quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Narada, o mensageiro

A propósito do complexo de Job...

O complexo de Job. A escolha do nome "Job" é um tanto ou quanto aleatória, na medida em que existem na literatura mitológica exemplos vários e escolher um deles é sempre discutível. A ideia é reter o sentido de perda total, ou quase total, das aquisições de uma vida rica e afortunada. Neste sentido, a escolha de Job é consentida por se tratar, talvez, do caso mais conhecido, pelo menos entre nós, ocidentais.

Penso que Édipo seria igualmente uma boa escolha, mas a cultura ocidental associa a sua figura a um complexo bem difundido embora nem sempre bem conhecido.

É dentro desta gama de personagens míticas que a figura de Narada pode ser compreendida. E é neste contexto que a iremos narrar.

Narada é filho de Brahma, o Deus Criador, e é também o mensageiro dos deuses. Seria interessante relacioná-lo com Hermes, mas não é agora tempo disso.

Ora, certa vez, tendo Narada, asceta dedicado, obtido a bênção de Visnu, foi por este visitado. O Ser Supremo confere-lhe a realização de um desejo. Narada vivia preocupado com a descoberta da verdade, da verdadeira Verdade. Desejava salvar-se dos vínculos de Maya. Por isso, Narada pediu que Visnu lhe revelasse o poder mágico da sua Maya.

Visnu acede e pede que Narada o acompanhe. O caminho era difícil, estava deserto e ninguém passava por eles. Então, Visnu, pede a Narada que lhe traga um copo de água. Havia um lugar próximo com algumas casas onde poderia conseguir um copo de água. Narada dirige-se ao lugarejo e bate à porta da primeira casa.

À porta vem uma bela rapariga, muito bonita aos olhos de Narada, tão esbelta que Narada se esquece por que viera até ali. Ao entrar em casa a família da jovem recebe-o cordialmente com o respeito que se tem por um homem santo. Narada fica encantado e deixa-se envolver pela atmosfera familiar.

O tempo foi amigo de Narada e trouxe-lhe muitas coisas boas. Casou com a beldade e foi muito feliz com ela. A vida deu-lhe presentes muito importantes e, apesar de trabalhar os campos, sentia-se entretecido por toda a docilidade que o rodeava. Teve três filhos e herdou as terras do seu sogro: era marido, pai e proprietário.

Chega então uma noite em que cai uma feroz tempestade. Chove torrencialmente. A casa desaba, o gado afoga-se, as terras alagam-se. Abrindo caminho entre as águas tenta salvar os seus filhos levando pela mão a sua mulher. Demasiado peso para um terreno dominado pela água: escorrega, cai, deixa cair o seu filho mais novo. Pousa os outros dois filhos e procura o que se perdeu, mas é tarde demais: o mais novo desapareceu nas águas revoltas e quando volta para os seus outros filhos percebe que também esses foram levados. Pouco depois, também a sua mulher lhe é tomada pela torrente. Desanimado, desfeito física e mentalmente, o próprio Narada é dominado e arrastado inconsciente.

Ao acordar, Narada lembra a sua perda, a sua enorme perda, tão grande quanto melífluas foram as suas aquisições. Chora como qualquer um choraria nas mesmas circunstâncias. Nessa altura ouve uma voz que o chama por "criança" e o questiona sobre o água que ele deveria ter trazido "há mais de meia hora". Narada desperta da sua desgraça, olha em volta e vê o mesmo caminho desértico sob o mesmo sol tórrido de antes da sua partida.

Visnu pergunta-lhe se ele compreendera a magia da sua Maya. Narada pode não ter compreendido todo o complexo envolvido nesta lição e com toda a certeza não compreendeu todos os segredos da aparência. Mas compreendeu que a aparência pode sujeitar o homem a uma ilusória sensação de segurança. Compreendeu que a precariedade caracteriza a existência e que cada aquisição mundana corresponde a uma possibilidade de perda. Possuir muito é poder perder muito. A felicidade mundana que o tolhera comprometeu-o com o mundo que se lhe abriu oferecendo-lhe alegrias, não apenas momentâneas, mas um bem-estar a longo prazo fundado no ambiente familiar que vira, aparentemente, garantido. Contudo, agora compreendera que as garantias nunca foram de facto dadas: desde o primeiro momento de cada aquisição a possibilidade mais própria de cada uma fora a perda.

A isto chamamos o complexo de Job: esse sentimento que o homem arcaico, fundador de mitologias, sentia de que todo o prémio que a vida pudesse oferecer continha um fundo ilusório; que toda a felicidade é uma abertura para a infelicidade; que a uma grande subida corresponde a eminência de uma grande queda. No momento em que se adquire, a aquisição é, em si mesma, possibilidade de perda. E esta noção, noção que pode muito bem ser universal, vê-se em muitos mitos. A descrição de tragédias mítica não está sempre associada à mesma mensagem final. Mas a própria tragédia revela um sentimento profundo sobre o carácter da existência humana. Se analisarmos as estórias de Édipo, de Job, de Narada podemos perceber que, apesar das diferenças, através dessas personagens se regista um traço comum.




Bibliografia.
A estória aqui apresentada é narrada por Sri Ramakrishna no século XIX - cf. The Sayings of Sri Ramakrishna, parágrafo 1110 (da versão on line do link anterior). No entanto, uma versão da estória já aparece no Matsya Purâna - cf. ZIMMER, Heinrich. Miths and Symbols in Indian Art and Civilization.

A versão por nós utilizada é de Zimmer, seguida por Eliade (ver ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos, Martins Fontes, página 67), sendo que não nos parece existir diferença substancial relativamente ao texto em The Sayings of Sri Ramakrishna.

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