn Revista Portuguesa de Filosofia, 64, 2008, pág.s 943-970. De alguma forma, quem está melancólico com a vida entedia-se com o mundo, tanto como quem está entediado com o mundo está melancólico com a vida.
[xxi] Cf. Kierkagaard, ou melhor, A, um dos seus pseudónimos, em Diapsalmata, pág. 24: “A melhor prova que se dá para a miséria da existência é aquela que se tira da consideração do seu esplendor.”, pág. 12: “Há, como se sabe, insetos que morrem no instante da fecundação. Assim é com toda a alegria: o mais elevado e voluptuoso momento de prazer da vida é acompanhado pela morte.”; O Livro do desassossego, entrada 226: “Com que luxúria … e transcendente eu, às vezes, passeando de noite nas ruas da cidade e fitando, de dentro da alma, as linhas dos edifícios, as diferenças das construções […] – contemplando tudo isto, dizia, com que gozo de intuição me subia aos lábios da consciência este grito de redenção: mas nada disto é real.” Ver nota anterior.
[xxii] O caso de Werther, de Goethe. O acordar da disposição melancólica pode estar associado a acontecimentos concretos e a situações delimitadas. Entretanto, isso não significa que a disposição melancólica tenha sido instaurada por esses acontecimentos. Por outro lado, a associação de uma disposição a um acontecimento, ou a uma situação concreta, não impede, por exemplo, que o ponto de vista anulador da mesma tenha uma abrangência total e totalizadora. Ver Werther, entrada de 12 de Agosto de 1771: Werther discute com Alberto a doença para a morte (Krankheit zum Tode) do espírito (Geist), referindo o caso de uma rapariga que, abandonada pelo seu amado, se afunda em trevas profundas, sem esperança, e atira-se a um precipício. O próprio Werther irá suicidar-se devido à impossibilidade de consumar o seu amor. Nestes casos, é o mundo todo e a vida que perdem sentido, apesar de a disposição ela mesma ser vivida como se a sua raiz fosse um determinado evento. De forma contrária, a melancolia profunda vive-se como se a sua causa fosse simplesmente tudo – a totalidade da vida.
[xxiii] Num momento da segunda parte, Claire prepara um jantar com a comida predileta de Justine: lamb meet. Seria uma forma de atrair Justine para fora da cama, oferecendo-lhe qualquer coisa pela qual sentisse forte atração. Ao provar a comida, que era a sua favorita, Justine mastiga com dificuldade e acaba por a deitar fora afirmando que sabe a cinza. Ora, este sabor a cinza do rolo de carne corresponde ao fechar do cerco que é paradigma da melancolia: tudo é cinza, tudo é igual, tudo é tristeza. Já a Anthologia Palatina faz essa associação entre cinzas nada: “Πάντα γέλως κα πάντα κόνις κα πάντα τ μηδέν˙ πάντα γρ ξ λόγων στ τ γινόμενα.” Ou seja: “Tudo é riso e tudo é cinza e tudo é nada. Tudo o que acontece é sem sentido.” O termo κόνις significa , poeira, cinzas – o sentido é ainda o de desperdício, o que não é relevante, não é digno de nota, sendo indiferenciado, indiferente, desprezível, despiciendo. Obviamente, não é despiciendo que tudo seja desprezível: o tudo ser cinza é o aspeto decisivo, na verdade, é o rosto de tudo. O mundo de Justine assume, precisamente, a forma de resto, de uma segunda escolha, que aliás decide não fazer, pois para que houvesse sentido na decisão de escolher isto ou aquilo seria preciso que houvesse algo diferente deste mundo que não oferece uma possibilidade significativa. Do ponto de vista do melancólico o mundo é todo ele o resto diferente da possibilidade verdadeiramente importante que, segundo o seu modo de ver as coisas, simplesmente não se dá em lugar algum. Seria precisa uma outra coisa que não o mundo tal como ela o vê, mas precisamente nada vê que possa considerar como tal. Ora, isto apenas significa o desejo de uma outra coisa que tudo isto.
[xxiv] O divertimento, tal como a abundância, não opõe nenhuma incompatibilidade à melancolia. Pelo contrário, no divertimento reserva-se a possibilidade dele não divertir – de evidenciar a heterogeneidade fundamental entre humano e mundo. O divertimento não diverte de facto, senão quem se encontra numa disposição que receba e envolva o divertimento, isto é, numa disposição divertida. Na verdade, a possibilidade do divertimento enquanto afeção reside no sujeito, o qual pode divertir-se, ou não. No meio da festa supostamente mais divertida pode estar-se melancólico. Pode estar-se melancólico no próprio casamento.
[xxv] A Sócrates perguntaram se seria melhor casar-se ou não, ao que ele respondeu: “ ν αὐτῶν ποιήσῃςμεταγνώσῃ” – “qualquer das coisas que faças, arrepender-te-ás”. O episódio é referido por Diógenes Laércio, nas Vidas dos Filósofos (Vitae philosophorum, II, 33 – tradução em castelhano disponível em http://pt.scribd.com/doc/2225335/Diogenes-Laercio-Vida-de-los-filosofos-mas-ilustres, pág. 120). É sugestivo que Lars von Trier faça uso do acontecimento do casamento num filme que expressamente aborda a melancolia. Esta escolha, que poderia parecer casual e inocente, pode, de facto, não o ser se tivermos em conta as seguintes anotações. Numa primeira leitura do filme, poderia parecer que o que se passa com Justine foi provocado pelo seu casamento, como se este espoletasse a disposição em que ela se encontra. Mas na verdade, o surgimento da melancolia nada tem que ver com o evento – o casamento poderia dar azo à instalação de uma afeção angustiada, resultante do peso da decisão, da responsabilidade, do iniciar de um caminho de vida entre outros possíveis, mas o que se passa com Justine é diferente. Não há nada que sugira uma decisão não assumida ou um arrependimento latente – relativamente ao facto concreto da decisão de se ter casado. Em nenhum momento do filme tal sugestão é apresentada. Destarte, na segunda parte, verificamos que ela se mantém melancólica, mais melancólica ainda que na primeira parte, independentemente do casamento, tanto mais que o casamento se fez, mas também se desfez e acabou no mesmo dia. Tudo indica que tivesse havido ou não tivesse havido casamento, o resultado teria sido o mesmo. Não há mais qualquer referência ao evento, de tal forma que poderíamos colocar em sua vez qualquer outro. A primeira parte poderia ter-se passado num batizado, numa festa de graduação, enfim, na sua entronização como Diretora de Arte da empresa. Por isso, a escolha de um casamento para o filme poderia ter sido casual, mas também pode pretender referir-se ao episódio relatado por Diógenes. O que está em causa na resposta de Sócrates é que, de entre as alternativas disponíveis numa dada circunstância (casar ou não casar – abarca todas as possibilidades, não há uma terceira abertura disponível) nenhuma há que de facto não leve ao arrependimento (à alteração de posição relativamente ao que se deveria ter feito), de tal modo que, se te casares hás de desejar não o ter feito, se não te casares, hás de desejar tê-lo feito. A referência ao casamento é tão mais sugestiva quando sabemos que o episódio referido provavelmente motivou o título de uma obra de Kierkegaard, a saber, Enten/Eller (em dinamarquês, mas que para alemão se traduz por Entweder/Oder, qualquer coisa como Either/Or em inglês – a ideia é ou/ou então, ou seja, ou se escolhe isto, ou aquilo, sem mais alternativas; em português é habitual traduzir-se por Ou isto/Ou aquilo, embora também se lhe refira como Ou/Ou). Ora, o Ou/Ou pode considerar-se fundamental para o estudo das disposições fundamentais da melancolia e do tédio, mas sobretudo da primeira. Esta sugestão, se for levada a sério, exigirá a leitura do filme Melancolia no horizonte de interpretação do Ou/Ou, ou até mesmo da obra de Kierkegaard como um todo. Esta empresa seria grandiosa e demorada e não será aqui tentada. Na verdade, exigiria, por sua vez, a própria interpretação de Ou/Ou, no qual se integram os Diapsalmata, o que não se faria fácil nem rapidamente, pois saber o horizonte de compreensão que respeita a esta obra é por si só complexo e controverso. Este livro tem (pelo menos, mas também isto é discutível) quatro autores distintos (Victor Eremita, A, o juiz Wilhelm e o pastor da Jutlândia), ou pelo menos quatro pontos de vista diferentes entre si – correspondentes a quatro pseudónimos (se este termo é aplicável aqui) de Kierkegaard. Mas o que parece sobressair do Ou/Ou é a indicação de que o ponto de vista melancólico permanece refém da sua própria pretensão de acuidade, não sendo capaz de apreender uma outra possibilidade da vida (ou até mais do que uma), mais profunda, e para a qual a melancolia está cega. Estas alternativas, das quais o melancólico não faz a mais pequena ideia, correspondem a formas valorativas, ou melhor, a modos de ver a vida em que esta surge, de facto, valiosa – apesar de toda a miséria (que reconhecem pulular pelo mundo – não se tratam de pontos de vista que menosprezam os insights da melancolia).
[xxvi] Na verdade é discutível que a exposição teórica, lógica e temática das disposições, dos sentimentos seja a mais adequada. A comunicação direta pode ser menos eficaz que a comunicação indireta quando está em causa uma forma de existência. O saber e a compreensão teórica como tal não implicam uma apropriação adequada disso que está em causa – sendo que, nas disposições, nos sentimentos, nas formas de vida, o que está de forma decisiva em causa é precisamente a adequada apropriação existencial. Paradoxalmente, o discurso indireto, não sistemático, permite uma abordagem mais direta ao que aqui importa do que o discurso direto (sistemático). Cf. Kierkegaard, Søren, Afsluttende uvidenskabelig Efterskrift. Søren Kierkegaard Skrifter 7, udgivet af Søren Kierkegaard Forskningscenteret. København: Gads Forlag, 2002, pág. 249.
[xxvii] Cf. Ilíada, VI, 200-203. A melancolia é uma disposição tal que já sempre se está nela. É uma disposição de fundo, mas que nem sempre dá forma ao mundo, pois habitualmente é abafada pelo ruído de outras disposições mais superficiais, pelo barulho do mundo das ocupações. Habitualmente o humano não escuta a melancolia, precisamente porque foge dela. Ouvindo o barulho foge da melancolia, abafando-a. De certa forma, a fuga faz-se abafando a melancolia no ruído das demais disposições mais superficiais. Cf. Pascal, Pensées, XXVI, em http://fr.wikisource.org/wiki/Pens%C3%A9es/%C3%89dition_de_Port-Royal/XXVI. htm consultado a 08-02-2012), Misère de l’homme: para a alma é “une peine insupportable d’être obligée de vivre avec soi, et de penser à soi. […] C’est l’origine de toutes les occupations tumultuaires des hommes, et de tout ce qu’on appelle divertissement ou passe-temps, dans lesquels on n’a en effet pour but que d’y laisser passer le temps, sans le sentir, ou plutôt sans se sentir soi-même, et d’éviter en perdant cette partie de la vie l’amertume et le dégoût intérieur qui accompagnerait nécessairement l’attention que l’on ferait sur soi même durant ce temps-là. L’Âme ne trouve rien en elle qui la contente. Elle n’y voit rien qui ne l’afflige, quand elle y pense. C’est ce qui la contraint de se répandre au dehors, et de chercher dans l’application aux choses extérieures, à perdre le souvenir de son état véritable. Sa joie consiste dans cet oubli ; et il suffit pour la rendre misérable, de l’obliger de se voir, et d’être avec soi. […] C’est pourquoi quand je me suis mis à considérer les diverses agitations des hommes, les périls et les peines où ils s’exposent à la Cour, à la guerre, dans la poursuite de leurs prétentions ambitieuses, d’où naissent tant de querelles, de passions, et d’entreprises périlleuses et funestes ; j’ai souvent dit, que tout le malheur des hommes vient de ne savoir pas se tenir en repos dans une chambre.” – A Miséria do Homem: para a alma é “uma pena insuportável ser obrigada a viver consigo e pensar em si mesma. […] Essa é a origem de todas as ocupações tumultuosas dos homens, e de tudo o que se chama divertimento ou passatempo, nos quais não se tem outra finalidade que neles deixar passar o tempo, sem o sentir, ou melhor, sem se sentir si-mesmo, e de evitar, perdendo essa parte da vida, a amargura e o desgosto interior que acompanhariam necessariamente a atenção que se faria sobre si-mesmo durante esse tempo. A alma não alcança nada que a contente. Não há nada que não a aflija quando pensa. É isso que a constrange a derramar-se para fora e a procurar, na dedicação às coisas exteriores, perder a lembrança do seu verdadeiro estado. O seu gozo consiste nesse esquecimento; e para a tornar miserável basta obrigá-la a ver-se, e a estar consigo mesma. […] É por isso que quando me pus a considerar as diversas agitações dos homens, os perigos e as penas onde eles se expõem na política, na guerra, na persecução das suas pretensões ambiciosas, de onde nascem tantas querelas, paixões e empresas perigosas e funestas – eu disse sempre que toda a desgraça dos homens vem de não saberem ter-se em repouso dentro de um quarto.” Pascal defende a possibilidade de as ocupações mais habituais e bem vistas a que o humano se dedica não serem aquilo que é mais profundo no mesmo humano: tudo isso que se faz vulgarmente pode não ser mais do que fuga do verdadeiro estado do humano. Precisamente porque o humano não é capaz de permanecer num quarto sozinho consigo mesmo, ele derrama-se no mundo fora de si, procurando dissolver-se nele. Isto não significa que alguma vez consiga uma homogeneidade completa com o mundo, pois nada no mundo, de facto nem o mundo todo pode contentá-lo. Aliás, como já referimos, é precisamente na abundância e na diversão que se torna mais evidente a possibilidade de reconhecer a insatisfação crónica do ser humano. É o que se passa com Justine e com Jacinto.
[xxviii] Obviamente, a disposição mais comum e vulgar, sensata e sobriamente confiante no seu ponto de vista, não suspeita que ela própria é uma disposição entre outras, não admite que o seu ponto de vista seja um entre outros. A constituição do seu modo de ver as coisas apresenta o modo das coisas ser, exatamente assim: como sendo dessa maneira, como elas são vistas pelo sujeito, que elas são. Ou seja, as coisas vistas aparecem com determinadas características: existência, cor, peso, resistência, beleza, etc.; uma das características que acompanha a apresentação das coisas é o elas apresentarem-se como sendo da maneira como se dão a conhecer. Quando alguém vê uma porta, a visão da porta faz-se acompanhar da determinação que diz que a porta é tal como se vê. Não se assume, por exemplo, que a porta existe apenas para mim. Mesmo as características teoricamente subjetivas não são vistas como sendo válidas apenas para mim. Um sujeito pode saber teoricamente que a pessoa que lhe parece bela é bela apenas para si, mas quando vê essa pessoa vê-a bela, não a vê como bela apenas para mim. De tal forma que a linguagem comum trai precisamente esse aspeto: normalmente diz-se que as coisas são belas ou são feias. E muitas vezes tem-se dificuldade em compreender que os outros possam gostar daquilo que cada um detesta – apesar de, teoricamente, o sujeito em causa estar ciente da subjetividade do juízo de gosto.
[xxix] Note-se que as disposições fundamentais, em sentido próprio, são disposições em que já se está, em que de certo modo se está sempre, embora nem sempre (na verdade, poucas vezes ou nunca) venham à superfície – precisamente porque se calam e silenciam por outras que são mais superficiais. Afinal, a melancolia é uma disposição fundamental nesse sentido específico, que percorre, como um fluído, o âmago, o íntimo, o fundo de todos os humanos, e relativamente à qual na maioria das vezes cada um adota modos de fuga (sem, todavia, lhe escapar): o patrão de Justine mergulhando nas incumbências profissionais; o cunhado mergulhando na sobriedade e na sensatez da normalidade quotidiana e da curiosidade científica; Claire mergulhando na vida de todos-os-dias, familiar, doméstica, organizada e pacificadora. Mas isso não significa que não sejam todos eles percorridos pela melancolia, da qual se abstraem mergulhando em urgências. Simplesmente, então, distraídos em urgências escapam (embora este escapar não seja definitivo – o que aconteceu a Justine, poderia de facto suceder a qualquer um) da acuidade relativamente à melancolia. Ora, John, ao encontrar-se a si mesmo numa situação em que não há a possibilidade física de haver amanhã, de prosseguir o atravessamento da vida em possibilidades futuras relativamente às quais está empenhado, anuladas as urgências do emprego, dos estudos científicos, do dinheiro, deu consigo reduzido à situação apertada de encontro consigo sem distrações. Na impossibilidade de prolongar o adiamento do encontro consigo, resvala na total ausência de possibilidades habitáveis e suicida-se. O que se evidenciou para John foi o sem mundo habitável, o sem terra a ser provocado pela destruição da Terra. Mas o facto de isso ter sido espoletado pela aproximação do planeta Melancolia mostra que, anuladas todas as hipóteses de fuga, o que restou foi o nada, o nada que, de algum modo, desde sempre esteve lá, na verdade como responsável pela fuga. No desespero do marido de Claire percebemos que as condições de possibilidade da eclosão da melancolia estavam presentes desde sempre. Uma vez anulado o circunstancial, impossibilitando a fuga que torna habitável o mundo, o que fica é o nada que desde sempre foi fundamental. Nessa altura em que o humano se encontra face a face consigo mesmo, despido do mundo a que, na maioria das vezes, se agarra – nessa altura crítica, torna-se evidente o que a toda a altura e a todo o momento, a todo o tempo está em jogo: o próprio sujeito, o próprio indivíduo, a sua vida que, a cada vez, está nas suas mãos. Esta clarividência trás consigo a evidência de que, face ao mundo não mais habitável, ou face ao mundo habitável não mais possível, o indivíduo está a mais. Face ao que se passa, John percebe que está a mais – ainda que esta compreensão surja claramente delimitada como estando associada ao acontecimento que virá a destruir a Terra. Mas nesse momento, o sujeito, compreendendo-se como a mais aí para si mesmo, e não tendo para onde possa fugir desse excesso, dá-se conta que tem o poder de findar a vida, cujo o curso se define por esse excesso constitutivo. Ora, tal como todas as decisões da sua vida até àquele momento foram, antes de mais, escolhas a favor de viver, pois sempre teve a possibilidade de deixar de viver, também acontece que toda a sua vida foi um dar sentido ao que, de forma originária, sempre poderia mostrar-se insignificante. Nesse momento final de John, mas também de Claire, percebemos que a melancolia é uma disposição em que já se está sempre, embora na maioria das vezes no modo de fuga dela. Na maioria das vezes foge-se do nada, do sem sentido, do sem valor, já que um mundo sem valor, sem sentido, de nada, é um mundo de trevas, inóspito, não familiar, agreste, desumano no sentido mais próprio do termo: que não oferece um lar ao ser humano. E é desta inospitalidade que habitualmente se foge. Todavia, quando o mundo se apresentou na forma de impossibilidade, como lugar onde nada se poderia fazer que alterasse essa possibilidade, então John suicidou-se. O modo da fuga de John, mas também de Claire, possui a seguinte forma: o empenho em realizar as coisas que a cada momento urgem está determinado, de modo intrínseco, pelas possibilidades em vista das quais urge empenhar-se; está-se no mundo ao modo do mundo porque se é absorvido pelas coisas do mundo e pelo que nele se oferece, promete ou ameaça, de tal modo que cada momento da vida está radicalmente determinado pelo momento seguinte; está-se aqui na medida em que daqui se vai para outro lugar; faz-se isto para se poder fazer aquilo; quer-se isto para aquilo. Neste modo de vida, se falta o futuro todo o agora se mostra meaningless.
[xxx] Note-se que, como já se aludiu, há diversos níveis e amplitudes disposicionais. De facto, uma disposição associada a um acontecimento, como a morte de alguém, pode envolver o mundo inteiro no seu abraço nadificadorO caso que Werther discute com Alberto, o caso do próprio Werther, o caso da Ofélia do Hamlet, são exemplos disso. Por melancólico ocasional referimo-nos aos casos em que a disposição melancólica não rege a compreensão acerca de como as coisas são, não se torna a forma da compreensão, e em que a compreensão que o sujeito tem disso que se passa consigo situa o achar-se melancólico numa situação melancólica: trata-se de uma melancolia passageira que é compreendida pelo melancólico ocasional como estando referida a um acontecimento melancólico passageiro, causador do estado em que ele se encontra. A determinação diferenciadora da melancolia ocasional é a compreensão de que já passa.
[xxxi] A este respeito é interessante ver como os bebés choram quando lhes tiram um brinquedo, mas rapidamente voltam ao seu estado alegre se lhes dermos outro qualquer. A alteração não reconfigurou a forma como se encontrava no mundo. Da mesma maneira, a disposição de Werther, ainda que sendo uma doença para a morte, de facto fatal, não deixa de estar associada a um acontecimento específico: o mundo não vale nada porque Werther não pode realizar o seu amor por aquela rapariga específica. Aí o mundo não se mostra como intrinsecamente não valendo nada: tudo falta a Werther, mas há uma coisa que poderia (pelo menos é o que ele supõe, é essa a sua compreensão) curá-lo: Carlota. Trata-se de uma disposição totalitária enquanto nadifica o mundo, pois a possibilidade que daria sentido a tudo não está disponível. É o que acontece com o melancólico profundo: um desejo que o mundo fosse outro. Mas no caso do Werther, este desejo é regional: bastaria possuir Carlota – é essa a compreensão em causa. No caso de Justine, trata-se de um desejo de que tudo fosse de outra forma, de um desejo de outra coisa que não o mundo: nenhuma possibilidade mundana a salvaria. Tornemos este ponto claro: a melancolia, sendo uma disposição fundamental, pode sempre vir à tona enquanto disposição profunda, totalitária: pode desocultar-se precisamente pelo próprio movimento de fuga, ou pode vir à tona naturalmente, sem que nada em concreto a espolete. O ponto é precisamente este: a melancolia profunda, a forma mais radical da melancolia, em que tudo é nada, em que nada no mundo vale a pena, em que nem sequer há uma Carlota no mundo, ainda que inacessível, pode dominar qualquer um, a qualquer momento, por tudo ou por nada. Isto não invalida o que já se disse sobre o ruído do mundo, o barrulho das ocupações: o sujeito que se encontra comprometido com o mundo, disperso nas coisas, ativo na vida das urgências diárias, está distraído de si e, portanto, surdo para a tonalidade melancólica, cego para as suas profundezas. Neste sentido, não há melancolia quando se está comprometido com o mundo, embora a melancolia possa a qualquer momento impor-se pelo próprio movimento de fugir dela, ou surgir à superfície naturalmente e simplesmente nadificar todas as possibilidades de fuga.
[xxxii] Sofrimento de longa duraçãoO termo χρόνιον [khronion, de onde deriva crónico, em doenças crónicas] traduz a ideia de tempo, de duração. Por sua vez, πάθος [pathos, de onde deriva patologia] refere-se ao sofrimento, antes de mais em sentido neutro, ou seja, àquilo que se sofre bom ou mau, aquilo a que se está sujeito. No termo grego está presente a ideia de algo que se abate sobre aquele que sofre. Ou seja, algo que se instala (vindo de fora) dominando aquele que sofre e que, precisamente, sente vivamente isso que se abate, bate e predomina. Contudo notamos que já Aristóteles realçava que são principalmente as alterações prejudiciais, os infortúnios e as penas graves que são chamados de sofrimentosάθος). Metafísica, 1022b, 15-20. Para compreender melhor o está em causa no termo χρόνιον πάθος deixemos falar Bernardo Soares: “A minha vida é como se me batessem com ela.” O Livro do Desassossego, trecho 80. Refira-se que o termo πάθος se refere àquilo que se experimenta vindo do momento que se atravessa. E a cada momento atravessam-se sofrimentos diferentes, experimentam-se diferentes afeções: diferentes dores, mas também prazeres diferentes. O πάθος é, por isso, oscilatório, inconstante, inseguro. Neste sentido, o termo χρόνιον significa uma reconfiguração do que aí está em causa: sentir torna-se um atravessar arrastando-se. Trata-se de um sofrimento, uma alteração desagradável, penosa, que indispõe o sujeito, desafinando-o com a vida, mas de tal forma que se trata de algo que se impõe ao sujeito, que se instala no sujeito para durar. O arrastar-se torna-se a forma de todo e qualquer πάθος: todo o experimentar, todo o sentir é um arrastar-se por aquilo que passa e que penosamente se atravessa.
[xxxiii] Aquilo em vista do qual se move é suficientemente disperso, vago, mas também variado. Pode-se ser mais ou menos diletante, mais ou menos interesseiro, de qualquer forma a cadeia é confusa. Um sujeito levanta-se para tomar banho e pequeno almoço, para ir trabalhar e não ir sujo nem fraco, para manter as aparências no trabalho; tudo isto para ganhar o ordenado, para pagar a renda e as propinas dos filhos e o comer e a roupa, mas também para comprar um carro novo e um computador e o tabaco; e isto para ser um bom pai e um bom marido, mas também para impressionar os amigos com o novo carro, etc., etc., etc… A cadeia prolonga-se indefinidamente, e este carácter vago e difuso é fundamental no modo sensato e sóbrio de levar a vida em que o fim último permanece, precisamente, obscuro e difuso, nada claro nem distinto. Esta apresentação confusa da cadeia de sentido mantém a aparência de justificação do todo, quando o único sentido claro é apenas o dos atos mais próximos – sendo que uma averiguação efetiva dessa clareza não chega a ser feita. Ou seja, numa cadeia de sentido, o sentido de cada um dos seus momentos está dependente do seu sentido último, mas não se chega a percorrer efetivamente a cadeia para averiguar se o sentido último é tal que dê sentido à totalidade da cadeia.
[xxxiv] Isto não invalida a possibilidade sempre em aberto do nada se revelar. Já se fez referência à possibilidade de, no próprio movimento de fuga relativamente à melancolia, a melancolia vir à superfície. De facto, a própria realização de tarefas contínuas pode desocultar a vacuidade da cadeia pela evidência de insuficiência intrínseca do mundo relativamente ao desejo humano. O sujeito, na perseguição de mais e mais pode concluir que por mais que alcance jamais se contentará – de tal forma que se torne evidente que nenhuma possibilidade de verdadeiro contentamento está disponível. A compreensão disso, se apropriada efetivamente, poderá lançar o sujeito numa disposição melancólica profunda.
[xxxv] Cf. Werther, 12 de Agosto de 1771, em que se discute o caso já referido da rapariga que se suicidou por ter sido abandonada pelo amado: “Alberto, a quem não pareceu muito concludente a comparação, objetou-me várias causas, entre as quais a seguinte: que eu apenas lhe falara de uma menina ingénua e ignorante. Mas o que ele não podia conceber era que um homem de tino, circunspecto, sensato, se servisse desses argumentos e podendo dispor de inúmeras distrações se deixasse levar a tal desespero.” Ora, o que está em causa não é que o homem de tino, sensato, se sirva de tais argumentos para se deixar levar pelo desespero. Alberto concebe esse tal homem de tino como aquele que está na posse de lucidez, não percebendo que esse ponto de vista, que ele toma pelo seu próprio, possa ser também ele um ponto de vista. Mais do que isso, não compreende que o ponto de vista, a compreensão de cada um está sempre disposta de uma ou outra maneira. Ou seja, não compreende o que está em causa, que é precisamente a noção de estado disposicional: uma disposição põe e dispõe do sujeito, de tal modo que a sua compreensão se encontra bem ou mal disposta, segundo essa mesma disposição. O homem de tino, sensato, é-o na vigência da disposição sóbria e sensata, mas também ele pode ser acometido de qualquer outra disposição. Tenta Werther esclarecer: “O homem é sempre homem! E o pouco juízo que um possa ter a mais que outro nada pesa na balança quando as paixões se desencadeiam, ou quando são ultrapassados os limites prescritos à condição humana.” O que escapa a Alberto é que estar com tino, sensato, circunspecto é também estar numa disposição, pois ele concebe o seu próprio estado como a normalidade, como o estado neutro, relativamente ao qual os demais correspondem a deficiências. Isto é, o homem sensato e sóbrio compreende-se como estando no estado normal, como se isso significasse não estar em estado nenhum: como se ele visse claramente o que os que se encontram em diferentes estados disposicionais vêm através de óculos deformantes.
[xxxvi] Este passo faz lembrar a entrada já referida de 12 de Agosto de 1771 em Werther, no qual o personagem Werther prevê que essa é precisamente a posição de quem não está tomado pela doença mortal (Krankheit zum Tode): “Mal daquele que, vendo isto, pudesse dizer:/ – Idiota! Porque não esperou mais tempo? Deixasse aquiescer o espírito e com certeza haveria de encontrar quem o confortasse!” Werther prevê que o sensato Alberto imaginaria que bastaria à rapariga que se suicidou ter esperado algum tempo até lhe passar o mal de amor. Mas como bem explica Werther isso seria o mesmo que dizer a alguém que tivesse morrido com uma doença física que era um “Imbecil! Deixa-se morrer de febre! Se tivesse esperado que as forças se lhe restaurassem, que o sangue lhe arrefecesse, tudo ficaria remediado e estaria vivo e são!”. Segundo Werther é tão idiota o que morre de amor como é imbecil o que morre de febre, ou de cancro. Uma doença mortal é uma doença mortal, seja do espírito, seja do corpo. Ora, Werther pretende mostrar que certas disposições são, de facto, doenças para a morte, são de facto mortais. Claire concorda que Justine está doente, mas Claire não compreende o que está em causa em Justine: na verdade, tal como John, ela desconsidera, menospreza o que está em causa. Ao dizer que se trata de uma doença, Claire pretende dizer que se deve ter compreensão com Justine devido ao facto desta estar em condições que não lhe permitem ver com clareza. Também Claire não vê o seu próprio ponto de vista como disposto disposicionalmente. Na verdade o que Werther diz não é o mesmo que Claire. Werther refere-se ao estado de sofrimento em que alguém se pode encontrar – e este sofrimento pode ser mortal, pode ser de tal forma que a sua vida é mais morte que vida, sendo que a morte para essa vida morta é a única esperança pois nada há mais a esperar da vida. Claire pretende apenas, por um lado, desculpar a irmã perante John, por outro, invalidar o seu ponto de vista. Ao dizer que Justine é uma doente Claire invalida a forma como ela vê as coisas. Ou seja, na verdade não leva a sério Justine, não leva a sério o seu ponto de vista, apesar de levar a sério que esteja doente. Torne-se o seguinte aspeto claro: não se trata de saber se existem drogas capazes de alterar a disposição melancólica. Mesmo que existam drogas capazes de mudar a disposição melancólica tornando-a outra – e não iremos discutir isso aqui – isso não significa nada: na verdade, há drogas capazes de alterar qualquer disposição e qualquer ponto de vista. A disposição sensata e sóbria tem dificuldades em manter-se quando alguém bebe álcool em demasia. O estado supostamente normal também é alterável, talvez até mais facilmente alterável: é mais fácil embebedar um sóbrio que convencer um melancólico profundo de que a vida tem sentido. Mas o que é mais importante perceber aqui é que, apesar de tudo, mesmo admitindo que há drogas capazes de curar qualquer melancolia, isso não retira a validade do ponto de vista melancólico. O ponto de vista normal assume que o ponto de vista melancólico está errado, e dizendo-o doente pretende dizer que deve ser curado – assim pressupõe que curar-se significa mudar a melancolia em normalidade, torná-lo num ponto de vista vulgar. Em resumo, o ponto de vista vulgar presume-se a si mesmo correto, e por isso pressupõe que estar curado é encontrar-se num modo vulgar de ver as coisas. Mas é perfeitamente possível que o ponto de vista melancólico esteja mais próximo da verdade, e na verdade é possível que o ponto de vista vulgar esteja, também ele, doente.
[xxxvii] Recomenda-se aqui a leitura de HipócratesDo Riso e da Loucura, Padrões Culturais Editora, Col. Textos Extraordinários, nº 38, Tradução Largebooks, 1ª edição, Lisboa, Julho de 2009. O livro editado em português apresenta na capa Hipócrates como seu autor, mas na verdade é mais provável que seja de Pangetus. De qualquer modo, com toda a probabilidade não pertence a Hipócrates, nem ao seu tempo. Escrito nos inícios do Império Romano, é habitual chamar ao seu autor Pseudo-Hipócrates. Infelizmente, a versão portuguesa parece ter sido feita a partir da tradução francesa de Yves Hersant, Sur le Rire et la Folie, Rivages, 1989. Trata-se de um pequeno grupo de cartas, escritas como se fossem de Hipócrates (na sua maioria), no seguimento do pedido do Povo e do Senado de Adbera no sentido de que Hipócrates salvasse Demócrito da sua doença. A seleção não contém todos os escritos relevantes do Corpus Hippocraticum sobre a loucura ou a melancolia, mas apenas as cartas relativas ao caso de Demócrito. Além disso não contém a carta do próprio Demócrito. Mas trata-se de um livro muito interessante e forte relativamente ao que aqui nos interessa. Quem souber e desejar ler ou comparar com o original grego, ou com uma versão em francês das ditas cartas, pode fazê-lo muito facilmente e de forma gratuita em http://remacle.org/bloodwolf/erudits/Hippocrate/lettres1.htm#10 (acessado em 08-02-2012). Ora, o que aqui nos interessa é o que está em causa no referido livro: a cidade de Abdera acredita que Demócrito está louco, demente, doente – pois que se ri de tudo, quer do bem, quer do mal, indiferentemente. Enfim, por isso e com receio dos efeitos disso, solicita a ajuda de Hipócrates, o médico. Hipócrates aceita, mas contra as expectativas dos abderitas, vem a confirmar as suas próprias expectativas: Demócrito não está doente, pelo contrário, está até bem lúcido. Na verdade, Demócrito está mais lúcido do que a maioria das pessoas alguma vez chega a estar em toda a sua vida atribulada. Depois de discutir com Demócrito a sua alegada doença, e de discutir as causas do seu riso, Hipócrates apercebe-se que é mais provável que “o mundo inteiro esteja doente sem o saber”, e que Demócrito, tendo precisamente encontrado esta verdade, tenha sido mal-entendido pelas pessoas comuns, as quais, estando doentes sem o saber, tomam a saúde de Demócrito por doença, e a sua própria doença por saúde. Esta observação faz lembrar a conhecida alegoria da caverna (Platão, A República, 514 a, 517 a): Platão descreve um grupo de prisioneiros numa caverna, sujeitos a ver apenas sombras de coisas, sem saber da existência de outras coisas que não essas sombras; estes prisioneiros tomam as sombras das coisas pelas próprias coisas; quando um deles se liberta dos seus grilhões e sobe à superfície, decidindo retornar à caverna para libertar os seus companheiros, estes matá-lo-iam se o apanhassem; os prisioneiros não aceitariam a mensagem do liberto, tomá-lo-iam por louco, subversivo, perigoso, incómodo. Ora, o problema dos prisioneiros não é estarem desprovidos de visão, pelo contrário, eles veem as sombras e estão de tal modo habituados a elas que não aceitam passivamente que alguém pretenda que são sombras e não verdadeiras coisas. É precisamente a possibilidade da maneira mais vulgar de compreender as coisas estar equivocada que o ponto de vista vulgar, sensato e sóbrio, na maioria das vezes, simplesmente descarta. Assim diz também Heraclito no fragmento 72: “ᾧ  µάλιστα διηνεκῶς ὁµιλοῦσι λόγῳ τῷ τὰ ὅλα διοικοῦντι, τούτῳ διαφέρονται, καὶ οἷς καθ΄ ἡµέραν ἐγκυροῦσι, ταῦτα αὐτοῖς ξένα φαίνεται” – o que podemos verter para: “afastam-se do entendimento disso com que lidam continuamente e aquilo com que se encontram no dia mantém-se-lhes estranho”. O que Heraclito reforça é que a habituação a uma forma de compreensão das coisas não significa que essa forma de compreensão seja a adequada, mas que essa mesma habituação cria a pretensão de adequação, precisamente porque confere a ilusão de familiaridade. O que assim se sublinha é a possibilidade de não se compreender adequadamente aquilo que aparentemente é mais fácil de compreender, precisamente pela ilusão de facilidade, pela pretensão de acuidade que o trato diário, que a lida quotidiana confere, já que aí não se mostra, não vem à luz, não se evidencia nenhuma necessidade de esclarecimento disso que, na medida em que não é esclarecido, permanece estranho. Assim, é a própria proximidade a razão do afastamento: é porque isso (seja o que for) está tão próximo que permanece tão longe de ser adequadamente compreendido. Refira-se ainda que desde a Antiguidade se diz que Heraclito (Diógenes Laércio, Idem, IX, 6) e Demócrito (Hipócrates, Idem, pág. 40) sofrem de melancolia. A comparação entre os dois modos de ser melancólico é, aliás, proverbial: Heraclito chora, Demócrito ri. A diferença entre rir e chorar não significa necessariamente uma diferença de seriedade: Demócrito não é menos sério que Heraclito. Nem significa que Demócrito seja menos taciturno, menos solitário ou menos altivo. Ambos se afastaram da vida ordinária, dos negócios vulgares, daquilo que interessa ao vulgar dos mortais – e tendo formado o seu próprio modo de pensar, e criticado muitas vezes o modo como a maioria vivia, foram considerados arrogantes e misantropos.
[xxxviii] Na verdade, apesar de todas as diferenças que com certeza existem entre os dois, Heraclito não é menos sarcástico que Demócrito. Se Heraclito chora sobre as loucuras do mundo e Demócrito ri delas, por outro lado ambos apontam o risível que reside na forma de estar instalado no mundo sofrendo de loucura sem o saber. Ver fragmento 9: “ὄνους σύρματʹ ἂν ἑλέσθαι μᾶλλον ἢ χρυσόν” (“os asnos escolhem a palha em vez do ouro”) – neste fragmento pode ver-se uma observação sarcástica. Mas a sua análise não é tão fácil quanto parece: os asnos escolhem segundo a sua natureza, e isso parece ser adequado; de igual maneira, parece adequado que o humano escolha o ouro em vez da palha, mas isto é ainda um equívoco. Porque aquilo que no asno pode ser adequado (escolher o que imediatamente parece ser mais apelativo), no ser humano pode constituir um problema (embora passe despercebido): assim, quando os homens escolhem o ouro sem primeiro se questionarem sobre o que lhes é mais adequado, então é que se comportam como burros. Os homens habitualmente levam a vida de forma tão desapercebida como se se encontrassem anestesiados ou a dormir (cf. fragmento 1). Esta tenacidade em desmontar o quotidiano é tão incisiva no choro de Heraclito como no riso de Demócrito: na verdade ambos lamentam o risível ordinário. Expor o cómico não significa, necessariamente, andar sempre a rir – como é o caso de Demócrito tal qual descrito em Do Riso e da Loucura. Aliás, a postura de Justine aparenta-se mais com a de Heraclito.
[xxxix] Cf. O Livro do Desassossego, 80: “Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? E quem é triste não pode esforçar-se.” Note-se que em Bernardo Soares sobressai o carácter paradoxal desta apresentação reflexiva, justificando, pelo esforço racional, a negação do esforço racional. A própria existência do livro de Bernardo Soares coloca em evidência o carácter reflexivo, contemplativo da disposição que, por sua iniciativa, diz não haver razão para se ter iniciativa de nada, nem sequer raciocinar. Outra questão antiga é a da relação entre espíritos melancólicos e geniais – questão que os antigos já colocaram. Ver Problema XXX, Pseudo-Aristóteles.
[xl] Cf. O Livro do Desassossego, 248: “Abstenho-me inteiramente da acção, desinteressando-me das Coisas, consigo ver o mundo exterior quando atento nele com uma objectividade perfeita. Como nada interessa ou leva a ter razão para alterá-lo, não o altero.” O termo coisas aparece com maiúscula no original. Algumas observações: 1º - o desinteresse confere uma pretensão de acuidade (“ojectividade perfeita”); 2º - o melancólico poderia agir, mas a evidência de que “nada interessa”, de que na verdade nada “leva a ter razão”, leva-o a não fazer nada.
[xli] Ou seja, o ponto de vista melancólico de Justine permanece ainda fechado. Reduzindo tudo a nada permanece, contudo, na presunção de lucidez acerca do sentido de tudo, ainda que este sentido seja tudo ser nada. Não há em Justine, afinal, um reconhecimento de que o seu próprio ponto de vista pode estar falho. Não há nela um reconhecimento de que a sua presunção de lucidez pode, afinal, não ser mais do que uma presunção. Justine não vê a possibilidade da vida apresentar uma possibilidade de ser vivida para além do nada.
[xlii] Isto também não significa que, numa análise comparativa entre ponto de vista vulgar e ponto de vista melancólico não tivéssemos que reconhecer que este último possui efetivamente uma “superioridade qualitativa” relativamente àquele. Simplesmente, isto não é abordado no filme. O filme omite esta discussão na medida em que Justine – o ponto de vista melancólico – também a omite.
[xliii] Cf. Henri-Frédéric Amiel, Journal Intime, Tome II, Editions L’Age d’Homme, Lousanne, Suisse, 1978, pág. 38: “Au fond de toute chose est la tristesse, comme au bout de tous les fleuves est l’océan. En pourrait-il être autrement dans un monde où tout ce que nous aimons doit mourir ? Le silence et l’immobilité, voilà la fin de toutes nos agitations ; la mort, voilà le secret de la vie”. “No fundo de todas as coisas está a tristeza, como ao cabo de todos os rios está o oceano. Poderia ser de outro modo num mundo onde tudo o que amamos deve morrer? O silêncio e a imobilidade, eis o fim de todas as nossas agitações; a morte, eis o mistério da vida”.
[xliv] Ver quadro aqui.
[xlv] Não faremos, obviamente, aqui uma análise exaustiva do quadro. Mas indicamos as seguintes leituras, das quais nos consideramos devedores para estas curtas considerações: Delevoy, Robert L., Bruegel: etude historique et critique, Genève: Skira, 1959; Evans, Arthur, and Catherine Evans, Pietier Bruegel and John Berryman: Two Winter Landscapes, Texas Studies in Literature and Language. 5 (1963). Vejam-se também os poemas Winter Landscape, de John Berryman, The Hunters in the Snow, de William Carlos Williams, Brueghel’s Snow, de Anne Stevenson e Hunters in the Snow: Brueghel, de Joseph Langland. Finalmente, recomenda-se a seguinte dissertação: Araújo, Adriana Duarte, A interacção entre poesia e pintura : quatro interpretações poéticas inspiradas no quadro Os caçadores na neve de Pieter Breughel, Dissertação de Mestrado em Estudos Americanos apresentada à Universidade Aberta, 2009.
[xlvi] Cf. O Livro do Desassossego, trecho 238: “A vida, disse Tarde, é a busca do impossível através do inútil. Busquemos sempre o impossível, porque tal é o nosso fado; busquemo-lo através do inútil, porque não passa caminho por outro ponto; ascendamos, porém, à consciência de que nada buscamos que possa obter-se, de que nada passamos que mereça um carinho ou uma saudade.”
[xlvii] Cf. O Livro do Desassossego, trecho 236: “Pertencer – eis a banalidade. Credo, ideal, mulher ou profissão – tudo isto é a cela e as algemas.”; Diapsalmata, pág. 19: “De todas as coisas risíveis, a mais risível parece-me ser andar atarefado no mundo, ser um homem apressado para comer e agir.” O olhar melancólico é estagnado e, nessa estagnação, é contemplativo. A longa duração do estar na vida sem urgência dá-lhe tempo para contemplar tudo, sujeitando tudo ao mesmo olhar irónico e destrutivo. O que o move não é o interesse pela descoberta típico do olhar temático e tematizante do cientista ou do analista. O olhar do melancólico, apesar disso, apresenta algo de sistémico: o caracter anulizante. Contudo, na ausência de urgência em que o tempo melancólico estagna, contempla-se tudo, mas também de forma dispersa (cf. pág. 20: “O tempo passa, a vida é uma corrente, dizem os homens, etc. Eu não consigo dar-me conta disso. O tempo está parado e eu com ele.”). Trata-se de um olhar feito de recortes, saltitante, com iluminações bruscas e mudanças abruptas de direção, em que o único conteúdo repetitivamente fixado, total e definitivamente é a banalidade de tudo, o nada que tudo é. O olhar melancólico é mistura de fragmentação e unidade, de dispersão e concentração num inapelável sentimento de desolação. Neste sentido é um olhar eminentemente contemplativo, posto que não se mexe – mas também não é o olhar temático e tematizante que se demora nas coisas para as estudar por mor da urgência que leva o cientista a deter-se num tema e a desenvolvê-lo sistematicamente. O melancólico não se demora nisto nem naquilo, porque tudo foi previamente aberto à desilusão. A longa duração que caracteriza o melancólico é essencialmente perda de tempo em relação a tudo. O melancólico não encontra nada onde possa não perder tempo – mas o que é grave é que isso não acontece porque tenha outro sítio para onde ir, onde aí possa ganhar. Tudo é perder, porque nada vale a pena. O que quer que faça é perder tempo. Tempo que nada vale, porque não tem nada que fazer com ele. A sua vida não tem absolutamente nenhum emprego. E isso leva à zombaria, tudo é risível: porque tudo é meaningless, tudo é non sense, tudo é patético – e tudo é, afinal, uma prisão infinita da qual, por ser infinita, não se pode escapar.
[xlviii] Perante o tudo ser nada, o melancólico deseja não ter nascido, ou ter morrido em criança. Ou seja, deseja não ter adquirido reflexão, autoconhecimento. Ter morrido em criança antes de ter adquirido consciência da verdade. Este desejo prolifera entre os suspiros das personagens melancólicas. Veja-se a título de exemplo os Diapsalmata, pág. 39: “Por que é que […] não morri em criança?”; pág. 31: “quando me tornei mais velho, abri os olhos e considerei a realidade, pus-me a rir e desde então nunca mais parei.” Pôs-se a rir do sem sentido da forma da vida habitualmente posta em marcha: “Eu vi que o sentido da vida era obter um ganha-pão […]; que o temor de Deus era ir à comunhão uma vez por ano. Foi o que vi – e ri.” Pois “trabalhar para viver não pode certamente ser o sentido da vida, visto que é, de facto, uma contradição que isto, o constante conseguir criar as condições, seja a resposta à pergunta pelo sentido daquilo cujas condições devem ser criadas por seu intermédio” (pág. 27). A ausência de sentido é um carácter que se deseja não ver. Por isso deseja ter morrido em criança, ingénuo, sem se dar conta do sem sentido: porque é essa consciência aprimorada de si, essa consciência aguda do mundo que se deseja não possuir.
[xlix] Cf. Diapsalmata, pág. 12: “Prefiro falar com crianças, pois delas ousa-se, afinal, esperar que possam tornar-se seres racionais. Mas aqueles que se tornaram isso… – Ó meu Deus!”, pág. 43: “O ar está tão quente e, todavia, toda a cidade está como morta. Então, lembro-me da minha juventude e do meu primeiro amor – nesse tempo, eu suspirava por; agora, só suspiro pelo meu primeiro suspiro por. Que é a juventude? Um sonho. Que é o amor? O conteúdo do sonho.” – mas a juventude não está consciente da sua natureza onírica; Werther, entrada de 29 de junho de 1771: …“são as crianças o que no mundo mais me fala ao coração. Quando observo esses pequeninos entes vejo neles o germe de todas as faculdades de que tanto hão-de carecer um dia;”; Álvaro de Campos, Tabacaria: “(Come chocolates, pequena;/ Come chocolates!/ Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates./…/ Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!”; Ode Marítima: “Ó meu passado de infância, boneco que me partiram!/ Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição,/ E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!”
[l] Cf. “O Nascimento da Tragédia”, In O Nascimento da Tragédia e Acerca da Verdade e da Mentira,  Relógio d'Água, trad. Helga Quadrado, Junho 1997, p. 26: “o indivíduo calmamente sentado, apoiado e confiando no principium inidivuationis” – esta frase remete para Schopenhauer e para a noção de que a vida individual corre sobre ilusões que a suportam ao impelirem, cativarem e atraírem o indivíduo.
[li] A expressão “weisen Silen” significa sábio Sileno. Sileno, um seguidor de Dioniso, fazia-se acompanhar de sátiros (outros adoradores de Dioniso) e montava um burro. A personagem é, por si mesma, paradoxal e irónica. Sileno é o mais sábio dos sátiros – e é na verdade um sátiro sábio. Que um sátiro possa ser sábio é já de si estranho. A sua sabedoria parece vir-lhe quando alcança estádios de embriaguez. À primeira vista, a figura de Sileno estaria mais próxima do ébrio do que do sábio. Parece mais próxima da loucura que da sabedoria: Dioniso é o deus do vinho, dos impulsos mais básicos, mas também da vida em bruto. A sabedoria de Sileno vem-lhe de Dioniso, não é uma sabedoria conceptual, apolínea. Que quem satiriza possa ser sábio é aparentemente contraditório. Mas é esta aparência que deve ser questionada.
[lii] Nietzsche, Idem, p. 34, o itálico é do autor.
[liii] A ironia está aqui a vários níveis. Primeiro, na figura do Sileno sábio. Segundo, na própria figura de Midas: que desejava o que haveria de ser a sua desgraça: transformar em ouro tudo aquilo em que tocava – na verdade, a miséria de Midas é o facto de tudo se transformar num só tom, a realidade toda ganhar uma só tonalidade (mesmo que essa tonalidade seja o ouro, de tal modo que é a própria abundância daquilo que Midas desejava que vem a tornar-se a sua desgraça – Midas desejava o que não era melhor para si, e uma vez que o conseguiu, isso mesmo que ele desejava tornou-se a sua desgraça). Terceiro, no facto de Midas, traído por obter aquilo que desejava, vir perante o Sileno exigir saber o que é o melhor para o humano, sendo que isso mesmo que se mostrará ser o melhor é inalcançável, tornando-se então preferível não saber isso mesmo que vem exigir saber, contudo só saberá que seria melhor não saber depois de já o saber.
[liv] Ver a este respeito: a obra Werther como um todo, pois Werther suicida-se, e em particular a entrada já referida de 12 de Agosto de 1771, em que se discute a Krankheit zum Tode (literalmente, doença para a morte, ou doença até à morte); Livro do Desassossego, entrada 225: “Há no ar um torpor do que se não consegue nunca. […] Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida”; Kierkegaard (com o nome de autor de Constantin Constantius), Repetição, Relógio D’água, Lisboa, Dezembro de 2009, tradução de José Miranda Justo: pág. 107 (SKS 4, 68): “A minha vida atingiu um ponto extremo; a existência provoca-me náuseas, é insípida, sem sal nem significado. […] Onde estou? Que quer isto dizer: o mundo? Que significa esta palavra? Quem me enganou, metendo-me em tudo isto e me deixa ficar aqui? […] Não será isso matéria de livre decisão? […] Não há gerente? A quem devo dirigir-me para apresentar a minha queixa?” Bem vistas as coisas, entrevemos aqui a angústia que também acompanha sempre o melancólico: Diapsalmata, pág. 28: “Não sou eu, portanto, o senhor da minha vida; eu sou mais um fio que deve entrar na urdideira da chita da vida! Ora bem, mesmo que eu não possa tecer, posso, ainda assim, cortar o fio.”, cf. Repetição, pág. 100 (SKS 4, 64): “Porém, tenho uma vantagem, posso parar igualmente bem em qualquer altura, tal como em qualquer instante posso cortar o fio que eu próprio vou fiando.”
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