terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Estudos inconjugáveis

A propósito de frases minhas... e de citações de outros...


10-03-2012: Na vida nunca se pode voltar a trás. Por isso não é exacta a metáfora da vida como uma estrada. É que a vida só tem um sentido: o desconhecido.
Só se vive uma vez e dessa vez ninguém nos deu livro de instruções, não há livro de reclamações, ninguém de facto decisivo para receber o nosso desconforto e nos acomodar num quarto melhor.
Baratas pela existência corroem as esperanças, fumos escurecem as vistas e lonjura estreita-se num ápice. Enquanto mefistófeles lava os olhos a vida foi-se, prematuramente vem a morte com a sua foice às macheias ceifando a vida como uma seara que se esgota.
O tempo corre e a vida escorre-nos entre os dedos, e lamentamos o que só por nossa culpa não foi brilhante.


08-03-2012: Mas agora tenho outra questão: seríamos capazes de viver, de facto, sem ser esteticamente? Há mais entre o céu e a terra que o estético? Não será tudo o que se supõe para lá dele apenas uma outra esteticidade?


13-01-2012: Numa sexta-feira 13 pergunto-me: que significa uma existência estética? Sim, ouço, leio, estético para aqui, estético para ali. Mas seríamos capazes de viver, de facto, esteticamente? Então, eu que ando de volta de Ἀρεταῖος - no original, sobre a Melancolia - penso imediatamente em Nietzsche, eu que me vejo grego no alemão: "Hier erinnert nichts an Askese, Geistigkeit und Pflicht: hier redet nur ein üppiges, ja triumphirendes Dasein zu uns, in dem alles Vorhandene vergöttlicht ist, gleichviel ob es gut oder böse ist.", Die Geburt der Tragödie. E então começo imediatamente a pensar no modo como uma existência estética, e uma existência melancólica parecem opostos, e no entanto, não o são.


10-01-2011: O duplo de Dostoievsky parece-me hoje mais profundo que há uns anos. A ideia de um outro que me leva a vida por mim, com quem compito, mas para quem já sei ter perdido - parece-me hoje menos melancólica e mais angustiada.


Decisão sem angústia, duração sem melancolia, espera sem tédio - será possível?

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Análise filosófica do filme "Melancolia", de Lars von Trier


Texto por Luís Filipe Fernandes Mendes

Resumo da análise/declaração de intenção: o que se pretende mostrar é que o filme em causa, Melancolia (título original: Melancholia), visa expor um determinado ponto de vista, constituído por (caracterizado por, originado a partir de) uma disposição existencial à qual se pode chamar melancolia. Este modo de se encontrar disposto encontra-se na personagem principal, Justine. Pretendemos, então, mostrar que a melancolia corresponde a um determinado mal-estar, a uma tristeza profunda, a qual surge sem que nenhum mal-estar físico a origine. Justine sente melancolia precisamente quando e onde pareciam estar reunidas todas as condições para se sentir feliz e contente, para não sentir qualquer perturbação no curso normal da sua vida. Na verdade, apesar disso, Justine encontra-se a si mesma muito longe de estar bem. Mostraremos que está em causa um modo de se ver no mundo, e de ver o mundo, em que se reconhece uma heterogeneidade de si relativamente ao mundo, de tal forma que, perante o mundo e a partir dele mesmo sobressai a impossibilidade do sujeito se integrar na vida tal como ela corre. No início do filme Justine quer e tenta integrar-se no curso da vida, mas o filme prossegue com o reconhecimento da impossibilidade de uma integração plena - com reconhecimento de um excesso, de uma transgressão relativamente ao curso das coisas, de tal modo que este se manifesta como mal-estar perante o facto de se estar vivo. Este excesso significa o encontro com uma determinada forma de responder à pergunta sobre o significado da vida, sobre o significado de tudo, sendo que a heterogeneidade do sujeito relativamente ao mundo coloca em evidência que, seja o que for que se faça no mundo, seja o que for que ocorra na vida, nada é capaz de alterar o facto de que tudo é nada. Apesar de Justine estar no mundo, e nele ter uma vida, nada do que  (na vida, no mundo) se oferece pode solucionar o problema acerca do sentido da vida. Para ela, o mundo não contém a resposta para o problema fundamental que é o de tudo ser nada.

Palavras-chave: Lars von Trier, melancolia, disposição fundamental, tristeza, sentido da vida, nada.

Intertextualidade – nas notas finais é feita a intertextualidade, preferencialmente, mas não só, com obras de carácter vincadamente literário/artístico que nos pareceram incontornáveis, embora não se tente ser exaustivo. Os autores das obras visadas são: Blaise Pascal, Caravaggio, Charles-Pierre Baudelaire, Diógenes Laércio, Eça de Queirós, Fernando Pessoa (Bernardo Soares, Álvaro de Campos), François-René de Chateaubriand, Friedrich Hölderlin, Friedrich Nietzsche, Heraclito, Hieronymus Bosch, Jean-Paul Sartre, John Millais, Nuno Ferro, Pieter Breughel (Pieter Bruegel, o Velho), Platão, Pseudo-Aristóteles, Pseudo-Hipócrates, Richard Wagner, Søren Kierkegaard.

O filme Melancolia (título original Melancholia, do realizador Lars von Trier) começa por mostrar ao espectador o pano de fundo e o final da história: um outro planeta está em rota de colisão com a Terra e irá chocar com ela de facto. O impacto, claro está, acabará com a vida na Terra, será o fim do mundo. Quanto a isto o espectador não permanece expectante, fica esclarecido. Este fim eminente é mostrado através de uma série de imagens que podem ser consideradas belas e fica desde logo evidente essa contradição entre beleza e cataclismo.

Não é por acaso que a história propriamente dita começa sem que as personagens saibam o que se passa. O realizador teve o cuidado de disponibilizar ao espectador uma informação da qual as personagens não dispõem. As personagens não sabem que o mundo vai acabar.

A história começa a ser contada a partir de um evento que, habitualmente, é marcante para quem o vive: um casamento[i]. O casamento, propriamente dito, já aconteceu e o espectador começa a acompanhar os recém-casados quando estes se encaminham para a festa, o copo-de-água.

A primeira parte do filme chama-se Justine, e refere-se à recém-casada com Michael. É para ela que o espectador é convidado a olhar e é sugerido que se preste atenção ao seu modo de ser e estar. Justine está numa situação que, habitualmente, representa felicidade e a concretização de um sonho. De início, a protagonista parece alegre e comporta-se como uma recém-casada, mais ou menos irrequieta e alegre numa limusina que tenta passar por um caminho demasiado estreito.

A limusina é demasiado grande para passar pelo caminho onde segue e fica presa numa curva. Eventualmente, consegue passar a curva difícil e os recém-casados chegam ao local da festa atrasados, onde a irmã de Justine, Claire, os recebe com o seu marido, John. O local é paradisíaco, e parece tratar-se de uma igreja ou castelo (apalaçado) românico, na qual Claire e a família habitam. De traços sóbrios e austeros, o edifício domina a paisagem, também ela bela pela sua sobriedade. Há várias referências ao facto de se estar num campo de golfe extraordinário, bem como ao pormenor de que a festa foi extravagantemente dispendiosa. Claire destaca uma lista de eventos que estão marcados ainda para aquele dia, e John sublinha que se gastou (ele gastou) uma quantidade imensa de dinheiro em tudo aquilo[ii].

Tudo pareceria disposto para que se tratasse de um acontecimento feliz na vida de Justine. Trata-se do dia do seu casamento, teve direito a uma limusina, sabemos que a festa foi cuidadosamente pensada e que tem lugar numa paisagem maravilhosa. Na verdade, Justine parece ter todos os motivos para se sentir a mulher mais feliz do mundo. A sua irmã e o cunhado, bem como os seus pais, evidentemente importam-se com ela, não só estão ali, como envidaram esforços em garantir que tudo correria bem. Apesar disso, logo que chega à festa Justine parece demonstrar um comportamento estranho, ou melhor, parece tentar ocultar sentimentos estranhos a uma atmosfera de felicidade. Rapidamente, o espectador percebe que ela não está enquadrada, não se sente integrada ali, na verdade não é o ali concreto do casamento que é decisivo, como se verá ao longo do filme. Justine não se sente integrada, não se sente em casa em lugar absolutamente nenhum.

Poderia acontecer que Justine se sentisse desenquadrada por ter uma vida descarrilada, devido a dificuldades inultrapassáveis que tivessem travado o curso normal da sua vida. Poderia acontecer que o seu mal-estar relativamente ao mundo tivesse origem naquilo que passa, naquilo que ocorre no mundo e surge na vida, como quando comemos algo que amarga e ficamos com um sabor desagradável na boca. Contudo, sabemos que está bem empregada que, além disso, o seu patrão preza a sua criatividade ao ponto de, mesmo no seu casamento, não só a promover mas também esperar que ela tenha ideias para um slogan. Segundo ele, quando ela agarra uma tarefa não a larga até a concluir. Portanto, é uma mulher de ação, de sucesso, que se casou, que está no próprio dia em que foi promovida e se casou.

Por outro lado, o seu esposo mostra-se bem-disposto, compreensivo com o comportamento estranho de Justine, parece fisicamente bem constituído e não há a mínima sugestão de que tenha ocorrido qualquer angústia antes do casamento. Está claro que o filme não tem que ver com angústia. Saltou precisamente a parte da história mais conotada com a angústia: a decisão de casar. Tudo isso ficou para trás. Não. Este não é um filme sobre angústia. Tudo indica que estamos perante um casal perfeito, uma mulher bem-sucedida no amor e no trabalho, habituada a tomar decisões e a ser boa nisso, rodeada de pessoas que a amam e dispostas a gastar muito dinheiro por ela[iii].

Apesar de tudo isso, Justine parece cada vez ser menos capaz de suportar o que a rodeia. O mundo perde cada vez mais o seu caracter familiar e Justine parece cada vez mais uma estrangeira na sua própria vida. [iv] Ausenta-se diversas vezes da festa, não dá atenção ao seu marido ou aos convidados. Cada vez que a sua presença é necessária para um qualquer evento, ela não está lá. Torna-se mais e mais evidente que se sente oprimida[v]. O seu comportamento torna-se desordenado, inconsequente, fragmentário[vi]. O espectador não consegue ver uma razão, um motivo que sobressaia para justificar as suas escapadelas, o facto de se enfiar na banheira a tomar banho enquanto todos estão à sua espera. Numa ocasião, já tarde, o marido carrega-a ao colo até ao quarto, mas ela deixa-o lá, sai e vai para o campo de golfe onde, sem uma palavra, acaba por fazer sexo com o sobrinho do seu patrão (encarregue de a seguir para todo o lado, não fosse ela ter um rasgo de originalidade e lembrar-se de um slogan durante o casamento). A sua postura revela um caos existencial que se instala - percebe-o o espectador - inexoravelmente[vii]. Numa mistura caótica de exaltação instável (correndo de um lado para o outro), tristeza (cada vez mais evidente), cansaço (cansada de correr, cansada do casamento, cansada do cunhado, cansada do patrão, cansada por tudo e por nada), tédio (nada a ocupa, nada a distrai, nada a prende, como muito bem se percebe quando simplesmente deixa caída uma foto da qual acabara de jurar jamais se separar), está no festejo do seu casamento como quem espera um comboio que se atrasou para nunca mais vir.

O espectador começa a perceber que a alegria inicial deu lugar à instabilidade, à errância[viii], mas que esta está cada vez mais impregnada de cansaço: por isso lhe custa aguentar-se na festa, por isso se deitou na banheira com uma expressão de quem se sente esmagado. Uma tristeza, um torpor, um tédio que impregna tudo, uma lassidão permanente, uma falta de interesse total[ix].

Justine não está simplesmente cansada do casamento. Poderia ser esse o caso. Mas não é. Percebemo-lo claramente quando, na segunda parte, Justine continua instalada na mesma disposição tendo o casamento acabado (acabou, de facto, pois que marido e mulher se separaram no final da festa). Não está cansada apenas disto ou daquilo, ela está cansada de tudo. Na segunda parte isso é evidente, sobretudo no momento em que a irmã lhe dá banho. Justine precisa que lhe deem banho, pois ela deixou de fazer seja o que for, mesmo as mais banais tarefas, parecendo-lhe todas igualmente sem sentido[x]. Não é apenas o casamento que não faz sentido, mas tudo perdeu para ela o sentido. Isto é particularmente gritante quando usa da ironia para com o seu patrão. Cansada por este a pressionar para trabalhar no seu próprio casamento, despede-se.

Justine encontra-se perante a bancarrota total do sentido da existência humana, o naufrágio do sentido das coisas, a derrocada da ocupação, do para-quê de tudo, pois tudo lhe parece servir para nada[xi]. Para si, de forma total e radical, nada faz sentido. A vida inteira não tem serventia, não tem emprego[xii]. Detida por uma disposição melancólica, Justine considera a vida um caos que pura e simplesmente não tem, não faz, não produz sentido. E, desta forma, há nela um desespero peculiar[xiii]. É particularmente importante que Justine ainda não tenha notícia de que o mundo vai acabar, tão pouco tenha tido notícia de que está eminente a queda de um outro planeta na Terra. Sem qualquer notícia do fim do mundo que está eminente, para ela é como se a vida já tivesse acabado. Encontra-se a si mesma como se se encontrasse à deriva em mar alto, sem bote, e tivesse a cada momento de aprender a nadar. Ou, se quisermos utilizar uma metáfora muito comum em português: encontra-se encalhada. Encalhada, não porque tenha ficado por casar - esse não foi o problema, pois encontrava-se precisamente no seu casamento -, mas porque a constituição de sentido familiar, quotidiana e habitual faliu. Na melancolia, Justine descobre-se encalhada, naufragada no mar do nada. Nada faz sentido, nada tem sentido, nada vale a pena. Daí a ironia para com o seu patrão: põe a claro a falência do ordinário, da domesticação da vida com empenhos tão sérios como o trabalho, a família, os compromissos do dia-a-dia, agora, para ela, embargados, tão ridículos como tudo o resto; o cómico é uma forma de desmontar as ilusões que os que a rodeiam mantêm, serve para mostrar o ridículo, o sem sentido, o nada que tudo é.

Ora tudo isto é tão estranho quanto mais evidente se torna que não há um motivo aparente para que Justine tenha decaído em tal disposição[xiv]. Por outro lado, temos a indicação de que ela não era assim. Na verdade, ela é a tia Steelbreaker, o que leva o espectador legitimamente a supor que seria constituída de uma compleição psicológica forte, resiliente. Podemos mesmo imaginar que era uma tia animada, capaz de brincar com o sobrinho, mas que o fazia de forma ingenuamente juvenil, não da forma irónica com que agora se despede. Além disso, o nome Steelbreaker sugere uma personalidade ativa, vital. Sabemos que Justine deve ter sido uma pessoa diferente daquela que nos é dada a conhecer agora, mas a mudança não resultou daquilo que o espectador, e não as personagens, sabe estar eminente. Poderia acontecer que, ao saber da proximidade do fim do mundo, Justine desesperasse perante o fim eminente de todas as possibilidades. Na verdade, esse fim eminente embargaria o próprio sentido das tarefas e ocupações antecedentes, pois o sentido das mesmas seria amputado. O nexo das ocupações atuais seria destruído ao destruir-se a possibilidade de desenvolvimento desse nexo no futuro[xv]. É o que vemos acontecer com o marido de Claire, que se suicida. E é o que acontece com Claire, a quem a possibilidade da queda do planeta Melancolia desespera, pois vê o seu futuro e o do filho embargado na medida em que, lançada a viver a sua vida, Claire se projetava para o futuro. Para Claire o fim abrupto de tudo assalta-a: “mas onde viverá o Leon?”, pergunta-se. No reenvio para o futuro, Claire bate contra a parede do fim que se aproxima, contra o qual nada pode, e o qual erradicará qualquer habitabilidade, isto é, qualquer possibilidade de fazer vida. Ora, Justine vive já nesta impossibilidade de fazer vida[xvi]: a inospitalidade é a marca preponderante da sua vida e do seu mundo antes de qualquer notícia de que o fim do mundo se aproximava. Na verdade ela habita o mundo – é impossível não o fazer –, mas é o sentido deste habitar que se tornou problemático: o mundo deixou de ser o mundo familiar das ocupações em que habitualmente se absorveria. O mundo não é mais um lar, no sentido de home, não é um lugar familiar onde Justine se demore. Não encontrar onde morar, onde de facto demorar – habitar tornou-se problemático porque o mundo se tornou inóspito.

A melancolia - tal como ela é exposta no Melancolia - é uma disposição tal que não resulta do contacto com isto ou aquilo, não resulta deste ou daquele acontecimento. Na verdade, a melancolia, pelo menos na sua forma mais radical, e tal como dela se trata neste filme - não é o resultado deste ou daquele acontecimento específico, bem delimitado e compreendido num segmento do decurso da vida. A melancolia diz respeito à totalidade da vida, e é a tonalidade da vida, não é desencadeada por este ou por aquele acontecimento da vida. A melancolia é endógena, não há nenhum acontecimento, nenhuma novidade, nenhum lugar que não a desperte, que não a possa espoletar. Aparece sem motivo aparente, como se a sua raiz fosse tudo, qualquer sítio, qualquer acontecimento, qualquer ação, mas nada em particular. Em cada momento, em cada acontecimento, em cada coisa que vem ao encontro de Justine, encontra o sentido da totalidade: tudo é nada. Uma vez acordada[xvii]tudo cai no seu vórtice: tudo surge tomado pela sua tonalidade[xviii]. É a totalidade da vida, portanto, a totalidade das ocupações possíveis, a totalidade do mundo se se quiser, que é invadida pelo sem sentido, pelo não valer a pena de tudo – o cinzento é a tonalidade do mundo do melancólico, a tristeza a tonalidade em que se encontra disposto o próprio melancólico. Na melancolia vive-se num tudo é nada, em que o nada-vale-a-pena se torna um aspeto - o aspeto decisivo e diferenciador - da apresentação das coisas[xix]. Dito de outro modo, tudo quanto há e se apresenta a cada momento ao melancólico, é e apresenta-se tocado pelo acorde do nada. Bem vistas as coisas, a melancolia é a perda do amor motivador pelas coisas (não da capacidade de amar, nem da possibilidade de reconhecer o seu esplendor), como se viver ou morrer se equivalessem. Ao longo do filme o espectador tem a sensação de que Justine aspira a morrer e de que, para ela, o Planeta Melancolia representa uma bênção.

No entanto, a perda do amor pelas coisas não deve ser interpretado como se o melancólico houvesse sido separado de uma capacidade, como se se tratasse de uma amputação. O melancólico vê o mundo tocado pelas cores da tristeza, mas não devido a uma incapacidade de ver as cores da alegria (do prazer, do desejo, da beleza, etc.). Pelo contrário, o melancólico percebe de forma clara, de uma forma bem perspicaz (desculpe-se a redundância) os aspetos belos das coisas[xx]. Ao longo do filme, o espectador é, precisamente, confrontado com o tudo-vale-nada da visão de Justine e com a beleza das imagens que perpassam a tela. O espectador tem ocasião de verificar que Justine, incapaz de levantar a perna para entrar na banheira, come uma compota à colherada e que, numa noite, se despe ao relento, à luz argentina do Melancolia. A melancolia não impede Justine de sair a meio da noite para apreciar a beleza do Melancolia, o que apenas aparentemente é contraditório. De facto, é precisamente por reconhecer a beleza e o encanto das coisas do mundo e da vida que a força da negação (do nada) é tão esmagadora, tão avassaladora, de certo modo poderíamos dizer: sublime: porque é exatamente esse reconhecimento da beleza de tudo, do encanto de tudo quanto há que torna mais gritante a miséria da vida e de tudo quanto há nela. Ou seja, é precisamente  devido à (e não apesar da) acuidade da perceção do apelo que tudo o que existe exerce, que a evidência de que prevalece exatamente a negação desse apelo, torna esmagadoramente dominante a tristeza no fundo de todas as coisas, incluindo, justamente, as mais belas e gloriosas[xxi]. A melancolia caracteriza-se, pois, por esta insuficiência patente em tudo, mesmo nas mais belas coisas da vida. O melancólico sabe disso, e sente-o. Ou seja, o melancólico está ciente de que as coisas poderiam ser de forma diferente, de que também ele poderia ser arrebatado, mas é varrido pelo sentimento de que tudo quanto há de extraordinário é ainda e sempre insuficiente - pois a melancolia, na forma aqui abordada, não se trata de uma afetação por um acontecimento delimitado da vida, como quando um estudante sente que não vale a pena estudar Matemática, uma vez que jamais será capaz de a aprender, ou quando um jovem sente que não vale a pena viver porque foi abandonado pela sua amada[xxii] - a melancolia, como já foi referido, envolve a vida na sua totalidade e, nesse abraço, esvazia-a de sentido. Justine está melancólica, numa tristeza profunda, mas a tristeza da melancolia é inteiramente indeterminada: esta indeterminação significa que é indefinida quanto ao que a provoca, de tal forma que, não só não é claro o que é que a entristece (na verdade, esta é a razão principal que faz do melancólico um incompreendido pelos que o rodeiam, pois que não entendem o porquê de tanta tristeza, sobretudo se, como Justine, parece ter-se tudo para se ser feliz), como torna irrelevante tudo o que há (pois nada muda a sua condição, nada tem o poder de alterar a tristeza de tudo). Neste sentido pode mesmo dizer-se que a melancolia é uma tristeza por tudo e por nada. Por tudo, porque tudo é triste, tudo é nada; por nada, porque nada é, de facto, relevante. De resto, o aspeto verdadeiramente decisivo na melancolia é a irrelevância de tudo[xxiii].

O melancólico não está incapacitado de vibrar com as coisas, pelo contrário, vibra com o confronto de cada coisa. Cada coisa provoca nele uma descarga de sentido: o significado de tudo, sendo que tudo é nada. Em cada coisa sente vibrar uma corda e passa por todos os tons, mas todos eles têm a forma do nada. Daí que Justine pareça dominada por uma pena de ter nascido, um sentimento de que em tudo ecoa o aborrecimento. Justine parece vencida pelas coisas que faz, que tem, e que quer fazer ao longo da primeira parte do filme, e pelas coisas que a sua irmã a faz fazer na segunda parte. Em cada coisa toca a sua vida, de forma cínica e desarmoniosa. Em cada coisa que faz ecoa a relação com a sua vida e com a vacuidade dela: Justine está desafinada com a vida, desavinda com o mundo. O facto de estar no seu casamento é significativo para a análise, pois trata-se de um momento que habitualmente seria feliz, normalmente representa o começo - mas na vida de Justine parece o início do fim (materializado pela catástrofe que se aproxima e que ela ainda desconhece)[xxiv]. Por outro lado, o casamento de Justine acaba por colapsar no próprio dia em que começa. Para Justine, ter-se casado ou não se ter casado, são possibilidades cujo valor se iguala. Tivesse-se casado, ou não se tivesse casado: seria o mesmo[xxv]. No movimento há somente arrependimento, pois o melancólico tem a perceção da evidência de que nenhuma ação pode alterar significativamente o significado da vida. Obviamente, não interessa se o melancólico está certo ou se está errado. O filme não discute teses, antes apresenta a melancolia[xxvi]. À primeira vista, o facto de o filme claramente estabelecer o fim do mundo, de forma tangível, física, parece defender a tese de que o melancólico - Justine - está correto na sua avaliação. Contudo, o filme estipulou, de forma inequívoca, que o cataclismo eminente (devido à trajetória do Planeta Melancolia), é indiferente para a constituição de um ponto de vista melancólico (o qual surge, precisamente, antes que Justine tenha qualquer notícia dele). A verdade do ponto de vista melancólico deve ser independente de qualquer fim do mundo cataclísmico. Se um melancólico tiver razão, ele terá razão quer viva nos últimos dias da presença humana sobre a Terra, quer não. Repetimos que o filme não tematiza, não teoriza sobre quem terá razão.

Como já dissemos, a melancolia é uma disposição que não se caracteriza pela ausência de capacidadesPara utilizar estes termos diremos antes que a melancolia se caracteriza por uma determinada disposição das capacidades que constituem o humano (a sua visão das coisas, a forma como, em cada momento, se encontra a si mesmo). Não é que lhe falte alguma característica humana, como se o melancólico tivesse deixado para trás a sua humanidade. A melancolia é uma disposição humana que está radicada, precisamente, no modo ser humano. De tal forma que pode abater-se sobre um humano sem qualquer motivo, como o caso de Belerofonte que, apesar de todos os seus sucessos e de todos os epítetos que Homero lhe atribuiu, acabou a deambular pelo mundo, sem desígnio, de ânimo torturado, afastando-se da presença humana[xxvii]. Contudo, é precisamente do ângulo da deficiência que a disposição, por assim dizer, mais comum (a forma como habitualmente a maioria das pessoas se encontra disposta) olha para o melancólico[xxviii]. Na verdade, as formas fracas de melancolia, que não são exploradas neste filme, mostram que acontece, por vezes, que uma pessoa se sinta tomada pela melancolia, em virtude de acontecimentos delimitados e circunscritos na vida de todos os dias. Por exemplo, em função de acontecimentos bem definidos pode acontecer que uma pessoa sinta que o mundo perdeu o seu sentido, que nada mais vale a pena. Nestes casos, a perda de sentido assalta uma pessoa, mas essa perda está associada a um acontecimento que a desencadeou e do qual depende. O melancólico ocasional tem acessos de melancolia, mas esta melancolia está definitivamente associada à ocasião que a espoletou. Nestes casos não se trata de uma disposição fundamental[xxix], mas de assaltos normalmente passageiros, atropelos ou descarrilamentos momentâneos que não substituem a disposição sensata e sóbria que se tem habitualmente[xxx]. O melancólico ocasional é atravessado, de forma mais ou menos aguda, pela sua tristeza. Contudo, passada a ocasião melancólica, o próprio considerará que se tratou de um momento de fraqueza, de uma deformação do ponto de vista (sensato e sóbrio) habitual. A melancolia ocasional não vai ao fundo da questão, não chega a reconfigurar a perceção total, o horizonte de compreensão na qual se insere como uma ilha da qual se sairá. Por vezes, em plena duração melancólica, o melancólico ocasional tem plena consciência de que brevemente estará livre da disposição que agora o importuna[xxxi].

A disposição de que se trata neste filme é, não uma melancolia de ocasião, passageira como um suspiro, mas uma paixão crónica, ou seja, um sofrimento de longa duração que enforma toda e qualquer perspetiva que se constitua sobre a sua regência - ao contrário da melancolia ocasional, circunscrita no quadro de uma compreensão da vida diferente dela, por exemplo, a mais comum, sensata e sóbria. A profundidade do χρόνιον πάθος[xxxii] não é um pormenor - mas um dos seus aspetos fundamentais: trata-se de uma disposição de fundo que vem à tona, assumindo-se como uma compreensão total e totalizadora, uma forma totalitária de compreender que envolve a vida: o mundo surge dominado pela tristeza própria da melancolia, nada lhe escapa, pois tudo-é-nada.

Ora, isto não significa que o homem sensato e sóbrio não tenha, também, a sua disposição fundamental. Ele tem-na com toda a certeza. A saber, a sensatez comum, a que todos nos referimos com o termo normalidade. A disposição, por assim dizer, mais comum, é uma sensatez comum - não sendo aqui lugar de a diferenciar de uma sensatez existencialmente mais profunda. O homem sensato e sóbrio, apresenta uma visão da vida sóbria e sensata, fundeada numa rede remissiva de significado. A maioria da gente, é outra gente, como diz Óscar Wilde. Age ao modo da gente, como é sensato e sóbrio agir-se, fazendo pela vida. A maior parte das vezes, encontra-se mergulhada num mundo de ocupações, de incumbências que urge realizar. A urgência daquilo que urge é, pela sua natureza, focalizadora: concentra a atenção no que é urgente. Tal como a nossa vista propriamente dita, com a qual vemos todo um horizonte, dentro do qual a maioria das coisas nos passam despercebidas. A nossa atenção é seletiva, de tal forma que habitualmente se concentra naquilo que interessa: a isso chamamos, como dissemos, urgência. De facto, na maioria das vezes o nosso contacto com o que nos rodeia (com as coisas do mundo, com o mundo) está mediado por urgências, das quais nos incumbimos e para as quais desempenhamos tarefas. Urgências, incumbências, desempenhos. Estes desempenhos em que nos encontramos mergulhados, em virtude das urgências que, de cada vez, nos chamam a atenção, organizam, domesticam a vida, de tal modo que é bem possível ser-se totalmente absorvido pelas tarefas de todos os dias. As coisas aparecem-nos envolvidas por um determinado para-quê, proporcionando uma vida familiar, tomada por garantida. Esta absorção, esta envolvência no mundo e na vida tranquiliza o homem sensato que, deste modo, sabe muito bem como deve proceder, o que deve fazer. Porém, isto não significa que o homem comum não tenha dificuldades, muito pelo contrário: as dificuldades que surgem, que se preveem, ou que nos surpreendem, constituem urgências que exigirão dele medidas adequadas a cada situação - contribuindo para o embrenhar mais e mais na rede de incumbências que a vida é para ele. O marido de Claire representa de forma exemplar o homem comum, sensato e sóbrio, ao qual poderíamos chamar homem de negócios. O homem sensato e sóbrio não só não sofre de melancolia, como também não se angustia, nem entedia, precisamente porque, habitualmente, se deixa levar pelo contínuo de remissões, de tarefa em tarefa: trabalha para ganhar dinheiro, para comprar uma casa, para constituir família, etc.,... O que é característico desta disposição fundamental é, precisamente, a focalização da sua atenção nas urgências que, de cada vez, delimitam a atenção. Obviamente, em cada urgência, bem como em cada desempenho, está em causa, como pano de fundo, uma remissão para fora de si própria, mas normalmente esta remissão é tal que a relação com o seu fim, o seu sentido último, a totalidade de que faz parte, apenas de forma difusa é pressentida. Ou seja, a atenção é focalizada pela urgência que de cada vez absorve o homem sensato, e pelo em vista de que urge mais imediato, de tal forma que a relação com totalidade da cadeia de sentido, apenas de forma vaga é pressentida. Este pressentimento é vago o suficiente para permitir que, de cada vez, o homem sensato se foque nisto que está a fazer, "por mor de algo e a caminho disso", motivado pela relação com o fim imediato a que isso se destina – e sem questionar verdadeiramente o sentido disso pelo qual mais imediatamente se move[xxxiii]. Habitualmente, o homem sensato e sóbrio levanta-se às x horas por um motivo bem concreto, delimitado e indubitável: tem de estar no trabalho às tantas horas. Esta remissão imediata basta-lhe, em virtude da focalização operada pelo ponto de vista que, entretanto, mantém a restante série de para-quês meramente anunciada e a totalidade de sentido apenas pressentida. O homem sensato e sóbrio vive entretido no mundo, distraído na vida - note-se que esta distração não significa engano, nem erro, nem desvio, pois não é disso que aqui tratamos, mas significa estar-se ocupado, concentrado nisso. O que Pascal refere no conhecido texto sobre a miséria do homem, nos seus Pensamentos, diz respeito a este estar fora de si, derramado no mundo das atribulações. Esta atenção prestada ao que está fora distrai-o de si, do seu coração, enfim, das disposições de fundo, nomeadamente, da melancolia. O homem dispersado pelo mundo não está na melancolia, precisamente porque está lançado fora, distraído da melancolia em que, na verdade, sempre está. O não estar melancólico é, então, um estado de confusão em que o que é confuso é o modo de estar do próprio sujeito, pois que assim desvia a olhar do seu verdadeiro estado.

No que diz respeito à melancolia de Justine, as coisas surgem, precisamente, tocadas pelo sentido total da vida. Na melancolia, o fim (para o qual cada tarefa remete) sobressai em cada tarefa. Cada afazer apresenta o sentido da totalidade. Neste sentido, a vida do melancólico apresenta-se sobre a forma de longa duração. Logo o início do filme põe em evidência isso, ao apresentar o seu próprio fim. Esse fim, que anulará a existência humana à face da Terra representa, precisamente, a anulação totalitária da visão melancólica. De facto, a visão melancólica tende a ser uma visão totalitária (como todas as disposições), mas dispondo de uma característica fundamental: é totalizante. O que na visão sensata e sóbria é meramente indiciado de forma difusa, na visão melancólica torna-se o cerne do problema: qualquer coisa que se possa fazer é nada, não porque o melancólico não veja a utilidade imediata das coisas, mas porque cada afazer está tocado pelo tom da totalidade da cadeia de sentido - do contínuo de remissões. E nada encontra que no fim da cadeia justifique toda a cadeia. O sentido de toda a cadeia é, pois, nenhum. Neste sentido, não há nada urgente para o melancólico: na melancolia tudo pode deixar de ser feito, porque ser feito, ou não ser feito, tem o mesmo valor. O olhar melancólico não encontra onde distrair-se, não encontra onde morar, por isso não se demora em afazer nenhum, por isso o tempo alonga-se – não se foca aqui ou ali, nesta ou naquela urgência: espraia-se por tudo e em tudo encontra o mesmo nada. Sem domicílio no mundo, sente-se um apátrida. Ao não se demorar no mundo, o olhar melancólico é forçado a olhar para si mesmo e o que vê entristece-o. É por si mesmo que se entristece e é de si mesmo que se aborrece. Considera que não é nada fácil ser-se si-mesmo. O que há em si mesmo é o vazio do mundo, isto é, o vazio de nada ter para fazer, de nenhuma possibilidade ser oferecida. Ora, nada disto que se disse significa que o melancólico não possa, efetivamente, realizar coisas. O melancólico pode trabalhar, pode por exemplo forçar-se a ocupar-se de coisas. Contudo, o que é evidente para ele é a inutilidade disso. Ou seja, o que lhe é impossível não é trabalhar, mas absorver-se no trabalho – as ocupações não são verdadeiras ocupações, mas torturas. Há uma distância irredutível que o melancólico não consegue ultrapassar, ainda que o deseje e tente – como Justine deseja e tenta na primeira parte. A melancolia expulsa o humano de qualquer ocupação, o que significa que qualquer trabalho será uma violência: a violência da evidência de que não há nenhum trabalho, nenhuma ocupação, nenhuma realização em que se realize.

Ora, o homem sensato e sóbrio, domiciliado no seu mundo familiar, habituado à sua vida doméstica (nos sentidos acima descritos) não se deixa abater pela melancolia, pois para ele esta disposição é um erro de perspetiva, um desvio da normalidade, uma deficiência[xxxiv]. Ainda na primeira parte do filme, quando Justine abandona a festa e se vai deitar na banheira a tomar banho, John pergunta a Claire se alguém na sua família é normal. O comportamento de Justine parece-lhe sem sentido, dado que foi feita uma festa fausta para ela. O marido de Claire, homem sensato e sóbrio, não compreende a atitude displicente da cunhada, considera-a anormal e intima-a a ser feliz pela festa que foi tão dispendiosa - episódio irónico pois, precisamente, a felicidade não pode ser intimada[xxxv]. No entanto, o sensato marido de Claire está convencido que Justine faz de propósito para não ver a beleza e o requinte da festa. Contudo, como já dissemos, o que está em causa na melancolia não é que não se seja capaz de ver a beleza, nem sequer que o melancólico apenas a admita por cordialidade, pelo contrário, a melancolia vê com grande acuidade a beleza de tudo, mas toda essa beleza lhe parece insuficiente. Por seu lado, o patrão de Justine - talvez menos sensato e menos sóbrio, no sentido habitual dos termos, pois pede a Justine que pense no trabalho durante o seu casamento e, além disso, também bebeu uns copos - representa fielmente o homem comprometido com os afazeres, embrenhado nas urgências. A focalização no trabalho tornou-o obsessivo, não vendo a desadequação ao momento das suas investidas. Está convencido de que conhece Justine e de que esta, tal como ele, vive para o trabalho. Justine reage sarcasticamente, desenganando-o. Posteriormente, no início da segunda parte Claire discute com o marido a situação da irmã. John considera sensatamente que Justine não consegue fazer nada, nem entrar para um táxi (Claire tem efetivamente de, por telefone, informar a irmã sobre a necessidade de abrir a porta e depois entrar). Claire afirma, como quem assume uma postura compreensiva, que a irmã está doente. Para a visão habitual, dominada pela disposição mais comum, a melancolia parece ser uma doença, uma deficiência - uma incapacidade que deve poder ser tratada e que, de qualquer modo, irá passar[xxxvi]. A disposição sensata e sóbria vê na melancolia um epifenómeno e mais do que isso, um epifenómeno para o qual deverão existir remédios que o tornem ainda menos duradouro. Não estamos a negar que existam meios médicos de tratar a melancolia - não é da nossa competência; o que estamos a avaliar é o fenómeno da melancolia, tal como apresentado pelo filme Melancolia, o qual, em si mesmo, não é apenas mais uma patologia médica, nem uma variação fugaz do humor - independentemente de o melancólico morrer devido à queda de outro planeta na terra, ou de ocorrer administração de químicos. Estes aspetos são meramente exteriores e nada dizem do fenómeno existencial da melancolia – e nada dizem sobre a vida ou a morte. É possível que o melancólico esteja mais próximo da verdade do que o homem sensato e sóbrio imagina; é possível que o homem sensato e sóbrio também se encontre doente. Mas ao menosprezar o fenómeno da melancolia, não só Claire e John desconsideram essas hipóteses, como também não vêm a possibilidade de a melancolia ser fundamental para compreender o que significa ser-se humano[xxxvii].

Terminado o visionamento do filme, a sua interpretação presta-se a alguns equívocos, ainda possíveis depois da explanação anterior. Conquanto tenhamos apontado para o desenvencilhar de alguns deles, visaremos agora em especial o seu cabal esclarecimento. A visão totalitária da melancolia, tomando a vida como um todo, tende a apresentar-se como visão egotista, até mesmo individualista, centrada na própria vida. Ao longo do filme, o espectador tende a concluir que a) Justine está de costas voltadas para a realidade, é incapaz de apreciar a beleza da vida, assume uma atitude egotista, centrada nela própria, ignorando (deliberadamente) a boa vontade de todos quanto a rodeiam, b) o realizador pretendeu realçar a validade/veracidade de uma perspetiva centrada nela própria, altamente consciente de si, mas cega para com os outros. Ora, esta tendência interpretativa é, quanto a nós, um equívoco.
O ponto de vista melancólico corresponde a uma disposição radical, fundamental, diferente de outras, nomeadamente, da mais comum.  A disposição mais comum, sensata e sóbria, configura-se num estreitamento do ponto de vista. O ponto de vista habitual, na sua própria execução, em virtude da forma como é constituído, apresenta a forma de brevidade, de aperto, ou seja, de urgência perante o que tem de ser feito, na medida em que sempre se encontra a caminho de algo, tendo isso em vista. Pelo contrário, a melancolia constitui uma paixão crónica, no sentido grego da expressão: a duração longa é uma propriedade fundamental da melancolia; o sofrimento é longo, porque o tempo se alonga – independentemente do tempo cronológico marcado pelos relógios. Esta ausência de urgência, ou melhor, a sua negação a cada instante reforça, precisamente, o que a disposição sensata e sóbria, na maioria das vezes, apenas de forma difusa alude: a unidade da vida, do mundo, de tudo. Perante a apresentação de um tal ponto de vista, as demais visões tendem a malentender aquilo de que aí se trata. O próprio filme aponta (como também já se foi referindo ao longo desta exposição) para os mal entendidos que podem facilmente surgir. O marido de Claire chama a atenção de Justine para o que ela está a perder - mas, como já vimos, Justine é bem capaz de saber o que está a perder, ela sabe bem que o mundo é belo, mas sabe também que toda a beleza é insuficiente. O marido de Claire considera Justine uma incapaz - mas Justine é bem capaz de fazer, não há nenhum problema de capacidade com ela, pelo contrário, não vê urgência nenhuma nisso que, supostamente, deve ser feito. Contudo, deve também evitar-se o equívoco de se pensar que o ponto de vista de Justine se trata de um olhar que tematicamente, de forma expressa, elabora as teses do niilismo, do tédio, do cansaço. Pelo contrário, para elaborar um ensaio, para estruturar uma tese, para de forma expressa formular um conjunto de teses, fundeadas numa argumentação lógica e coesa seria necessária uma disposição diferente da melancolia. Escrever sobre a melancolia não é uma das ocupações prediletas, valorizadas pelos melancólicos, precisamente porque para o melancólico tudo pertence, de certo modo, ao mesmo, ou seja, tudo é nada - até mesmo escrever uma tese sobre a melancolia. A forma de expressão típica do melancólico é o cómico, seja irónica ou sarcasticamente. Pelo cómico expõe a vacuidade, a vaidade, a futilidade[xxxviii].
Mas a mãe de Justine, por seu lado, fala de forma erudita e, por fórmulas intelectuais, destrói as instituições tradicionais contra as quais se insurge. Nega o valor do casamento, expõe a ilusão do valor dele, escarnece da hipocrisia que lhe está associada - consciente que está que sem hipocrisia a sociedade se desvaneceria. Todavia, a mãe de Justine não é uma melancólica. Justine ouve a mãe e cala. Procura-a mais tarde, quando ambas abandonam a festa, mas nem a sua mãe está desocupada. A mãe de Justine apresenta uma forma supostamente esclarecida de ver o mundo que tem a pretensão de compreender as coisas de forma mais pertinente - por isso aconselha Justine a deixar de sonhar. Apesar de tudo, a perspetiva da mãe de Justine parece defender expressamente a vida como lugar de sentido , apenas considerando que a sociedade veicula um conjunto de ilusões tradicionais que a maioria das pessoas simplesmente assume, de forma mais ou menos hipócrita. Pretende, então, pôr a claro as falsas crenças sociais, os mitos, os preconceitos. Mas por outro lado, procura chamar a filha para a realidade, trazê-la para o mundo sério e sóbrio, além de que valoriza a ambição de Justine como herança da sua parte. A mãe de Justine considera-se mais sóbria e, portanto, dotada de uma compreensão mais sensata que as restantes pessoas, tão facilmente ludibriadas por tradições e instituições. Não defende uma posição niilista, mas presume deter acuidade sobre tudo aquilo que se passa. Torna-se assim evidente a diferença poiética entre a visão de Justine e da sua mãe. A melancolia não discursa, não expõe, senão por breves trechos em que, de cada vez, desmonta aquilo que a rodeia[xxxix].
Claire tem pena de Justine, procura mostrar-lhe tudo o que há de belo, considera-a doente. Mas como já vimos, não é disso que se trata, não se trata de uma amputação do modo de ver comum e habitual. A melancolia não é o resultado de uma amputação. Não se trata de um daltonismo, de uma incapacidade para ver determinadas cores, mas toda uma outra forma de apresentação - como já vimos acima. Mas tudo isto irrita Claire que por vezes chega a odiar Justine - como ela mesmo diz. A Claire parece-lhe que Justine se fecha em si, num cansaço do que é difícil, num abandono ao que é fácil - mas para isto Justine só tem uma resposta: o sarcasmo: "Sim, por vezes é mesmo fácil ser-se eu." E é tudo isto, a visão totalitária, o sarcasmo, etc., que resulta na apresentação de uma superioridade[xl]. O totalitarismo da visão melancólica, o seu sarcasmo, a sua arrogância, induzem no espectador a ideia de que se está a apresentar a visão melancólica como sendo superior. Mas o que acontece é que é a visão melancólica que é constituída, na sua própria forma de acesso à vida, por uma pretensão de acuidade - como já referimos acima, o melancólico pretende ter um acesso privilegiado à vida[xli]. Na verdade, não se trata de uma tese explícita, pois o melancólico abdica de prova - a necessidade de prova provém de uma disposição diferente, como, por exemplo, a do marido de Claire, entusiasmado com a perspetiva de poder observar o Planeta Melancolia, confiante na palavra sóbria e ponderada dos cientistas que afirmam que nenhum problema ameaça a humanidade. John confia na prova da ciência, mas sobretudo na prova fornecida pelos cientistas que ele considera sérios. Para ele o Planeta Melancolia não é um problema sério, e muito menos o é a melancolia. Por seu turno, na medida em que não tropeça em urgências, a melancolia não se demora nelas, não se sente atrasada por elas e, assim, não se percebe como distraída – pois que nada a distrai. A ausência de urgência provoca a sensação de que não se é distraído do que é essencial. Na verdade, toda e qualquer disposição se compreende como acurada, como tendo um acesso privilegiado, de tal modo que tem a pretensão de ver as coisas como elas são. No caso da melancolia, esta pretensão incide sobre a vida na sua totalidade - tem a pretensão de ter disponível o sentido essencial da vida, de ter acedido ao verdadeiro sentido daquilo a que vale a pena aceder: ao sentido da vida, o qual pretende ser nenhum. Na medida em que desconstrói o ponto de vista vulgar, a melancolia compreende-se para além dele e compreende que o ponto de vista vulgar está distraído e que por estar distraído não considera sequer a possibilidade do ponto de vista melancólico ser válido. A própria arrogância do melancólico de não sentir necessidade de se explicar, de se explicar apenas na medida em que troça disto e daquilo, mostra que considera as demais visões como tacanhas, como cognitivamente deficientes. Para a melancolia, todas as restantes formas disposicionais padecem de defeitos óticos que as impedem de se aperceberem disso mesmo. Contudo, isto não significa que o melancólico se considere mais apto a compreender o teorema de Fermat ou a física quântica. Pelo contrário, a sua pretensão de lucidez revela-lhe a inutilidade de saber o que quer que seja além do sentido da vida. Para o melancólico é a totalidade da vida que se encontra irremediavelmente infetada pelo nada, e isso, obviamente, infecta tudo. Se tudo é nada, de nada serve a matemática. Sendo esta a forma (a melancolia põe as coisas todas no mesmo saco, considerando deter um nível de lucidez aprimorado, isento de distrações devidas a urgências vãs), o espectador é levado a considerar que, neste filme, se trata de apresentar o olhar melancólico como aquele que acede, sem desvios e sem perdas, ao verdadeiro sentido da vida. Ou seja, o espectador é levado a considerar que se trata de dizer que o olhar melancólico é o único verdadeiro. Ora, o que acontece é que o filme expõe o olhar melancólico, sem decidir da verdade dele. E a verdade dele não é decidida, nem discutida no filme, precisamente porque, para o melancólico, também essa discussão se encontra indelevelmente infetada pela falta de sentido, de outra forma Justine teria debatido o problema[xlii]
Perto do fim do filme, Claire comunica a Justine que pretende manter certos rituais, uma certa aparência de dignidade e até de normalidade. Precisamente, quando o mundo acabar, ela quer fazer as coisas "in the right way". Claire está de tal modo habituada ao ritmo da normalidade que ainda no fim pretende manter a mesma lógica. O habitual é a sua casa, de algum modo, o hábito é o seu deus. O desespero, ou seja, o medo perante o fim eminente envolve a visão domesticada de Claire, mas apesar disso a domesticação ritual, o "in the right way" sensato que habitualmente organizava a sua vida exerce ainda a sua atração. Curiosamente, perante a aproximação do fim, Claire parece ainda mais afunilada em urgências, correndo daqui para ali à medida que o tempo restante se esgota, se estreita à aproximação do Melancolia - tal como, quando a melancolia se abateu sobre Justine, também ela se dispersou, correu para aqui e para ali, como se na eminência de um fim que se aproximava, como de facto se aproximava, apesar de nada se saber ainda do Planeta Melancolia.  O marido de Claire, por seu lado, suicidou-se, cedendo ao desespero. O empregado, habitualmente tão doli-competente, tão empenhado e responsável, faltou ao trabalho sem avisar, o que constituiu, para Claire, uma estranheza – uma ocorrência inquietante. Ou seja, aqueles que, habitualmente, se encontravam plenamente integrados no curso da vida, na sua domesticação sensata e sóbria, perante o Planeta Melancolia assumem comportamentos que revelam a incapacidade de se afinarem com a eminência do fim do mundo. O que os perturba é o fim de todas as possibilidades. Os sensatos e sóbrios mostram-se agora desconcertados e desconcertantes, desajustados e risíveis. Para o espectador (e podemos supor que também para Justine) as diligências de Claire e o suicídio do cunhado são, de algum modo, risíveis. Perante o desespero das disposições habitualmente sensatas e sóbrias, a melancolia de Justine mantém a calma, a ausência de urgência, a capacidade de apreciar a beleza e de rir da falta de sentido de tudo, incluindo da falta de sentido de qualquer tentativa de fuga. Para Justine não é só agora que é inútil fugir: sempre foi inútil. Por isso ela apercebe-se de forma gritante da falta de sentido dos atos de Claire, que mesmo agora teima em tentar a fuga. Desta forma, o espectador é confrontado com a integração da melancolia neste cenário em que tudo é cinza, em que tudo é risível, em que tudo é nada. O comportamento dos, outrora, sensatos e sóbrios, mostra-se agora incongruente com a situação, mostra-se sem sentido tendo em conta o fim tão perto e ameaçador. E o que o filme nos diz é que não é o seu comportamento circunstancialmente referido ao facto de vir aí um Planeta, mas toda a sua forma de compreender as coisas que era, afinal, incongruente. Deste modo, à primeira vista, o realizador está a afirmar que tudo é de facto assim, tudo foi sempre assim desde o início do filme e que, portanto, a perspetiva melancólica de Justine estava certa desde sempre. Contudo, como já dissemos, não é disso que o filme trata. A constituição da perspetiva melancólica é indiferente à ameaça do Planeta Melancolia. O que ameaça, por assim dizer, o melancólico é o sem sentido de tudo. Não se coloca a melancolia como o modo de ver as coisas que vê as coisas como elas são, mas como um modo de ver as coisas que vê de forma diferente. Mas, mais importante que isso, é o facto de que, o espectador tende a interpretar que o filme pretende transmitir uma tese académica sobre a vida, considerando que a validade da tese em causa está dependente, precisamente, do final do filme. Deste modo, a conclusão mais imediata é que, em condições normais, e dada a regularidade habitual com que a vida corre fora do filme, em que não há planetas que nos ameacem, a perspetiva do filme/realizador não faz sentido. Acontece que o realizador se deu ao trabalho de mostrar que o que estava em causa em Justine, independentemente do que quer que fosse, não tinha nada que ver com a possibilidade de um planeta chamado Melancolia vir a pôr termo à existência humana na Terra. O que está em causa é, portanto, alguma coisa que não o extermínio da raça humana, mas sim qualquer coisa que se pode constituir em qualquer humano, mesmo que disponha de condições de vida muito acima da média – um bom marido, muito dinheiro, etc. Na verdade, pode constituir-se mesmo nos steelbreakers que até então estavam bem instalados na vida e eram reconhecidos pelos patrões como ativos, criativos e dinâmicos, como é o caso de Justine. Aliás, pode mesmo constituir-se no dia em que, segundo todas as convenções, deveria  encontrar-se mais feliz. Afinal, ainda que o realizador de facto quisesse dizer que só uma pessoa melancólica é capaz de perceber a verdade das coisas, o que de facto está em evidência no filme é a apresentação de uma disposição capaz de se constituir, mesmo quando tudo indicaria que a vida corre às mil maravilhas, envolvendo tudo quanto há (o mundo/ a vida) nos tons cinza da tristeza de longa duração - independentemente do tempo que ainda se viva - em que tudo surge sem sentido - apesar da beleza de tudo. O filme é a apresentação da vida vista sobre a forma da melancolia, a de Justine, uma existência que não se mexe, não tenta mexer-se, estacionada, encalhada, embargada pela canção da tristeza que envolve tudo quanto há[xliii]. A música e as cores do filme são os tons da melancolia. O rosto de Justine visto por todo o mundo nos cartazes publicitários é o rosto da melancolia. O que grita por todo o filme é a absoluta impossibilidade, é o ter-se acabado a possibilidade para Justine: é evidente que nada pode ser feito que altere eficazmente o sentido da vida: vemos como ela se sente paralisada com a evidência dessa total ausência de saídas, muito antes de saber que um planeta se aproximava. Mas isso não significa que o filme coloca a melancolia como a verdadeira forma de ver as coisas, seja isso o que for. Ou seja: o filme é sobre a melancolia e, enquanto tal, não abordou como são as coisas, mas sim como são as coisas para o melancólico. Claro que o espectador pode comparar a melancolia com outras disposições e, então, chegar a tomar posição sobre a acuidade de cada ponto de vista – contudo, isso é extra-filme.
Recordemos aqui que o início do filme coloca em tela a obra de 1565, Caçadores na Neve, quadro do pintor Pieter Breughel, o Velho. Os caçadores avançam sorrateiramente com as suas alfaias de caça enquanto, na cidade, as pessoas brincam despreocupadas. O quadro apresenta a imersão do homem na natureza, a necessidade de agir – de caçar, de brincar, enfim, de passar o tempo. O ritmo é o da natureza, do tempo que corre – o passo dos homens é indissociável do ritmo das contingências da natureza. Mas esta imersão é ainda incompleta, dizê-la não é dizer tudo. Os caçadores, as pessoas que brincam no gelo da cidade, bem como qualquer outra forma de vida, são representados em cores negras[xliv] - por oposição às cores que habitualmente se tomam por cores vivas. O negro dos caçadores e a forma com que caminham cabisbaixos sugere uma disposição abatida, deprimida. A caçada não parece ter corrido bem. Pressente-se a opressão do homem face à natureza. Nos tons escuros da vida numa natureza branca, Breughel consegue representar a contradição, o paradoxo que é o humano: confundindo-se com a natureza, com os tons do tempo que corre e chama por ele em cada ocupação, confundindo-se com as agitações que de cada vez o interpelam ao ritmo da urgência, o humano destaca-se ainda desse fundo, não consegue estar, plenamente, de modo absoluto, imerso na natureza. Na neve destaca-se o caçador, no gelo destacam-se os patinadores, destaca-se a vida – a própria imersão do caçador na caça reserva a possibilidade de o destacar, de o abater, de o expulsar[xlv]. O quadro O País de Cocanha, do mesmo autor, coloca precisamente em evidência a impossibilidade daquilo que é intrinsecamente finito (as coisas do mundo) poder satisfazer. A proliferação do que é finito sacia o humano apenas num certo sentido: no sentido em que farta, enfastia, pois o que “é de mais aborrece”. No sentido em que sacia, pode saciar por momentos, no limite pode enfastiar, cansar, aborrecer. Mas jamais o que é do mundo, o que é finito, pode saciar num sentido mais profundo: no sentido em que completa, realiza, faz de cada um aquilo que cada um tinha para ser. A realização da possibilidade mais extrema do humano (seja ela o que for), não parece estar disponível no mundo intrinsecamente finito. E o humano que escolhe o finito confronta-se com a inatingibilidade do infinito através do finito[xlvi]: a limusina é maior que o caminho, não cabe aí. O que quer que seja a possibilidade mais extrema do humano, a sua completude, o que quer que seja o infinito, ele não pode ser dado pelo finito – por mais pródigo que seja o mundo, por mais paradisíaco que pareça é um falso paraíso, uma abundância que afinal mostra de forma contundente a miséria do sujeito humano. É isso que nos diz o quadro O Jardim das Delícias Terrenas, de Bosch: no meio do jardim das delícias terrenas temos um sujeito na pose tradicional do melancólico. Precisamente aí, onde abunda a abundância, onde as delícias deveriam deliciar mais – precisamente aí, as delícias tornam clara a sua insifuciência: nenhuma delícia delicia o melancólico, e não é a proliferação de delícias, não é a multiplicação dos pães que afinal o poderá satisfazer plenamente. Tem que existir mais do que pão, pois nem só de pão vive o homem. A questão é, pois, saber se há isso que é mais que pão. No filme apresenta-se uma disposição que não vê nenhum indício de que a vida possa ser outra coisa que miséria, tristeza e morte. É isso que nos dizem ainda os quadros David com a cabeça de Golias, de Caravaggio, o Ophelia, de Millais e o prelúdio de Tristão e Isolda, de Wagner. David foi um pequeno homem que venceu Golias, mas não conseguiu vencer as tentações da carne. Ofélia viu na morte a única esperança de vida. Tristão e Isolda ambos morreram de amor. Curiosamente, Tristão, não podendo casar-se com a Isolda que amava, casou-se com outra Isolda. E é isso que afinal o filme nos diz: para o melancólico as ocupações do homem sensato e vulgar são uma substituição, correspondem à escolha do finito, mas o finito tem a marca indelével da perda do infinito. Para Justine o infinito não está disponível, porque o mundo só é capaz de finito. Mas o filme jamais nos diz que é Justine que está certa. Aquilo que é sugerido é uma possibilidade: a possibilidade de o ponto de vista de Justine ver qualquer coisa que na maioria das vezes escapa à maioria da gente, mas que está continuamente presente na vida de toda a gente. O ponto de vista sensato e sóbrio, porque não chega a considerar a melancolia seriamente, está cego para isso. Ambos, ponto de vista sensato e sóbrio e ponto de vista melancólico estão cegos para a possibilidade de a vida ser capaz de mais que miséria. O homem sensato e sóbrio não vê, sequer, que se encontra na miséria; o melancólico pressupõe-se na posse de acuidade visual plena, de tal modo que, tendo reconhecido a miséria, a toma por final. Neste sentido é importantíssimo – e não uma mera casualidade – que a religião esteja completamente posta de fora deste filme, apesar de se tratar de um casamento durante toda a primeira parte. Não sabemos se casaram religiosamente, mas supomos que não. Em lado algum se discute religião, apesar da entrada do palácio onde vive Claire, e onde se passa a festa do casamento, fazer lembrar uma igreja românica. Ou seja, o filme endivida todos os esforços em expor a vida sem saída, ou melhor, o carácter de sem saída da vida compreendida numa determinada forma. Na verdade, a melancolia, bem como a disposição mais vulgar, inserem-se numa mesma forma de vida mais abrangente, caracterizada pela queda, pelo abandono ao mundo, ao finito. A própria melancolia se encontra abandonada ao mundo que ama e deseja, apesar de saber que esse mundo é insuficiente. Mas não vê mais que esse mundo, não vê para além de uma vida confinada ao finito – não vê qualquer possibilidade de superação. No entanto fica por abordar qualquer outra forma de vida. À primeira vista isso pareceria significar que o filme descarta a existência de tais formas, ou a própria possibilidade delas. Contudo, não devemos esquecer-nos que o filme é sobre a melancolia e que a melancolia se caracteriza, precisamente, por não ver essa possibilidade. Portanto, o filme não descarta essa possibilidade; o filme mostra que a melancolia descarta essa possibilidade.

Outro equívoco. O carácter de longa duração para que se apontou é diferente da demora nas coisas onde nos domiciliamos e sentimos em casa, e da delonga da espera, em que, ao esperar-se, de alguma forma, alguma coisa já se alcança. O sujeito demora-se no que lhe é familiar, quando se sente em casa nisso que o demora. Ele mora aí, no hábito, no familiar, no que lhe oferece lar. Sente-se domiciliado nisso que o cativa e pacifica. O mundo surge ordenado, coerente. A longa duração melancólica é o contrário: não haver domicílio no que se faz, ou não haver nada a fazer que ofereça um lar; na melancolia nada demora o sujeito, porque ele não se sente familiarizado com nada; pelo contrário, o que se reforça é o carácter de outro do mundo,  o carácter de estrangeiro do sujeito e o carácter de arrastamento do tempo. O aspeto crónico da melancolia é particularmente reforçado ao longo do filme, quer partindo do ponto de vista de Justine, quer partindo das considerações dos restantes personagens. Destarte, realça-se o carácter contemplativo da melancolia, em que não há a urgência do imediato. Ou seja, esta delonga é um estar retido fora do mundo. A longa duração da melancolia é um estar expulso do mundo, forçado a estar consigo. Há apenas uma espera intrinsecamente frustrada que se sabe frustada, não porque tenha recebido a notícia de que aquilo por que espera esteja atrasado, mas porque sabe, ou julga saber, que nada há a esperar. Mas este carácter contemplativo difere do olhar interrogador, inquisidor do espírito científico, animado pela curiosidade atensiva, pelo desejo de conhecer, etc. Pelo contrário, trata-se de um olhar que, apesar de ser perfeitamente capaz de tecer comentários dispersos, de discorrer sobre este ou aquele tópico, não é essencialmente temático, mas sim essencialmente encalhado - e também mordaz[xlvii].

Finalmente, um último esclarecimento, deixado para o fim por corresponder ao final do filme. Na medida em que é total, sem urgência focalizadora, a melancolia apresenta uma pretensão de clarividência não distraída e, por isso, julga os demais pontos de vista como estando descalibrados – defeituosos. No entanto, como se disse, a melancolia não é um ensaio filosófico, nem uma apresentação temática de teses conceptuais. Para tal, seria necessária a constituição de um ponto de vista diferente, não necessariamente um fascínio pelo conhecimento, mas pelo menos uma urgência disso, ou outras urgências que, de algum modo, tornassem urgente a formulação de teses e de conhecimentos explícitos, o que não é o caso da melancolia.  A sua pretensa lucidez não a impede de compreender a sua própria perspetiva como incapacitante. Na verdade, o melancólico vive a sua melancolia como uma disposição disfuncional. O conhecimento que está certo de possuir surge-lhe como estando, também ele, tomado pela inutilidade. Mas, mais do que isso, o melancólico compreende que o seu modo de ver as coisas é radicalmente disfuncional. Neste sentido, sabe que as coisas poderiam não ser assim - não só que tudo o que há poderia ser outra coisa, ou que poderia, de facto, nem sequer existir[xlviii], mas sobretudo que tudo o que há poderia bem ser suficiente para si se não acontecesse estar dominado pela disposição melancólica, se não acontecesse ver as coisas como as vê, se não acontecesse dispor do acesso claro e perspicaz de que dispõe. Devido a esta consciência, o melancólico vive a sua clarividência (de que tem a pretensão de estar dotado) como uma maldição em que caiu, e perante a qual se encontra desgostoso. Por isso mesmo, tem a pretensão de compreender plenamente as disposições diferentes da sua e que vivem atoladas na ilusão. Ele compreende - ou julga compreender - perfeitamente todas as ilusões que desmantela, ou julga desmantelar, com o olhar sarcástico e perfurador. Esta consciência lança-o na nostalgia da ilusão - a nostalgia do paraíso perdido da ingenuidade. Há no melancólico um olhar nostálgico relativamente à ingenuidade de quem não foi tocado pela clarividência e pode, por isso, sentir-se integrado na vida[xlix]. É isso que vemos no final do filme: Justine (que durante o filme usara o sarcasmo contra as ilusões do patrão, da irmã, do cunhado) partilha com o sobrinho uma bela ilusão, inventando uma cabana mágica que iria permitir sobreviver ao embate do Planeta Melancolia. O pai da criança ter-lhe-ia dito que, se o planeta caísse na Terra, seguir-se-ia a extinção. Ora, para com o conhecimento científico, sobretudo para com a sua utilidade, Justine tem desinteresse apenas, mas não tem qualquer escrúpulo em dizer ao sobrinho que o pai "não sabia de uma coisa: da existência de uma cabana mágica". Ora, este respeito pela ingenuidade, não significa um respeito pelas formas de ver as coisas que sustentam estar dotadas de uma eficácia cognitiva relativamente ao sentido da vida porque, precisamente, na perspetiva do melancólico sustentam um olhar teórico/temático sem tirar todas as conclusões que uma postura teórica deveria tirar se fosse tão eficaz e perspicaz como afirma ser. Perante tais formas de mundividência o melancólico apenas apresenta sarcasmo, desmontando-as, expondo-as como charlatanices, perspetivas tacanhas e defeituosas. O respeito pela ingenuidade que caracteriza o melancólico significa que está perfeitamente ciente de que se pode ser feliz na ignorância (ou naquilo que o melancólico considera ignorância), mas que a acuidade que caracteriza a sua mundividência o impede de sair da tristeza. Reflexivamente, o melancólico sabe que a sua sabedoria mata e sente-se, por isso, fascinado pela ignorância de que não mais é capaz. Uma vez que não duvida de que é impossível para si regredir ao estado de ignorância e de que, por outro lado, não há nenhuma disposição possível que possa constituir uma forma de ver as coisas mais apurada do que a sua, o melancólico deseja que não tivesse nascido. Tudo isto lembra Nietzsche: a ideia de que o conhecimento mata, de que a moral é mais uma ilusão (com a agravante de ser tratada como verdade, e que por isso se tornou, não só inútil, como prejudicial), de que a vida é uma tragicomédia, de que a vida que individualmente se leva está essencialmente baseada em ilusões (nomeadamente, a ilusão acerca de qual seja o sentido da vida), de que habitualmente se vive num esquecimento de si próprio, etc...[l]

Este filme obriga-nos a fazer referência ao Sileno sábio (n'O Nascimento da Tragédia). Nietzsche refere um conto grego segundo o qual Midas perseguiu um “weisen Silen”, companheiro de Dioniso, para lhe perguntar “o que haveria de melhor e mais excelso para o ser humano”[li]. Depois de coagido, Sileno “solta um riso estridente” e liberta as seguintes palavras: “Estirpe miserável e efémera, filhos do acaso e da fadiga, porque me obrigas a dizer-te o que para ti é mais proveitoso não ouvir? O melhor é para ti totalmente inatingível: não haver nascido, não sernada ser. Mas a segunda coisa melhor para ti é morrer em breve”[lii]. Primeiro, é de realçar que o Sileno, que é um “sátiro”, como é próprio de si, satiriza: ao desvendar uma verdade profunda mas negra “solta um riso estridente” – tal como o melancólico desmonta as ilusões e expõe as verdades através do escárnio, do sarcástico, do irónico, numa palavra, do riso, mostrando o risível das coisas[liii]. Depois, o sátiro afirma que o que Midas pede para saber lhe seria mais proveitoso não saber: também o melancólico sabe que a sua acuidade é uma maldição que mais valia não ter. Continua o sátiro dizendo que o que convém ao ser humano é para ele (Midas, mas também para o ser humano em geral) inatingível. Isso que é inatingível, diz o sátiro, é não ter nascido - também o melancólico deseja não ter nascido e, por outro lado, nutre nostalgia da ingenuidade, a qual é igualmente inalcançável. Há, pois, uma proximidade entre o episódio do sátiro e o filme Melancolia: o tema da sabedoria que seria melhor não ter. Trata-se de uma sabedoria acerca da vida, acerca do que seria melhor para o ser humano. Midas, outrora desejoso de ouro, mas a quem nem todo o ouro satisfizera, a quem, na verdade, a própria abundância do ouro aborrecera, procurava saber qual seria o sentido da vida e, ao ficar a saber que o melhor seria não haver nascido, tomou contacto com um conhecimento que o impede de voltar atrás. Agora sabe qual é o sentido da vida, mas sabendo isso, sabe que não o pode alcançar. O melhor para o humano seria não ter nascido, a vida humana não tem sentido, pois para o humano não está disponível nenhuma possibilidade de realização. Assim, uma vez que o que convém ao ser humano não está disponível dentro do campo de ação humana, a vida é sem sentido: por isso mesmo o melhor seria não ter nascido, o que precisamente é impossível. Sileno expõe uma sabedoria aparentemente circular, mas apenas aparentemente: o melhor é não ter nascido precisamente porque nada de melhor pode ser oferecido pela vida. Agora que sabe isso, Midas fica numa dupla impossibilidade: não pode ignorar mais isso que lhe foi revelado; e ao saber isso (que não pode ignorar), sabe que aquilo que lhe convém lhe é inacessível, precisamente porque agora já o sabe. De facto, o melhor seria nunca ter sabido o que é o seu melhor, pois agora que o sabe, não pode evitar sabê-lo – o melhor seria continuar absorto na procura do ouro sem saber a absurdidade disso, o melhor seria não ter nascido, o melhor seria não saber que o melhor seria não ter nascido. Assim vive o melancólico, sabendo que aquilo que sabe seria melhor não o saber, desejando nunca ter nascido, mas estando aqui para o desejar. Se uma vida não examinada não é efetivamente vivida, então o melancólico deseja que não tivesse começado a examinar a vida, que não tivesse, afinal, vivido. Na verdade, o que imediatamente nos perguntamos quando nos debruçamos sobre a melancolia é a razão pela qual o melancólico não se suicida. E é precisamente isso que o Sileno sugere: uma vez que lhe é impossível não haver nascido, dado que já se encontra lançado na vida, o que lhe convém (excetuando o melhor) “é morrer em breve”. O sátiro diz “morrer em breve”, sem mencionar o suicídio, e é isto que se destaca no melancólico: deseja não ter nascido, deseja não saber o que não pode deixar de saber, a disposição em que se encontra é irredutível (ou tida por si como não reversível para outra), tudo é nada – mas, então, por que motivo não se suicida?
No filme Melancolia, o Planeta Melancolia parece, de facto, surgir como uma bênção para a melancolia de Justine. Ao abreviar a sua vida, abrevia a sua tristeza, e permite que o seu sofrimento de longa duração possa ser vivido apenas num período de tempo breve. E podemos legitimamente questionar-nos se Justine se acabaria por suicidar se tal não acontecesse[liv].




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